Os cadernos de Guerra de Malaparte

Os cadernos de Guerra de Malaparte

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Sheila Sacks

RepĆ³rter de uma civilizaĆ§Ć£o em ruĆ­nas, o italiano Curzio Malaparte assombrou o mundo com o seu livro Kaputt, que narra as atrocidades da mĆ”quina nazista no front oriental.

Quando o jornalista e escritor Curzio Malaparte deu a partida para pĆ“r no papel as suas crĆ“nicas pessoais sobre a guerra no velho continente, a Alemanha nazista lanƧava-se, com um apetite voraz, Ć  ofensiva sanguinĆ”ria sobre o territĆ³rio soviĆ©tico, o mais cobiƧado e suculento filĆ© do front oriental. 

Naquele terrĆ­vel verĆ£o europeu, em junho de 1941, Kurt Erich Suckert, nome de batismo de Malaparte, era correspondente, na UcrĆ¢nia, do jornal italiano Corriere della Sera, e ostentava o salvo-conduto da temida cruz gamada que o autorizava a transitar entre as barbaridades perpetradas pelas tropas germĆ¢nicas em sua perversa escalada de conquista e extermĆ­nio. TambĆ©m o incluĆ­a no seleto clube dos nobres adesistas, diplomatas fascistas, oficiais da Gestapo e colaboradores diretos do fĆ¼hrer, que, nos castelos, consulados e palĆ”cios confiscados e entulhados de mĆ³veis e raridades pilhadas, citavam Homero e dedilhavam Chopin, nos suntuosos banquetes regados ao mais puro vinho de Borgonha.

Envergando a farda de oficial italiano, Malaparte cobriu os combates das forƧas do Eixo nas frentes da RĆŗssia, PolĆ“nia e FinlĆ¢ndia, misturando-se a soldados, prisioneiros e guerrilheiros em cidades e aldeias arrasadas pelos canhƵes e bombardeios. Transitou pelas ruas do Gueto de VarsĆ³via, apinhadas de gente maltrapilha e amedrontada; presenciou o pogrom na cidade de Jassy, na RomĆŖnia, onde em uma Ćŗnica noite foram chacinados mais de 2 mil judeus; e conheceu as prisioneiras do bordel militar de Soroco, na BessarĆ”bia, meninas de famĆ­lias judaicas, bonitas e inocentes, capturadas e exploradas pelos nazistas. TrĆŖs momentos cruĆ©is e dolorosos entre tantos outros que registrou, de forma espantosa, em seus cadernos de viagem.

Consciente do conteĆŗdo explosivo de suas anotaƧƵes e certo de que as mesmas seriam destruĆ­das se caĆ­ssem nas mĆ£os da Gestapo, o autor confiou-as a amigos diplomatas em Berlim, Madri, Lisboa e Bucareste. Retornando Ć  ItĆ”lia em 1943, Malaparte finalizou o manuscrito e o escondeu durante algum tempo no buraco de um rochedo, perto de sua casa em Capri: “NinguĆ©m ignora como Ć© difĆ­cil na ItĆ”lia, e em grande parte da Europa, a condiĆ§Ć£o humana. E quĆ£o perigosa Ć© a condiĆ§Ć£o de escritor”, lamentava. “Mas, prefiro essa Europa em destroƧos, onde tudo esteja por refazer, a ter que aceitar tudo como uma heranƧa imutĆ”vel.”

DESAFETO

Enfant terrible da doutrina fascista, Malaparte tornou-se desafeto do ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945) quando publicou, em 1931, o livro “TĆ©cnica do Golpe de Estado”, obra em que ataca Adolf Hitler e o prĆ³prio Il Duce. O jornalista foi expulso do partido fascista e condenado a cumprir cinco anos de exĆ­lio na ilha de Lipari, no MediterrĆ¢neo, pena comutada, mais tarde, por interferĆŖncia direta do conde Galleazo Ciano, genro de Mussolini. Entretanto, seus livros e reportagens posteriores o levaram mais algumas vezes Ć  condenaĆ§Ć£o, desta vez trancafiado na prisĆ£o de Regina Coeli, em Roma.

De mĆ£e italiana e pai alemĆ£o, Malaparte nasceu em 1898 na cidade de Prato, a 20 quilĆ“metros de FlorenƧa, adotando o pseudĆ“nimo literĆ”rio em 1925. Segundo ele, uma brincadeira com o nome do conquistador NapoleĆ£o Bonaparte. Aos 16 anos alistou-se no Quinto Regimento Alpino e combateu na 1ĀŖ Guerra Mundial, ganhando vĆ”rias condecoraƧƵes de bravura. Fundou e dirigiu diversas publicaƧƵes, o que resultou em sua aproximaĆ§Ć£o com polĆ­ticos e membros do governo. Atuou como coordenador de imprensa na ConferĆŖncia de Versalhes, em Paris (1919), e serviu como adido diplomĆ”tico na PolĆ“nia (1920). Foi correspondente de guerra na EtiĆ³pia, GrĆ©cia e IugoslĆ”via. Escreveu em torno de 30 livros, muitos deles relatando as suas vivĆŖncias nas duas Grandes Guerras. Faleceu em Roma em 1957, aos 59 anos.

As anotaƧƵes secretas sobre o pesadelo nazista que o autor ocultou, por vĆ”rias vezes, no forro de seu casaco e atĆ© em um chiqueiro de uma aldeia ucraniana, transformaram-se na obra intitulada Kaputt (quebrado, em alemĆ£o), o seu livro mais festejado, publicado em 1944 e traduzido em mais de dez idiomas. Nele ficou retratado, de forma contundente e admirĆ”vel, o poder de alcance da maldade, da impiedade e da infĆ¢mia, a abominĆ”vel trindade que dominou e contagiou a Europa como um vĆ­rus devastador, reduzindo a frangalhos a sagrada imagem do ser humano, no que ele tem de mais nobre e grandioso.

NO GUETO

Malaparte esteve no Gueto de VarsĆ³via em janeiro de 1942, depois de conhecer os guetos de CracĆ³via, Lublin e Czenstochowa. Ele conta que a cidade proibida (assim chamada pelos nazistas) era circundada por um muro alto de tijolos vermelhos, construĆ­do pelos alemĆ£es para fechar o gueto, como uma gaiola. Na porta, vigiada por uma escolta de soldados armados da SS (Schutzstaffel, organizaĆ§Ć£o paramilitar nazista), estava afixado um edital instituindo a pena de morte para qualquer judeu que tentasse fugir. Por ordem expressa do governador alemĆ£o de VarsĆ³via, Ludwig Fischer, um guarda da Gestapo (polĆ­cia secreta nazista), de olhar claro e frio, o acompanhou como uma sombra durante toda a visita.

O jornalista relata que a sua presenƧa ao lado de um guarda da Gestapo (polĆ­cia secreta nazista) despertou a curiosidade e o medo “na multidĆ£o de rostos barbudos, afogueados pelo frio, pela febre e pela fome”. Nas ruas do gueto ele se viu forƧado a saltar, de espaƧo em espaƧo, por cima de cadĆ”veres, jĆ” que os mortos jaziam abandonados na neve, entre candelabros apagados, Ć  espera das carroƧas dos coveiros. “A mortandade era grande e muitos permaneciam na entrada das casas, nos corredores, nos patamares das escadas ou sobre as camas nos quartos apinhados de gente pĆ”lida e silenciosa.”

Malaparte observa ainda que os mortos eram recolhidos nas ruas e nas casas por grupos de jovens estudantes deportados da Alemanha, Ɓustria, BĆ©lgica, FranƧa, Holanda e RomĆŖnia. “Eram jovens intelectuais educados nas melhores universidades da Europa. Falavam francĆŖs, romeno e alemĆ£o. Entretanto, agora se apresentavam andrajosos, famintos, devorados pelos insetos e ainda doloridos das pancadas recebidas, dos insultos, dos sofrimentos padecidos nos campos de concentraĆ§Ć£o e na terrĆ­vel odissĆ©ia que os trouxera de Viena, Berlim, Munique, Paris, Praga e Bucareste atĆ© o gueto de VarsĆ³via.”

JOVENS COVEIROS

Impressionado com os jovens coveiros, Malaparte escreve: “Eu me detinha a observĆ”-los no seu piedoso trabalho. Tinham no rosto uma luz belĆ­ssima, nos olhos, uma juvenil vontade de se ajudarem mutuamente, de socorrer a imensa misĆ©ria do seu povo. Eles levantavam os mortos com delicadeza e os colocavam nas carroƧas puxadas por outros jovens andrajosos e macilentos.” Dias antes, nos guetos de CracĆ³via e Czenstochowa, ele tivera uma estranha experiĆŖncia com outros jovens judeus que, ao vĆŖ-lo uniformizado e ao lado de um guarda nazista, foram ao seu encontro estampando um misterioso ar de felicidade. Parecia que a angĆŗstia da espera tinha chegado ao fim e que acolhiam aquele instante, atĆ© entĆ£o temido, como uma libertaĆ§Ć£o. 

O jornalista conta que ao explicar que nĆ£o era agente da Gestapo e nem sequer alemĆ£o, notou que a desilusĆ£o e a angĆŗstia tomaram conta daqueles amargurados rostos. “Um dos rapazes jĆ” tinha tirado o xale imundo e colocado nos ombros de uma senhora, um gesto de adeus que se repetia entre os judeus quando a polĆ­cia ia buscĆ”-los. Ele estava lendo, em um canto da sala, quando eu apareci Ć  porta da casa”, relata o autor. “Levantou-se de chofre, abotoou os sapatos, endireitou os trapos sujos que lhe serviam de meias, procurou o colarinho da camisa esfarrapada debaixo da gola do paletĆ³. Tossia, cobrindo a boca com a mĆ­sera mĆ£o.”

SEM UTILIDADE

Desfazer-se das roupas e distribuĆ­-las a parentes e amigos quando a Gestapo batia Ć  porta era quase uma rotina entre os moradores dos guetos. Malaparte recorda que viu dois judeus completamente nus, um deles um rapazote de 16 anos, caminhando sobre a neve em uma manhĆ£ glacial de inverno. Ladeados por milicianos armados da SS, eles enfrentavam um frio cortante de 35 graus abaixo de zero. Sobre essa cena incrĆ­vel, narrada pelo escritor ao governador da CracĆ³via, Otto WƤchter (morto em 1949), este justificou amavelmente a situaĆ§Ć£o, explicando que os judeus se despiam porque, para eles, as roupas jĆ” nĆ£o tinham utilidade.

Em outra oportunidade, convidado para um jantar de gala em homenagem ao general-governador da PolĆ“nia, Hans Frank (enforcado em 16 de outubro de 1946), o jornalista se viu envolvido em um animado bate-papo sobre o gueto de VarsĆ³via. Era um banquete dedicado Ć  Diana caƧadora, figura mitolĆ³gica, e a cĆŗpula nazista compareceu em peso. O local era o palĆ”cio Bruhl, antiga sede do MinistĆ©rio das RelaƧƵes Exteriores da PolĆ“nia transformado no QG do governo alemĆ£o de VarsĆ³via. 

No cardĆ”pio iguarias como faisƵes, lebres e um gamo das florestas de Radziwilow, trazido por dois criados de librĆ© azul. Em seu dorso estava cravada uma rubra bandeirinha hitleriana com a negra cruz gamada. Para a sua surpresa, Malaparte foi o primeiro a ser servido pela virtude de ter nascido italiano. Presente Ć  mesa, o governador de VarsĆ³via, Ludwig Fischer (morto em 1947), escorria com a colher um molho dourado sobre as fatias de carne e detalhava como eram sepultados os judeus no gueto: uma camada de cadĆ”veres e uma camada de cal, explicava, como se dissesse uma fatia de carne e uma camada de molho.

MODELO

Saboreando um charuto apĆ³s o jantar, o autor lembra que um dos convidados ofereceu-lhe, em um cĆ”lice de cristal, a tradicional bebida dos caƧadores alemĆ£es, o turkischblut ou sangue de turco, uma mistura do rubro vinho de Borgonha, um Volnay denso e tĆ©pido, com o pĆ”lido champagne de Mumm. Ao seu lado, o general-gouverneur Frank elogiava a organizaĆ§Ć£o imposta ao gueto de VarsĆ³via, considerando-a um verdadeiro modelo para toda a PolĆ“nia. Por sua vez o governador de VarsĆ³via, Fischer, discursava sobre a eficiĆŖncia de seu trabalho, assinalando, com orgulho, que no mesmo espaƧo em que, antes da guerra, viviam 300 mil pessoas, estavam agora mais de um milhĆ£o e meio de judeus. 

Apenas, modestamente se eximia da culpa de todos no gueto ficarem um pouco apertados.
Os diĆ”logos surrealistas daquela elite cruel e cĆ­nica eram anotados mentalmente por Malaparte em sua trajetĆ³ria de repĆ³rter de uma civilizaĆ§Ć£o em ruĆ­nas. Enquanto os homens de Hitler discorriam sobre judeus e guetos no gabinete atapetado cheirando a conhaque e tabaco, e suas mulheres, as fraus, tricotavam ao pĆ© do fogo de lenha de carvalho que crepitava na lareira, a realidade nas gĆ©lidas ruas do gueto de VarsĆ³via nĆ£o comportava eufemismos. “Ali, bandos de cĆ£es ossudos farejavam o ar atrĆ”s dos fĆŗnebres comboios, e tropĆ©is de meninos maltrapilhos, trazendo no semblante os sinais da fome, da insĆ“nia e do medo, recolhiam na neve os trapos, os pedaƧos de papel, as latas vazias, as cascas de batatas e todos aqueles preciosos rebotalhos que a misĆ©ria, a fome e a morte sempre deixam atrĆ”s de si.”

UM NOME NAS ESTRELAS

Escritor elogiado pelo presidente francĆŖs Nicolas Sarkozy (durante as eleiƧƵes, perguntado pelas suas preferĆŖncias literĆ”rias, o entĆ£o candidato revelou que estava lendo ‘Kaputt’), Curzio Malaparte subiu a alturas poucas vezes alcanƧadas por seus pares, ao batizar, com o seu nome, uma estrela no espaƧo sideral. Isso se deu em outubro de 1980, vinte e trĆŖs anos apĆ³s a sua morte. O astrĆ“nomo tcheco Z.VĆ”vrovĆ”, do ObservatĆ³rio de Klet, descobriu o planeta nĆŗmero 03479, um corpo celestial do tamanho de um asterĆ³ide gigante e o denominou de Malaparte, uma homenagem ao seu autor favorito.

Testemunha ocular da chacina de Jassy, Malaparte tambĆ©m se transformou em personagem e inspirou o escritor norte-americano radicado na FranƧa, Samuel Astrachan, a escrever a obra “Malaparte in Jassy”, publicada em 1989, onde o autor rememora os passos do jornalista, antes e durante o pogrom. Ainda sobre a tragĆ©dia de Jassy, o diretor do Instituto do Congresso Judaico Mundial de JerusalĆ©m, professor Laurence Weinbaum, transcreveu trechos de Kaputt em seu trabalho “A Banalidade da HistĆ³ria e da MemĆ³ria: A Sociedade Romena e o Holocausto (2006)”. Especialista em assuntos do Leste Europeu, Weinbaum cita o testemunho de Malaparte ao cobrar do governo da RomĆŖnia o reconhecimento oficial da participaĆ§Ć£o daquele paĆ­s, ainda que tardio, na matanƧa de 15 mil judeus durante a ocupaĆ§Ć£o nazista.

Malaparte teve seu nome incluĆ­do na lista de autores nĆ£o recomendados pela Igreja CatĆ³lica, assim como foram Galileu Galilei e Baruch Spinoza. Implantado pelo Papa Paulo IV, em 1559, o Index Librorum Probitorum (ƍndice dos Livros Proibidos) tinha a finalidade de proibir a leitura de determinados textos (inclusive o Talmud e o CorĆ£o), sob pena de excomunhĆ£o. Nas suas vĆ”rias versƵes, o Index acabou se tornando uma espĆ©cie de guia dos livros que deveriam ser lidos, uma espĆ©cie de fonte de orientaĆ§Ć£o para quem tentava entender o mundo atravĆ©s dos livros. Em 1966, o Index foi abolido pelo Papa Paulo VI.

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