Dedicou o resto da sua vida à procura incessante da resposta para a pergunta essencial de Auschwitz: “O que é um homem?”Químico por formação, mas escritor por força do destino, Levi escreveu dezena de títulos, entre memórias, ensaios, ficção e poesia.
Sua obra é freqüentemente vista como uma ponte entre dois mundos: antes e após Auschwitz. Primo Levi é, às vezes, lembrado por ter dito que quem passou por campos de concentração nazistas se divide em duas categorias “os que calam e os que falam”.
Foi justamente a necessidade de falar, de curar suas feridas espirituais, que levou Primo Levi a construir uma das obras fundamentais sobre os horrores criados pelo regime nazista. Sua obra é uma penosa interrogação sobre a natureza humana. Um testemunho sobre o “mal absoluto” e de como seres humanos conseguiram preservar sua humanidade intacta em face deste mal.
Levi é a testemunha que precisa fazer justiça às vítimas contando o processo de desumanização e degradação que sofreram e todas as aberrações cometidas pela espécie humana nos campos de aniquilamento nazistas. Em seu primeiro e mais impressionante livro, “Se questo è un uomo” (Se isto é um homem), escrito em 1947, Levi relata o ano que passou em Auschwitz. Os capítulos não obedecem a uma sucessão lógica, mas são escritos segundo a ordem de urgência que o autor sente em narrar o que vivera.
O livro inicia-se (assim como seus outros livros) com uma poesia, com versos duros e amargos. O poema escrito por Levi em janeiro de 1946, que leva o título “Shemá”, quando é publicado separadamente do livro faz eco à oração primor-dial do judaísmo o “Shemá Israel”, oração que Levi aprendeu com 12 anos por ocasião de seus estudos de seu bar-mitzvá. A poesia é um alerta endereçado a todos que vivem em segurança para que meditem sobre os sofrimentos de nosso povo, gravando-os em pedra no coração e os contando a seus filhos para que nunca sejam esquecidos.
Mas, nos anos após a Segunda Guerra Mundial, poucos no mundo queriam saber a verdade sobre a Shoá e os campos de morte nazistas e o livro é recusado por vários editores que o consideraram muito triste. Quando é, finalmente, publicado, apesar de ser bem recebido pelos críticos, vende muito pouco. Reeditado em 1958, ‘Se isto é um homem’ se torna um sucesso de público.
Em 1963, Primo Levi publica seu segundo livro ‘A Trégua’, em que narra os últimos dias em Auschwitz, após os nazistas terem abandonado o campo, e sua viagem de volta para casa, na Itália. O livro é muito bem acolhido pela crítica e pelo publico. Levi passa a ser reconhecido como um grande escritor.
Recordar, contar, refletir e testemunhar continua-rão a ser o tema de todos os seus livros. Em 1963, logo depois de publicar ‘A Trégua’, Levi declara que considerava encerrado seu trabalho testemunhal. Mas nunca lhe foi possível manter esse propósito. Já que ele afirmava... “Com o passar dos anos, essas recordações não empalidecem nem se dissipam, ao contrário, se enriquecem com detalhes que eu acreditava esquecidos e que, às vezes, adquirem sentido à luz das recordações de outras pessoas, de cartas que recebo ou de livros que leio”. Seu último livro, ‘Os afogados e os sobreviventes’ é publicado em 1986. No ano seguinte é indicado para o Prêmio Nobel.
Em abril de 1987, aos 68 anos, Primo Levi é encontrado morto no poço da escadaria do apartamento no qual vivera toda a vida.
A vida antes de Auschwitz
Primo Levi nasceu em Turim, no dia 31 de julho de 1919, no seio de uma família judaica burguesa de origem sefaradita. A família Levi, apesar de manter a maior parte das tradições e festas judaicas, assim como grande parte dos judeus italianos era muito bem integrada na tolerante sociedade da Itália pré-fascista. Mesmo após a subida de Mussolini ao poder havia na Itália um clima de relativa tolerância em relação aos judeus.
Seu próprio pai se torna a contra-gosto, assim como outros judeus, membro do partido fascista. Mas, mesmo na Itália, as doutrinas raciais e as idéias fascistas tomaram conta de grande parte da sociedade italiana. Em 1938, Mussolini anuncia as leis raciais italianas inspiradas nas Leis de Nuremberg. Um regime de segregação é instituído contra os judeus; muitos são afastados de seus cargos públicos ou demitidos de escolas e faculdades.
Bens e moradias são seqüestrados. Mas apesar do que via em sua volta, Primo Levi estava convencido que a “razão iria triunfar”, que “a ciência com seu discurso objetivo” acabaria por colocar em dúvida as idéias fascistas, derrotando-as.
Em 1941, um ano depois de a Itália ter entrado na guerra ao lado de Hitler, Levi recebe seu doutorado em Química pela Universidade de Turim. Apesar de excluírem os judeus das universidades, havia na área das ciências exatas muitos professores antifascistas e um deles, Nicola Dallaporta, aceitou Levi como aluno no curso de pós-graduação.
Dois anos mais tarde, após o colapso do regime de Mussolini, em 1943, Primo Levi toma a decisão que vai marcar sua vida para sempre. Decide com alguns amigos formar um grupo de “partigiani” para lutar contra os fascistas. Inexperiente, acaba sendo preso num esconderijo nos Alpes, a 13 de dezembro de 1943, por milícias fascistas.
Interrogado, declara-se “cidadão italia-no de raça judaica” e como judeu é enviado a um campo de concentração fascista perto de Módena. No mesmo campo, encontra centenas de outros judeus italianos, famílias inteiras. Quando em fevereiro, dois meses após sua prisão, tropas das SS chegam ao campo com a ordem de deportar imediatamente todos os judeus, o medo se alastra entre eles. Já era o final de 1943.
As notícias vindas da Alemanha, da Polônia e da Rússia sobre o terrível destino que esperava qualquer judeu que caía em mãos nazistas já circulavam entre os judeus. A maioria sabia que a deportação era uma condenação à morte.
No fatídico 22 de fevereiro, 650 judeus foram jogados dentro de 12 vagões chumbados, num “dos famosos comboios alemães, desses que não retornam, dos quais com um calafrio e com uma pontinha de dúvida tantas vezes tinham ouvido falar”, relata Levi. A viagem durou cinco dias.
O destino era um lugar que nunca antes ninguém ouvira falar: Auschwitz. Do total dos 650 judeus italianos deportados naquele comboio, só 29 sobreviveram. Os restantes morreram em Auschwitz, uma morte anônima.
Revista Morashá - Edição 41 - Junho de 2003