Marco zero da tragédia | |||||||||||
O escritor israelense David Grossman fala sobre o Holocausto e prega a paz com os palestinos | |||||||||||
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O escritor israelense David Grossman crê numa solução pacífica para o conflito entre israelenses e palestinos. E luta pela defesa desse ideal, comprando brigas dentro e fora de Israel sem abrir mão de seu discurso, mesmo após perder tragicamente seu filho Uri, sargento do Exército israelense, aos 21 anos, atingido por um míssil do Hezbollah na madrugada de 12 para 13 de agosto do ano passado, na região leste do Líbano. Dele a editora Companhia das Letras lança esta semana Ver: Amor (536 págs, R$ 62), publicado há 20 anos em Israel e consi derado pelo crítico Edmund White um exercício literário épico sobre o Holocausto. Sobre esse livro perturbador, que conta a tragédia histórica pelos olhos de um garoto de 9 anos, Grossman falou ao Estado, de Jerusalém, revelando que escreveu essa história co mo quem se sente obrigado a contar aos filhos o que aconteceu a seus antepassados, alertando-os para o risco da repetição desse erro no futuro. Ver: Amor já foi definido como um épico, a novela suprema do Holocausto, justamente pelo exercício de imaginação de seu narrador, Momik. Ele tenta projetar o puro horror numa narrativa circular que passa pelo registro realista e surrealista, enciclopédico e absurdo. O pesadelo do qual saiu a máquina diabólica do nazismo é reconstruído segundo um esquema narrativo incriminatório do qual não escapa o próprio narrador, criança na primeira parte e adulto na segunda. Em sua entrevista ao Estado, David Grossman fala de suas influências literárias, especialmente Heinrich Böll e Clarice Lispector, reservando um breve comentário sobre a confissão do Nobel Günter Grass de seu passado nazista. O livro de Grossman foi comparado, na época de seu lançamento, à obra mais popular do escritor alemão, O Tambor,so- bre um menino que se recusa a crescer numa Alemanha mergulhada nas trevas. Grossman prepara há quatro anos um novo livro, que começou a escrever quando seu filho entrou para o Exército. E revela que produziu seis poemas, prontos para receber uma versão musical da compositora americana Tamar Muskal. |
O escritor David Grossman, que é ateu e não se sente especialmente ligado à terra, diz que só em Israel não é um estrangeiro
Antonio Gonçalves Filho
Uma série de ataques aéreos deflagrados esta semana por Israel em Gaza contra o grupo islâmico Hamas, que ameaçou responder com atentados suicidas, colocam novamente em cena a discussão sobre a possibilidade da coexistência pacífica entre judeus e palestinos. Uma das principais vozes a pregar uma solução pacífica para o conflito, o escritor israelense David Grossman, que perdeu um filho no ano passado, vítima de um míssil disparado pelo Hezbollah, concedeu a entrevista abaixo um dia antes do episódio de violência na Faixa de Gaza. Nela, o sensato Grossman, autor de Ver: Amor, ratifica sua posição: ele acredita numa solução negociada.
Muitos críticos apontaram a dificuldade que tiveram para ler Ver: Amor por sua temática, o Holocausto. Somos inábeis para lidar com o horror dessa tragédia?
Esse é um confronto difícil. Somos quase como crianças e, mesmo que tivéssemos a consciência da extensão desse horror, não saberíamos como lidar com ele. Não é, digamos, um fenômeno compreensível, nem mesmo numa dimensão metafórica, o que me fez optar por contar essa história em quatro registros diferentes. Cresci tendo a consciência de que teria algum dia de transmiti-la a meus filhos e, dividido, pensava em como evitar que eles soubessem de tanta crueldade. Eles não seriam mais inocentes no momento em que conhecessem tal história. De qualquer modo, não há como escapar dela vivendo em Israel, porque a marca indelével do Shoah está presente em nossas vidas. Ele conduz nossas atitudes, nosso modo de ver o mundo, nossa política.
Muitos críticos comparam Ver: Amor ao premiado O Tambor, do Nobel Günter Grass, que há algum tempo revelou ter pertencido à Juventude Hitlerista. Como o senhor recebeu essa revelação?
Por vezes somos obrigados a topar com esquinas escuras dos seres humanos. Foi o caso de Grass. Fiquei me perguntando por que razão ele não revelou esse segredo antes, por que não se manifestou a esse respeito, como inventou sua personalidade? É mesmo incômodo esse comportamento estranho. Em todo o caso, não quero e não posso ser o juiz de Grass. Não me cabe julgar a adesão de um jovem ao nazismo. Prefiro pensar que ele fez tanto para entender e reparar esse seu erro que já não depende de minha aprovação ou reprovação.
O senhor dividiu Ver: Amor em quatro partes, adotando como narrador real Momik, garoto de 9 anos, como se uma história como essa só pudesse ser contada por um inocente. Por que, num segundo momento, o senhor resolve abandonar o registro realista e abraça a metáfora?
Porque a máquina genocida do Shoah tinha algo de diabolicamente surrealista: câmaras de gás, campos de extermínio, experiências com o corpo. Tudo isso orquestrado como uma metáfora da maldade humana e do seu poder infinito de criar mais e mais horrores. Pensei muito em Clarice Lispector, em sua poderosa imaginação, e concluo que o leitor brasileiro estará mais habilitado a entender essa segunda parte do livro melhor que os leitores de outros países. Afinal, a imaginação do genial Bruno, o segundo narrador, é tão rica quanto foi a de Clarice. Eles dividem a mesma fantasia.
Em Yellow Wind, publicado há quase 20 anos, o senhor descreve um retrato simpático do povo palestino. A tragédia que atingiu seu filho no ano passado, quando ele foi morto por um míssil do Hezbollah, conseguiu mudar seu ponto de vista sobre a viabilidade da coexistência pacífica entre judeus e palestinos?
Não. O que aconteceu a meu filho não mudou meu modo de ver os palestinos. Eles também já sofreram um bocado e, apesar de terem cometidos muitos erros, há palestinos de boa vontade, que querem a paz. Não estou falando naturalmente dos suicidas, porque ser um homem-bomba é escolher um meio inumano de lutar.
Kafka e Heinrich Böll são normalmente lembrados quando alguém se refere a seus livros. Quais são as marcas dessa influência que o senhor identifica em sua literatura?
Kafka, naturalmente, é uma referência para qualquer escritor moderno, mas não identifico traços dele em minha literatura. É só uma inspiração. Já Böll não foi apenas uma influência. Ele realmente me ensinou a contar uma história. Kafka teve o mérito de descobrir uma outra dimensão. Foi uma pessoa que ficou fora da vida para conhecê-la melhor, como se a visse de uma janela.
Num livro chamado I Am a Jew, publicado há dois anos, vários autores judeus tentam entender sua identidade, entre os quais o senhor, que define ser judeu como o estrangeiro absoluto, condenado à mais atroz solidão, como se fosse um personagem criado por Beckett. Ainda se sente assim?
Sinto-me tremendamente ligado à tradição judaica, apesar de ateu, e a toda essa corrente de escritores que falam de isolamento e solidão. Já não posso dizer o mesmo de Israel, que não sente compaixão pelo sofrimento alheio. Muitos israelenses parecem indiferentes à ocupação. Creio que temos de resgatar essa sensibilidade, essa capacidade de sentir o outro.
O filósofo Bernard-Henri Lévy definiu ser judeu como alguém que ama mais a Lei que a terra e o logos tanto quanto o espírito, a alma. O senhor poderia comentar sua definição?
Como disse anteriormente, não sou um homem religioso. Portanto, sou incapaz de falar do amor a Deus. Mesmo falar sobre a terra me custa, porque queria que Israel fosse um território de paz e não é. A terra tampouco me diz alguma coisa. É mesmo difícil definir o que significa ser judeu. Lembro-me de um encontro com o Dalai-Lama, em Nova York, em que ele fez a mesma pergunta e alguém da platéia, provavelmente um acadêmico, respondeu que ser judeu era um "exercício de opinião", no que foi imediatamente contestado por outro. Pode parecer uma piada, mas foi o que aconteceu. Acho que ser judeu é ter a alma flexível. É ser um eterno outsider.
Uma vez o senhor afirmou que abandonaria Israel se não acreditasse mais numa solução pacífica para o confronto com os palestinos. Como estão seus planos?
Não creio que tenham sido essas exatamente as minhas palavras. Disse que não conseguiria viver num regime que não fosse democrático e, embora a realidade seja contrária à minha crença, pelo menos mantemos a memória de uma alternativa de paz. Não, não me vejo morando fora de Israel. É o único lugar onde não me sinto estrangeiro, o lugar de maior relevância para um judeu viver integralmente sua linguagem, memória histórica e herança.
Alguns textos seus têm sido adaptados por compositores. Recentemente, Yellow Wind recebeu uma versão sinfônica de Tamar Muskal. O que achou da experiência?
Não estava na estréia, mas recebi o disco e gostei muito. É uma música forte, reflexiva, emocional. Ela agora está compondo uma suíte baseada em seis poemas meus.
E o senhor, o que escreve agora?
Um livro que está em preparo há quatro anos. Comecei a escrevê-lo quando meu filho foi para o Exército. Agora, com o recrudescimento da violência e do espírito bélico, acho que está na hora de concluí-lo.