Nassô
Métodos e contextos de paz
Que relação poderiam guardar as leis sobre a organização do acampamento do povo no deserto, as leis que regulam os privilégios dos sacerdotes e outros elegidos, as leis que regulam o tratamento do adultério, e as leis que limitam os votos de austeridade dos monges?
Esta pergunta inquietou muitos dos comentaristas mais famosos ao enfrentarem o conteúdo da parashá Nassô, uma das maiores e cujo conteúdo é o mais diverso.
Alguns nem aceitaram a pergunta, dizendo que não é necessário que os temas de uma mesma parashá tenham relação entre si. Só que na ampla maioria dos casos as parashiot tocam apenas um tema central ou dois e estão, sim, relacionados.
Dentre as diversas respostas dos que procuram uma coerência temática, resgato especialmente a de Guershônides (Rabi Levi ben Gershon), da Idade Média. Segundo ele trata-se de níveis diferentes de organização que visam contextos diferentes para a paz.
A organização do povo visa à paz nacional, à regulamentação dos privilégios dos elegidos, procura os equilíbrios necessários para a paz social sustentada numa ética mínima de consenso; o tratamento do adultério pretende traçar as garantias para a paz familiar; e os limites aos votos de austeridade visam trazer paz ao espírito do indivíduo.
Organizar o povo significa estabelecer os espaços físicos, as funções sociais, políticas e públicas e os deveres e direitos de cada um. Os privilégios de sacerdotes e demais elegidos devem ser regulamentados para lembrar justamente que foram escolhidos para servir o povo − mesmo e especialmente nas funções de liderança e representação é necessário reforçar o serviço que está antes do privilégio. Os limites permitem aos elegidos exercer sua função de exemplo moral e ético e promover a paz e o equilíbrio.
O tratamento do adultério merece uma apreciação a parte. Trata-se da suspeita de um marido ciumento que, como nunca conseguiria provas contundentes nem da suspeita da inocência ou não de sua mulher, ficaria para sempre na intranquilidade da dúvida. A Torá criou para isso um ritual público que limpava magicamente a imagem dos implicados. Desse modo, diante da impossibilidade de provas empíricas totais, restituía-se a possibilidade de paz no lar através da paz psicológica e pública.
Por fim, a regulamentação dos votos de austeridade surge da premissa de que quem fizer esses votos encontra-se num desequilíbrio. Como religião de vida, o judaísmo não prega o afastamento ascético dos monges. Judaísmo se pratica na rua, nos negócios, nos estudos, na família, nas relações sexuais, na comida, na bebida, no que se fala, no que se cala. No amor, na paixão, no desejo, nos sonhos. Portanto, o judaísmo pressupõe que alguém possa precisar de votos de austeridade por causa de excessos ou para focar em alguma reflexão. Mas sempre será apenas por um tempo. E sempre será com limites que permitam o retorno saudável do indivíduo a uma vida terrena normal, de relacionamento pleno com o mundo e com a humanidade. Os limites da austeridade afirmam o valor da vida e pregam o equilíbrio e a paz do indivíduo para que possa voltar ao seio da sociedade e da humanidade.
A última pergunta diante de todos estes níveis de paz é: qual paz precede ou traz o que? Alguns acreditam que a paz social, baseada nas garantias éticas e nos equilíbrios legais, gera indivíduos pacíficos. Outros sustentam que indivíduos que estão em paz consigo mesmos constroem relacionamentos de paz que criam sociedades pacíficas.
Nós temos apenas uma pequena parte das ferramentas para a paz e o equilíbrio de nossa sociedade, uma grande parte da possibilidade de paz de nossos relacionamentos, e toda a chave da paz individual. A consciência de possuirmos estas possibilidades nos presenteia com responsabilidades e esperanças renovadas.
Shabat shalom
Rabino Ruben Sternschein