A disputa em torno de várias obras de arte da coleção Leopold, de Viena, que foram roubadas pelos nazistas, revela até que ponto as instituições de arte estão tentando evitar a devolução de arte saqueada.
Ulrike Knöfel e Marion Kraske
Após um zumbido suave, uma porta de madeira se abre para revelar a vista do pátio de um prédio tendo como fundo as colinas cobertas por vinhedos próximas de Viena. Uma empregada filipina nos recebe com um sorriso e então um senhor idoso, delgado, de aparência nervosa, passa correndo por ela, com sua pasta na mão e sua capa de chuva balançando.
O homem é Rudolph Leopold. Ele diz que tem um compromisso importante e nos pede para sermos pacientes. A entrevista, ele diz, que também incluirá um fotógrafo, exige que ele faça a barba na barbearia virando a esquina.
Três quartos de hora depois, Leopold, 83 anos, aparece na sala de estar da casa labiríntica e senta-se em uma cadeira rústica. Pinturas a óleo escuras, incluindo uma do pintor holandês Roelant Savery, pintada em 1606, adornam as paredes.
Com sua barba apropriadamente aparada, o homem agora parece pronto para lutar, quase como se tivesse usado a sessão com o barbeiro para se preparar, física e mentalmente, para a dura batalha.
Leopold, o colecionador de arte mais conhecido da Áustria, está realmente lutando por sua reputação e a do templo de arte, cor de areia, no centro de Viena que leva seu nome, o Museu Leopold.
Apesar da antiga suspeita de que o museu abrigava arte roubada, a discussão do assunto recentemente se tornou particularmente acalorada. A arte roubada em questão consiste de obras que proprietários judeus foram forçados a entregar durante o período nazista.
Leopold, natural de Viena, reuniu impressionantes 5.500 obras de arte ao longo de várias décadas. É um feito, ele diz orgulhosamente, que exige "um talento natural". Um médico e oftalmologista, Leopold não faz segredo de sua fé em sua habilidade como colecionador. Ele destaca que é conhecido e respeitado internacionalmente como um dos "maiores peritos de arte em pinturas dos séculos 19 e 20".
As obras do pintor austríaco Egon Schiele, que morreu em 1918, quando tinha apenas 28 anos, e cuja extensa obra é centrada em nus desajeitados e freqüentemente quase pornográficos de mulheres e meninas, são aquelas para as quais ele, Leopold, diz ter ajudado a desenvolver uma reputação internacional com uma exposição em Amsterdã, em 1955.
Não há dúvida de que Leopold almejou grandes coisas para a arte austríaca e que foi bem-sucedido em alguns aspectos. Para os fãs de Schiele, seu museu, com sua coleção sem precedente de obras do pintor expressionista, é o principal em todo mundo.
Mas agora o museu subsidiado pelo governo está à beira de se tornar uma mancha nacional. O presidente da Comunidade Cultural Israelita de Viena, Ariel Muzicant, até mesmo pediu pelo fechamento do museu até que certas questões sejam resolvidas. Além disso, o grupo judaico publicou recentemente um relatório sobre o que considera obras amorais na coleção Leopold.
Ironicamente, no mesmo ano em que a Áustria está comemorando o 70º aniversário do "Anschluss", sua anexação à Alemanha nazista, com uma série de eventos, o mundo da arte revela como capítulos sensíveis desse passado ainda continuam não resolvidos. E as alegações são realmente sérias.
A Fundação Museu Leopold privada, criada em 1994, está no centro da controvérsia. O Estado austríaco, que comprou a coleção Leopold por 160 milhões de euros, é dono de 50% da fundação. Apesar de seu financiamento público, o museu Leopold é considerado uma instituição privada. É um esquema para também proteger o museu contra pedidos de restituição, porque estes pedidos freqüentemente só são eficazes quando impetrados contra instituições de propriedade do governo.
Por um lado, o debate se concentra nas pinturas na atual exposição especial de obras do pintor histórico austríaco Albin Egger-Lienz (1868-1926), que não é muito conhecido mas já foi admirado pelos nazistas. A procedência de pelo menos 15 das pinturas, incluindo várias obras emprestadas de museus provinciais austríacos menores, é considerada duvidosa. Assim como de duas pinturas adquiridas por Leopold, "Cena na Floresta" e "Os Ceifadores da Montanha", assim como um esboço para a pintura "Após o Armistício".
Há outras pinturas na coleção do museu com histórias sombrias. Segundo especialistas, elas incluem várias obras de Egon Schiele e de outro pintor austríaco, Anton Romako (1832-1889):
-"Retrato de Wally" (Schiele)
-"Casas à Beira-Mar" (Schiele)
-"Mulher em Roupa de Baixo" (Schiele)
-"Nike com Grinalda" (Romako)
-"A Fonte" (Romako)
-"Nu de uma Jovem" (Romako)
-Quatro desenhos de Schiele que não são muito conhecidos.
Mas especialistas também dizem que uma pesquisa detalhada certamente revelaria mais arte roubada.
Há histórias dramáticas por trás de cada quadro. A pintura "Casas à Beira-Mar" de Schiele era originalmente de propriedade de Jenny Steiner, uma colecionadora judia. Após os nazistas chegarem ao poder, ela fugiu para o Brasil e depois para os Estados Unidos. Ela foi forçada a deixar uma fortuna em obras de arte para trás, em seu apartamento em Viena. Como em centenas de milhares de outros casos, o Escritório Nazista de Transferência de Propriedade apreendeu as obras.
Mas a pergunta é quanto Leopold sabia a respeito quando comprou suas pinturas. Ele não tinha conhecimento, como alega? Ou houve algum caso em que sua paixão e amor pela pintura prevaleceu sobre um melhor julgamento?
Uma lista de obras de Schiele publicada nos anos 30 identifica Jenny Steiner como proprietária de "Casas à Beira-Mar". Leopold adquiriu pessoalmente a obra em um leilão.
E há o desenho em giz preto de Schiele, "Mulher em Roupa de Baixo", da coleção de Heinrich Rieger. Rieger, um dentista judeu de Viena, foi assassinado no campo de concentração Theresienstadt em outubro de 1942. Cerca de seis meses depois, o jornal "Völkischer Beobachter" anunciou o confisco de seus bens. O banco de dados de procedência do Museu Leopold não menciona o fato da pintura ter pertencido a Rieger.
'O espírito dos museus não foi desnazificado'
Os críticos há muito vêem Leopold como um homem obcecado, que pode ser implacável quando se trata de suas pinturas. Há um rumor, entre as pessoas do meio, de que o amante de arte e empreendedor adquiriu suas pinturas valiosas de proprietários ingênuos por algo próximo de nada, e que contrabandeava seu saque inestimável pelas fronteiras em uma mala surrada cheia de roupas velhas.
O velho rijo rejeita essas acusações. "Eles querem arruinar a obra da minha vida e pessoalmente me desacreditar", ele diz furiosamente, batendo sua mão em uma mesa rústica de madeira. As acusações, ele diz, são "mentiras". "Não há uma única pintura que eu não tenha adquirido legalmente. Eu sempre agi em boa fé", diz Leopold.
A Comunidade Cultural Israelita, em particular, não tem uma boa opinião a respeito dessas alegações e exige uma ação por parte da República da Áustria. O país, insiste o grupo, já forçou as vítimas do terror nazista a passarem décadas lutando para recuperar suas propriedades.
A abordagem infeliz da Áustria às questões de restituição no passado recente é refletida no cabo-de-guerra indigno em torno de cinco pinturas mundialmente famosas do pintor Gustav Klimt (1862-1918), na Galeria Belvedere da Áustria. Após uma batalha legal prolongada, a galeria foi ordenada a devolver as pinturas para a sobrinha do ex-proprietário em 2006.
A herdeira idosa vendeu a obra mais famosa, o retrato intitulado "Adele Bloch-Bauer I" para o colecionador Ronald Lauder de Nova York. Ele pagou US$ 135 milhões pela obra, a tornando a pintura mais cara do mundo na época, e agora enfrenta críticas que dizem que sua única motivação para apoiar a busca por arte roubada por anos foi para ter acesso a obras-primas de qualidade de museus.
A Áustria sancionou uma lei de restituição em 1998 para regular estas questões sensíveis e uma emenda à lei é esperada neste ano. Mas críticos, como Alfred Noll, o advogado das vítimas, se queixa de que a lei tem, e continuará tendo, muitas brechas, o que transforma cada caso de restituição em um "puro ato de misericórdia" por não incluir uma linguagem que defina a validade das reivindicações legais das vítimas.
Além disso, a lei austríaca só se aplica a propriedade do Estado. Segundo outro estudo da Comunidade Cultural Israelita, a expansão da obrigação de devolução de arte roubada visando incluir obras em coleções privadas seria possível segundo a Constituição austríaca.
Isto, reage Leopold, seria o equivalente a "expropriação". Por décadas, ele se queixa, ninguém esteve interessado em suas pinturas e apenas após os preços aumentarem em mais de 20.000% é que repentinamente surgiu um grande interesse na restituição. Ele é rápido em citar um exemplo. Por seu primeiro Schiele, o esboço para a pintura "Cidade Morta", ele diz que pagou apenas 2.200 xelins austríacos, ou US$ 253, em 1950. O esboço agora vale cerca de US$ 474 mil, diz Leopold.
As pinturas de Leopold são apenas um punhado das dezenas de milhares, talvez até mesmo centenas de milhares, de obras de arte em todo mundo que deveriam causar desconforto moral a seus atuais donos. Mas muitos amantes de arte e diretores de museu aparentemente permanecem tão desarrazoado como sempre.
Na Alemanha, mas também em muitos outros países, a questão de arte roubada foi tabu por décadas. Apesar dos aliados ocidentais terem devolvido parte da arte roubada pelos nazistas logo após o final da Segunda Guerra Mundial, suas ações foram seguidas por um silêncio desconfortável no mundo da arte alemão.
"O espírito dos museus ainda não foi desnazificado", diz Clemens Toussaint, 47 anos, uma espécie de detetive de arte que rastreia propriedade de famílias judias nos últimos 20 anos. Segundo Toussaint, a magnitude da pilhagem cultural nazista só se tornou mais clara nos últimos anos.
Foi o colecionador de arte Leopold que, involuntariamente, aumentou a consciência popular para o tamanho do problema. No final de 1997, ele emprestou "Retrato de Wally" de Schiele e seu "Cidade Morta III" para o Museu de Arte Moderna de Nova York, onde o promotor Robert Morgenthau confiscou as pinturas em janeiro de 1998. "Cidade Morta" foi devolvida, mas "Wally" não.
De lá para cá, o retrato é mantido em um cofre em Nova York -e no centro de uma batalha judicial na qual os herdeiros do ex-proprietário judeu estão exigindo a devolução da obra. Uma nova rodada de audiências ocorrerá em breve. O ex-proprietário apelou a Leopold nos anos 50, mas sem sucesso.
O escândalo provocado pelo confisco em Nova York em 1998, assim como as manchetes globais subseqüentes sobre a chamada arte do Holocausto, deixou uma profunda impressão. O silêncio foi rompido. Muitos museus e colecionadores particulares em todo mundo se viram repentinamente sob a acusação de que ainda possuíam arte roubada. O escândalo até mesmo tocou um ícone de Hollywood, Elizabeth Taylor, que comprou um Van Gogh apesar de ignorar sua história problemática.
Hora de colocar um fim à questão da restituição?
Quando em dezembro de 1998, instigada por um alto funcionário do governo, uma conferência foi realizada em Washington sobre os bens da era do Holocausto, o público estava particularmente sensibilizado pela questão da arte perdida que antes era de propriedade dos judeus. Foi considerada uma sensação o fato dos representantes de todos os 44 países que participaram da conferência terem assinado um documento importante, que passou a ser conhecido como "Princípios da Conferência de Washington". Estes princípios definem a obrigação dos países em tratar os casos dúbios dentro de suas instituições nacionais e, independente de qualquer estatuto de limitações, oferecer soluções justas se necessário.
Agora, quase 10 anos depois da conferência de Washington, é hora de uma reavaliação internacional. E são os alemães que, em dezembro de 2008, planejam patrocinar um novo encontro, apesar de que será de relativamente pouca importância. Em vez de uma conferência política como o evento de 1998 em Washington, será um encontro de pesquisadores de procedência -um fórum para pessoas do meio sem conseqüências palpáveis. O Parlamento alemão, o Bundestag, rejeitou recentemente as propostas para um evento mais significativo. É possível que outros países aproveitem a oportunidade para chamar a atenção para si mesmos com uma verdadeira nova conferência.
Há muito o que discutir. Muitas obras de arte foram devolvidas para seus donos de direito após a conferência de Washington. Grande parte disso aconteceu na Alemanha, onde muitos museus entregaram -nem sempre voluntariamente- obras que possuíam ilegalmente. Mas foi apenas a devolução da pintura expressionista "Cena de Rua de Berlim" do pintor do grupo Brücke, Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), que se transformou em uma verdadeira controvérsia. O fato da luta em torno da pintura ser tão agressiva sugere que há uma mudança bizarra nas posturas quando se trata de restituição. Muitas pessoas aparentemente acreditam que é hora de colocar um fim à questão da restituição.
A pintura de Kirchner era exibida há muito tempo no Museu Brücke de Berlim. Quando Anita Halpin, uma descendente da família que antes era dona da pintura e que estava vivendo em Londres, exigiu a devolução da obra, um grupo de marchands de arte e doadores de museus questionou a legalidade da reivindicação.
Houve uma espécie de campanha de protestos. Todavia, um painel especial do Parlamento de Berlim determinou que a pintura fosse legalmente entregue a Halpin. Ela então a vendeu em um leilão, pelo qual foi novamente criticada.
A obra pertencia originalmente ao seu avô, que morreu em 1931. A viúva dele, Thekla Hess, se mudou para a Suíça, mas sua mãe permaneceu na Alemanha. A Gestapo chantageou Thekla Hesse, ameaçando fazer mal à sua mãe. Hess foi forçada a devolver parte da coleção de arte da família para a Alemanha, onde a pintura de Kirchner foi vendida. Mas o preço acertado aparentemente nunca foi pago.
A parte verdadeiramente escandalosa da história é que, durante a controvérsia em torno da devolução, a antiga situação da família foi distorcida e o tom da disputa se tornou duro e freqüentemente insultante. Em geral, as vítimas e seus advogados eram acusados de saquear gananciosamente os museus alemães. "Eles dizem a palavra Holocausto mas estão falando sobre dinheiro", escreveu Bernd Schultz, presidente da Villa Grisebach, uma casa de leilão de Berlim, em um artigo no "Frankfurter Allgemeine Zeitung". Ele se referia aos "astutos e inescrupulosos advogados de restituição".
Georg Heuberger, representante da Conferência das Reivindicações Judaicas na Alemanha, lembra de outros comentários ofensivos. "As fronteiras de propriedade foram excedidas", ele diz. Heuberger considera especialmente vergonhoso que a perseguição a Thekla Hess e seu filho Hans tenha sido minimizada. "Foi criada a impressão de que estavam se saindo muito bem." É claro, acrescenta Heuberger, que há advogados que se especializaram nesses casos. "Os museus freqüentemente dificultam a pesquisa. Mas de que outro modo os descendentes podem obter a informação que precisam?"
Mesmo se a procedência judaica puder ser provada, as obras que estão atualmente em mãos particulares estão virtualmente fora de alcance para as vítimas, porque o estatuto de limitações para as reivindicações expirou há muito tempo.
No final, tudo é uma questão de moralidade. O Museu Kunsthalle privado em Emden, uma cidade no norte da Alemanha, e que foi fundado pelo editor Henri Nannen, se comportou mais admiravelmente do que as autoridades responsáveis pela coleção Leopold. O museu de Emden devolveu uma pintura expressionista à família do advogado e colecionador judeu Ismar Littmann, que cometeu suicídio sob a pressão da perseguição e cuja coleção de arte foi em grande parte confiscada. Atualmente, isto é chamado de "confisco em conseqüência de perseguição".
As histórias que surgem no contexto das reivindicações de restituição são consistentemente trágicas. Inúmeras coleções por toda a Europa foram dissolvidas de formas brutais, e obras de antigos mestres, impressionistas e modernistas clássicos foram espalhadas aos quatro ventos. Os nazistas até mesmo lucraram com a arte de vanguarda, que desprezavam como "degenerada", ao vendê-la para o exterior, freqüentemente por intermédio da Suíça. Quando a guerra acabou, muitas obras de fontes questionáveis foram repentinamente colocadas no mercado.
Até hoje, lidar com a questão de arte roubada é espantosamente difícil. Aqui está um exemplo: após os alemães invadirem a Hungria em 1944, o barão Mór Lipót Herzog, um banqueiro e empresário de Budapeste, escondeu a coleção da família de pinturas, que incluíam obras de Velázquez, Renoir e Manet, em uma de suas fábricas. O criminoso de guerra da SS, Adolf Eichmann, rastreou a coleção e fez com que muitas obras fossem enviadas para a Alemanha. Algumas poucas permaneceram em museus húngaros enquanto outras foram enviadas para lá depois da guerra.
A neta de Herzog, Martha Nierenberg, atualmente uma idosa, vive em Nova York. Ela impetrou e venceu um processo contra o Estado da Hungria, mas as obras de arte de propriedade de sua família ainda permanecem nos museus húngaros e não foram devolvidas.
Agora, diz Toussaint, o detetive de arte, a família pediu a ele que assuma o caso, mas ele está preocupado de que seria irresponsabilidade de sua parte, porque ele já tem "o suficiente para fazer pelos próximos cinco a 10 anos".
Se todos os países que prometeram há 10 anos promover o esclarecimento, transparência e soluções justas para o assunto cumprissem suas promessas, as lutas desgastantes dos herdeiros finalmente se tornariam desnecessárias.
E a coleção de Rudolph Leopold possivelmente encolheria em um punhado de pinturas.
Tradução: George El Khouri Andolfato