Nada mais inteiro do que um coração partido*...
©Jane Bichmacher de Glasman **
ENTRE ANGÚSTIAS
Assim como de Pessah a Shavuot efetuamos uma contagem de 7 semanas de semi-luto, temos outro período de 3 semanas, de 17 de Tamuz (este ano, em 20 de julho de 2008) a 9 de Av (10/8/08), conhecido como bein há-meitzarim que significa entre angústias, aflições ou literalmente, estreitezas.
Esta seria a origem judaica da expressão agosto, mês de desgosto, introduzida por cristãos-novos, pois o mês de Av costuma cair nesta época (volto a escrever sobre isto em agosto).
PARA QUE SERVE O LUTO?
Mesmo sem entrar em profundas considerações psicanalíticas, a "elaboração" do luto pode ser benéfica. O ritual envolve respeito e honra pelo morto, mantendo sua memória e nossa conexão emocional-afetiva com ele. Permite que o enlutado efetue um tipo de catarse de sua dor, como meio de se sentir menos deprimido, expressando-a de diversas formas, inclusive relembrando passagens de vida e características do falecido.
O luto ajuda o enlutado a sentir que está fazendo o que está a seu alcance, já que tanto frente à morte como a desgraças ocorridas com o povo, há momentos em que nada podemos fazer para deter o desenrolar trágico.
A tradição judaica ensina meios pelos quais pode-se unir a aflição singular de modo tanto comunal quanto particular, dando apoio para se seguir adiante. Os costumes de luto judaicos servem para transformar os caos de aflição interiorizada em um padrão de ordem, para que a introversão possa ser substituída por um reconhecimento aberto de perda compartilhada.
O indivíduo, ao seguir o ritual do luto judaico, como Shivá e recitar o Kadish, sente que está fazendo "algo" pelo ser querido. Quanto ao público, como em bein-há-meitzarim, nossos sábios adequaram o enfoque: não se espera que o homem mude o mundo nem que com seu semi-luto terminem todas as tragédias judaicas, mas que se una na dor a seu povo, não permanecendo indiferente a seus irmãos.
UM SÓ CORAÇÃO...
O Hassidismo (Tanya 31) distingue a dor construtiva (merirut) da destrutiva (atzvut).
Uma possibilita o auto-aperfeiçoamento, conduz à ação procurando desfazer a causa com reflexão e planejamento; a segunda, afoga-se em suas lágrimas.
Ditos hassídicos sintetizam lindamente: "A depressão não é um pecado; mas o que ela fez, pecado nenhum logra" e "Nada mais inteiro do que um coração partido"...
Em 17 de tamuz lembramos de muitas rupturas: das tábuas por Moisés; das muralhas de Jerusalém; do santuário do Templo profanado; da oferenda diária interrompida; dos rolos de Torá queimados por Apóstomo... Não foi à toa que Saddam Hussein "batizou" seu reator nuclear de Tamuz 17!
Estamos com o coração partido, com a dor do luto pelas mortes de Ehud Goldwasser e Eldad Regev – z'l - os dois soldados seqüestrados que foram devolvidos – em caixões - para Israel. O quadro (veja a ilustração) do sobrevivente da Shoá Samuel Bak, "Não Matarás", ilustra de forma, ao mesmo tempo testemunhal e tragicamente profética, a contigüidade deste fato e 17 de tamuz.
É hora de unirmos nossos corações em prece por Udi e Eldad; é hora de kadish e tehilim; é hora também de nos unirmos em apoio às famílias dos dois, a Israel, e... de cobrarmos a liberdade de Gilad Shalit – vivo!
*Extraído dos artigos da autora Entre Alegrias e Tristezas, Banquetes e Jejuns, publicados na Revista O Hebreu, nº 274, 2003 e A morte no judaísmo, no Jornal Visão Judaica 48, julho de 2006. A frase é do Rabi Menachem Mendel de Kotzk (Polônia, 1787-1859), um dos grandes líderes hassídicos do século XIX.
**Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica - USP, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos – UERJ, Professora Coordenadora do Setor de Hebraico - UERJ e UFRJ (aposentada), escritora