Prof. Shlomo Haramati
D. Pedro II, imperador do Brasil de 1841 a 1889, era conhecido por sua vasta cultura e ampla gama de interesses, dominando diversos idiomas inclusive o hebraico.
Segundo o semanĆ”rio HaMaguid (O Anunciador), o primeiro a ser editado na Europa na lĆngua hebraica, “as lĆnguas europĆ©ias D. Pedro falava e escrevia com desenvoltura, e tambĆ©m conhecia bem o hebraico”.
Houve sempre, por parte do imperador brasileiro, profundo interesse em assuntos de cultura geral e cientĆfica e extrema dedicaĆ§Ć£o ao estudo de idiomas.
Participava de diversas academias de ciĆŖncias e letras, tendo sido eleito membro da Academia Francesa e tornando-se imortal.
Continua HaMaguid: “Era membro ativo de diversas sociedades cientĆficas na Europa e foi eleito para a Liga dos Quarenta SĆ”bios, em Paris”.
Ainda jovem, D. Pedro II demonstrou especial interesse pela lĆngua hebraica, a qual estudou durante toda a sua vida com afinco, com o auxĆlio de rabinos e professores judeus em sua pĆ”tria e tambĆ©m no exterior.
HĆ” diversos testemunhos quanto ao excelente domĆnio da lĆngua hebraica a que chegou D. Pedro, incluindo fala fluente e redaĆ§Ć£o criativa.
Segundo o prĆ³prio D. Pedro, seu primeiro professor foi um judeu sueco chamado Akerblom.
ApĆ³s a morte deste, estudou o imperador com o Dr. Heining, falecido em 1888.
O Dr. Koch tambƩm Ʃ lembrado como um de seus professores de hebraico.
A partir de 1886 estudou D. Pedro com seu assistente de pesquisas, Dr. Christian Seybold, que era tambĆ©m professor de lĆnguas orientais.
Com ele estudou tambĆ©m Ć”rabe, com o objetivo, segundo seu prĆ³prio comentĆ”rio, de entender melhor o hebraico e tambĆ©m capacitar-se a ler a literatura Ć”rabe no original.
Seu apego Ć lĆngua hebraica foi interpretado como uma forma de compensar os atos de crueldade cometidos por seus antepassados, reis de Portugal, durante a InquisiĆ§Ć£o, e tambĆ©m motivado por sua vontade de ler a BĆblia no original.
Contam que certa vez encontrou D. Pedro, nos jardins do palĆ”cio, uma BĆblia em hebraico que havia sido perdida por um pastor protestante.
Esta descoberta provocou em D. Pedro forte emoĆ§Ć£o, a ponto de levĆ”-lo a tomar a decisĆ£o de estudar hebraico.
Estudou D. Pedro o hebraico durante toda a sua vida, e quando foi deposto pelos republicanos em 1889 encontrou alĆvio para seu sofrimento no exĆlio estudando lĆnguas, aprofundando especialmente seu conhecimento da gramĆ”tica e literatura hebraicas.
Um de seus biĆ³grafos, Georg Raeders, assim descreveu:
1- “A fim de encontrar consolo em seus anos de exĆlio, ele tambĆ©m estudou grego e Ć”rabe, mas acima de tudo sentia-se atraĆdo pelo hebraico.
E a razĆ£o disto era que em seu exĆlio ele se identificava com um povo que tambĆ©m vivia exilado.
NĆ£o hĆ” dĆŗvidas que seu profundo interesse pelo hebraico, em seus Ćŗltimos anos de vida, resultava de ser esta a lĆngua de um povo que vivia na diĆ”spora, estando ele prĆ³prio solitĆ”rio e longe de sua pĆ”tria.
2- Sua afinidade com o hebraico foi tambƩm por vezes ridicularizada.
Em 1872, o romancista portuguĆŖs EƧa de Queiroz publicou artigo criticando as viagens de D. Pedro Ć Europa e aos Estados Unidos.
“Sua Majestade,” escreve o romancista, “conhecido pela modĆ©stia nos costumes e nas iguarias que impƵe no palĆ”cio real, tem na verdade uma gula especial e Ćŗnica - a lĆngua hebraica.
Por nĆ£o levar acompanhante conhecedor do hebraico em suas longas e tediosas viagens por trem, assim que chega, faminto, ao seu destino, sendo festivamente recebido, sĆ³ sabe balbuciar: ‘Hebraico...’”.
E continuava EƧa de Queiroz: “Certa vez, quando recebido com pompa nos palĆ”cios reais ingleses e solicitado a exprimir suas vontades e preferĆŖncias, exclamou com voz sofrida: ‘Hebraico!..’ Os oficiais da recepĆ§Ć£o, espantados, tiveram a genial idĆ©ia de levar o imperador a uma sinagoga. Rodeado por judeus imersos em suas oraƧƵes, pĆ“de deglutir D. Pedro, com muita curiosidade e satisfaĆ§Ć£o, porƧƵes sem fim de hebraico”.
Em seu exĆlio escreveu D. Pedro um livro de gramĆ”tica hebraica, em francĆŖs, e traduziu do hebraico para o francĆŖs a canĆ§Ć£o “Had GadiĆ””, da HagadĆ” de Pessach (1), por entender que esta canĆ§Ć£o refletia a essĆŖncia da justiƧa divina e seu poder sobre a vida e a morte.
Traduziu tambĆ©m, de um jargĆ£o misto de hebraico e provenƧal, para o francĆŖs, trĆŖs cĆ¢nticos litĆŗrgicos antigos (sĆ©c. XVI ou XVII), que costumavam ser entoados nas festas de Brit MilĆ” (2) e Purim (3) por algumas comunidades na Provence.
Sobre estas traduƧƵes observou Sokolov (4):
“Nenhum de nossos homens de letras teve a idĆ©ia de salvar do esquecimento e da perda estas peƧas do folclore judaico, atĆ© que veio o imperador brasileiro e coletou-as, interpretou-as, traduziu-as e publicou-as, com total fidelidade aos originais”.
No livro que publicou com estas traduƧƵes (5), aduziu D. Pedro na introduĆ§Ć£o a histĆ³ria destas canƧƵes e seu valor literĆ”rio, para que seus leitores pudessem captar a luminosidade oculta nos tesouros da literatura hebraica.
No prefĆ”cio deste livro, declarou o monarca brasileiro seu amor pela lĆngua hebraica e descreveu as sucessivas etapas de seu estudo, mencionando com reverĆŖncia os nomes de seus professores de hebraico, como citamos anteriormente.
Nos anos 70 e 80 do sƩculo XIX, ainda imperador do Brasil, D. Pedro viajou diversas vezes para a AmƩrica do Norte e Europa.
Nessas viagens ele ampliou seu conhecimento de lĆnguas antigas (sĆ¢nscrito, grego e hebraico), como menciona ediĆ§Ć£o de HaMaguid de 1887:
“D. Pedro II, imperador do Brasil, Ć© pessoa culta e estudada. Em suas horas livres ocupa-se do estudo do sĆ¢nscrito, do grego, do hebraico e suas literaturas. Para este fim, ele leva consigo em suas viagens ao exterior muitos livros raros, escritos nessas lĆnguas, despendendo horas em sua leitura”.
3 - Em suas viagens costumava D. Pedro encontrar-se com intelectuais judeus de sua Ć©poca, como Adolf Frank (1809-1893), primeiro professor judeu na Sorbonne, Israel Michel Rabinowitz (1818-1893), que traduziu parte do Talmud para o francĆŖs, Julius Opert (1825-1905), assiriologista muito conhecido na Ć©poca, A.A.Neubauer (1831-1907), pesquisador de manuscritos hebraicos e diretor da biblioteca da Universidade de Oxford nos anos 1873-1900 e MoĆÆse Schwab (1839-1918), diretor da BibliothĆØque Nationale de Paris e tradutor do Talmud de JerusalĆ©m para o francĆŖs.
Quando chegou D. Pedro a SĆ£o Petersburgo em 1876, encontrou-se com A.A.Harkavi (1839-1919), diretor da Biblioteca Real, que era conhecido como pesquisador de manuscritos hebraicos antigos. D. Pedro manteve com ele longas discussƵes sobre os manuscritos que lĆ” se encontravam.
Quando de seu exĆlio em Paris (1889-1891), manteve D. Pedro laƧos de amizade com intelectuais e escritores hebraĆstas e judeus.
NĆ£o Ć© de surpreender que nessa Ć©poca a visĆ£o aguƧada de Ephraim Deynard (1846-1936), bibliĆ³grafo e comerciante de manuscritos hebraicos, tenha atraĆdo o mui-ilustrado imperador no exĆlio para oferecer-lhe manuscritos e livros hebraicos antigos.
Foi divulgada carta de Deynard a D. Pedro, na qual destaca o conhecimento da lĆngua hebraica pelo imperador, o que o eternizaria:
“Desta forma Sua Majestade destacou-se e gravou seu nome, em letras luminosas, na histĆ³ria e no coraĆ§Ć£o do povo do Deus de AbraĆ£o”.
E assim cumprimentou Deynard o imperador, em seu nome e em nome do povo de Israel:
“Esta saudaĆ§Ć£o Ć©-lhe dirigida por dezenas de milhares de filhos de Israel, pela grande honra que Sua Majestade conferiu a este povo antigo por ter estudado sua lĆngua”.
Em suas viagens ao exterior costumava D. Pedro visitar sinagogas.
Consta que em 22 de setembro de 1876 esteve em visita Ć sinagoga de Odessa e impressionou-se com a bela melodia das oraƧƵes.
Sobre as visitas de D. Pedro a sinagogas escreveu o historiador A.R.Malachi:
“Entrava incĆ³gnito e sentava-se junto Ć porta, como se fosse um visitante pobre.
Em algumas sinagogas, pensando que fosse judeu, quiseram dar-lhe a honra de ler na TorĆ” (6) e, para tal, perguntaram-lhe seu nome e de seu pai.
Mas o visitante dizia a verdade, respondendo que nĆ£o era judeu”.
Temos testemunhos de que D. Pedro costumava rezar em sinagogas, com o livro prĆ³prio de oraƧƵes em hebraico.
Seguindo as instruƧƵes contidas no livro, certa vez na sinagoga de Bruxelas, soube quando levantar-se e o que dizer, acompanhando atentamente a liturgia.
Segundo outras fontes, cumpriu sim D. Pedro o ritual da “subida” Ć TorĆ”, dizendo as respectivas bĆŖnĆ§Ć£os em hebraico e atĆ© mesmo traduzindo os versĆculos que havia lido.
Assim ocorreu em sua visita a Londres em 1871, na grande sinagoga da Great Portland Street, e tambƩm na sinagoga de Bruxelas.
Nesta Ćŗltima, diante do espanto geral dos circunstantes, declarou D. Pedro:
“Levarei comigo, em meu coraĆ§Ć£o, o selo da TorĆ” de MoisĆ©s, e suas palavras pairarĆ£o para sempre diante de meus olhos”.
4 - Conta-se que tambĆ©m “subiu” Ć TorĆ” na sinagoga da cidade de SĆ£o Francisco, na CalifĆ³rnia, e tambĆ©m lĆ” demonstrou seu conhecimento atravĆ©s da traduĆ§Ć£o correta dos versĆculos que leu.
Discutiu, inclusive com os rabinos, sobre a importĆ¢ncia da lĆngua hebraica.
Em dezembro de 1876 visitou D. Pedro a Terra Santa, tendo participado com os judeus de JerusalĆ©m das oraƧƵes de sexta-feira Ć noite, junto ao Muro das LamentaƧƵes.
Foi provavelmente nesta viagem que adquiriu o imperador os rolos da TorĆ”, recentemente redescobertos no Museu Nacional no Rio de Janeiro. (7)
Como dito, dominava D. Pedro II a lĆngua hebraica, a ponto de manter conversaĆ§Ć£o fluente.
Conta-se que no tempo em que foi imperador, convidou alguns lĆderes da comunidade judaica brasileira a seu palĆ”cio.
Quando se apresentaram, com todo o respeito devido a Sua Majestade, este dirigiu-se a eles em hebraico.
O espanto dos lĆderes judeus foi grande:
Por nĆ£o entenderem palavra do que o imperador lhes dizia e porque nĆ£o poderiam supor que Sua Majestade se dirigiria a eles em hebraico.
Passada a surpresa, o imperador repreendeu-os:
“Que judeus sĆ£o vocĆŖs, que nĆ£o compreendem a lĆngua de seus antepassados ?!”
D. Pedro faleceu em Paris em 5 de dezembro de 1891.
Na eulogia publicada no jornal HaTsfirĆ” (A Sirene), editado em VarsĆ³via na lĆngua hebraica, escreveu Israel Isser Goldblum (1863-1925) sobre a vasta cultura de D. Pedro II e seu especial interesse pela lĆngua hebraica, tendo sido salientado o fato de o imperador do Brasil saber e falar fluentemente o hebraico:
“Bem aventurados aqueles que viram D. Pedro II, Imperador do Brasil, e ouviram-no falar na lĆngua sagrada.
Bem aventurados todos aqueles que o saudaram e foram por ele saudados”.
O texto acima foi extraĆdo do livro “O Hebraico Vivo AtravĆ©s das GeraƧƵes”, publicado em Israel em 1992.
Devidamente atualizado, foi transmitido como palestra pelo prĆ³prio autor na rĆ”dio israelense Kol Israel em dez/1998.
Sobre o autor: Shlomo Haramati Ć© professor de LinguĆstica Aplicada na Universidade Hebraica, JerusalĆ©m.
Foi pesquisador da UNESCO, tendo atuado na Ć”rea da erradicaĆ§Ć£o do analfabetismo.
Foi agraciado com o “PrĆŖmio JerusalĆ©m” em 1974, pelo desenvolvimento de mĆ©todos para o ensino do hebraico como lĆngua materna e como lĆngua estrangeira.
TraduĆ§Ć£o: Ephraim Knaan e MoshĆ© Waldmann
Notas dos tradutores:
(1) HagadĆ” de Pessach: Texto que descreve o ĆŖxodo dos judeus do Egito, lido anualmente na PĆ”scoa
judaica.
(2) Brit MilĆ”: CerimĆ“nia de circuncisĆ£o.
(3) Purim: Festival anual que comemora a salvaĆ§Ć£o dos judeus no exĆlio persa.
(4) Sokolov, Nahum (1861-1936): Decano dos jornalistas e escritores israelenses.
(5) PoĆ©sies HĆ©braĆÆco-ProvenƧales du Rituel IsraĆ©lite Comtadin. Traduites et Transcrites par S.M.
Dom Pedro II D’Alcantara, Empereur du BrĆ©sil. Avignon 1891. (Cf. Elias Lipiner, 1916-1998,
escritor brasileiro-israelense, em seu texto “Imperador do Brasil e Amante do Hebraico” pu-
blicado no mensĆ”rio “Am VaSefer” [Povo e Livro], Israel, fev/1966)
(6) TorĆ”: Rolos de pergaminho contendo a histĆ³ria e as leis bĆ”sicas do povo judeu, lidos ao longo
de cada ano.
(7) Pesquisadores consideram estes rolos da TorĆ” como dos mais antigos existentes, remontando ao
sĆ©culo XIV ou XV. Foram tombados pelo Instituto do PatrimĆ“nio HistĆ³rico e ArtĆstico Nacional
(IPHAN) e encontram-se em exibiĆ§Ć£o no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro.
Vivendo e aprendendo. estou lendo um livro muito interessante " A canja do Imperador", de Dias Lopes, e surpreendi-me ao saber que Dom Pedro era fluente em hebraico. Dai que vim pesquisar sobre o assunto e4 descubro este emocionante artigo sobre nosso querido ex Imperador.
ResponderExcluirCordiais saudaƧƵes,
Regina Caldas
Minha bisavĆ³ jĆ” falava desse nosso ilustre imperador (conheceu-o em sua adolescĆŖncia). Pessoa afĆ”vel e humilde que a todos dava atenĆ§Ć£o, em suas caminhadas pelas quintas do antigo bairro da Tijuca - Rio de janeiro (onde minha bisavĆ³ morava), era frequente conversar com seus sĆŗditos. Era inteligente, honesto e de boa conduta, mas bastou alguns militareszinhos de pouca monta para destronarem e transformarem o Brasil nesta repĆŗblica que bem conhecemos. Foi um dos melhores homens pĆŗblicos que o nosso paĆs jĆ” teve, senĆ£o o melhor. NĆ£o me admira o artigo apresentado, era tambĆ©m estudioso de astronomia, geologia, egiptologia etc, enfim, era um homem de grandes conhecimentos.
ResponderExcluirAbraƧos,
Dionor A. Ferreira
A vida intelectual deste sapientĆssimo Imperador sempre me surpreendeu.Sou Bacharel em Letras orientais e eslavas(lĆngua Ć”rabe)pela UFRJ e estou estudando a ligaĆ§Ć£o que o saudoso Imperador teve com a magnĆfica lĆngua do profeta MaomĆ©.SĆ£o muitasemoƧƵes.Alex Bonifacio,Bonsucesso, Rio de Janeiro.
ResponderExcluirViva Pedro. Maior brasileiro de todos os tempos, cuja idoneidade e patriotismo transpareceram nas mais diversas situaƧƵes. Homem culto, vocacionado, bem preparado, ousado... Amava e acreditava no Brasil, buscava desenvolvimento - e nĆ£o apenas progresso. Deixou-nos com o coraĆ§Ć£o partido, ridicularizado pelo vergonhoso "decreto de banimento" assinado por indivĆduos ditos republicanos, para os quais, a exemplo de Ruy Barbosa, bastaram alguns anos para se darem conta da injustiƧa histĆ³rica que protagonizaram. Precisamos de outros iguais para colocarmos nosso paĆs nos trilhos novamente.
ResponderExcluir