PROMESSAS DE UM "VELHO MUNDO NOVO": O SIONISMO SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA Por :Andre de Lemos Freixo [I] O que é sionismo? Nas últimas décadas do século XX o sionismo tornou-se sinônimo de violência, intolerância e terrorismo do Estado de Israel em manchetes jornalísticas ao redor do mundo. A impressão transmitida através de vários meios de comunicação para esse quadro (hoje cotidiano) é a de que ele "sempre" foi assim. Ledo engano. Pensar o sionismo sob a perspectiva histórica implica não apenas em identificar e criticar o que "seja" sionismo, mas sim apontar questões acerca do como ele "veio-a-ser". Este é, pois, o objetivo do presente artigo: incitar um debate acerca do sionismo enquanto um conceito dotado de uma história que se mescla, em muitos aspectos, com a história dos nacionalismos no mundo ocidental. A partir de um ponto "particular" como o sionismo, acredito poder descortinar aspectos mais abrangentes acerca das atuais questões que cercam o tema "nacionalismo". Esses "nacionalismos" encontram-se hoje em crise, assim como muitos aspectos da estrutura e visão de mundo moderna da qual foram produto. "Sionismo" é, pois, um desígnio moderno. O termo somente irá aparecer publicamente e compor parte de um vocabulário político nos anos de 1885/86. Mas o mito do retorno a "Terra Prometida" sobre o qual este se pautou é uma tradição milenar. Isto se dá, pois sua causa, "Sião", precede tal conceito em muitos séculos. Antes de ser um viés político através do qual as demandas por um território nacional judaico foram acionadas no século XIX, por "sionistas" entendiam-se todos aqueles que, em algum momento da história do judaísmo, voltaram suas forças para um retorno do povo judeu à terra de Zión. Há notícias de movimentos de reconquista da "Terra Prometida" desde os séculos XII ao XV, voltado a lutas armadas e tentativas violentas de retomada, porém, somente no século XIX esse tipo de mobilização ganhou formato político e, em teoria, não belicista. [II] O nacionalismo judaico é um fenômeno único dentro dos movimentos nacionalistas europeus de fins do século XIX. Podemos dizer, sem dúvidas, que o nacionalismo moderno surgiu na Europa, a partir da existência de "Nações", i.é., grupos de habitantes residentes num determinado território, com fronteiras políticas delimitadas (ainda que possuindo diferentes origens étnicas), reconhecendo-se por determinados traços culturais compartilhados: língua, costumes sociais, tradições, crença religiosa etc. Além disso, cada "Nação" organizou para si uma imagem de seu passado histórico (o que pressupõe a capacidade de abstração em torno de uma consciência histórica), inicialmente expresso através de poemas heróicos populares, e sagas semimitológicas. Estas experiências foram recorrentes em todos os locais da Europa onde as estruturas do Ancien Régime ruíram. Foi através da reificação destes traços comuns que as sociedades modernas e, consequentemente o nacionalismo moderno, desenvolveram-se sob a forma de Estados Nacionais. [III] Elevada à potência máxima dentro de uma gradação da "civilização humana" (no caso européia e esclarecida), a "Nação" moderna foi considerada o mais alto grau da "evolução" humana. Como locus a partir do qual se poderia observar, como pretendeu Hegel, o progresso e evolução da "História da Humanidade", a Nação moderna passou a determinar o particular de cada cultura e de cada Estado Moderno como sendo único. Nessa particularidade residiria sua mais importante contribuição (no que há de mais substancial e significativo – sua kultur) ao universal gênero humano. No início do século XIX os judeus haviam sido "libertos" de sua condição apátrida (i.é., sem pátria, um povo vivendo dentro do território de outros povos) e passaram a se "assimilar" às culturas de onde residiam, mas nem sempre foram tratados como iguais. Da emancipação dos judeus e sua instalação nacional à emergência de um violento sentimento anti-semita foram poucos anos. E como resposta ao anti-semitismo europeu que emergiram os diferentes sionismos. Quer dizer, o nacionalismo judaico (voltado para Sião) partiu como uma resposta aos nacionalismos europeus (excludentes) e para os quais os judeus seriam sempre aliens. Dotados de um arcabouço intelectual moderno, os intelectuais judeus da Europa, como Moses Hess (1812-1875), Leon Pinsker (1821-1891), Theodor Herzl (1860-1904) dentre outros, foram responsáveis pela proposição de suas "vias modernas" para solucionar a dita "questão judaica", uma "questão" que foi, também, por assim dizer, produto da Era Moderna. Fruto de uma intelectualidade judaica amplamente permeada pelos valores "esclarecidos", refletindo acerca das perseguições do anti-semitismo, os diferentes "sionismos" que afloraram na Europa no século XIX, como tentativa de "normalização" do "povo judeu" buscavam inserir os judeus neste "fluxo histórico" da civilização moderna. Frente ao malogro da inserção social dos judeus nas sociedades onde residiam, e reagindo contra o ascendente anti-semitismo na Europa, os "sionismos" surgiram como tentativas dos judeus de ingressarem no "Concerto das Nações" modernas. Destes, o sionismo político de Theodor Herzl foi, por sua organização política, o mais bem sucedido – e a partir das demandas dos correligionários em seu movimento sionista que será fundado o Moderno Estado de Israel, em 1948. Mais de 100 anos após o Primeiro Congresso Sionista da Basiléia (organizado por Herzl em 1897) o sionismo, como mencionado anteriormente, que fora inicialmente um movimento político engajado frente às contendas da Europa em conformação étnica (e identitária) nas hodiernas Nações que se consolidavam, na tentativa de assegurar a sobrevivência dos judeus, tornou-se, para muitos (paradoxalmente), sinônimo de racismo. Em meados da década de 1970, após a Guerra dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), a ONU – que em 1947 aprovou a declaração de independência de um Estado nacional judeu na região Palestina, justamente contra o racismo e preconceito do qual foram objeto na Europa – designou o sionismo como uma forma de racismo colonialista (United Nations Resolution 3379 – junho de 1975). Ou seja, o que uma vez fora reconhecido como um movimento de reação contra o racismo tornou-se, aos olhos do mundo, um sinônimo de racismo. Este tipo de alteração quanto ao conceito de "sionismo" foi largamente influenciado pelas, então recentes, ações políticas e militares do governo de Israel. Mas não somente. Após sua independência em 1948 Israel deu seqüência a construção de seu Estado a partir da larga força trabalhista sionista que ali já havia se instalado (em especial nas unidades agrícolas coletivistas e, quase majoritariamente, socialistas dos kibutzim). Mas com o passar dos anos novos imigrantes de inúmeras outras regiões do planeta foram chegando ao país, diversificando muito o perfil de sua população e, com isso, o direcionamento político israelense. A ascensão política de uma ala de direita ao poder em Israel foi gradual e, na década de 1960, já se fazia muito influente. Esta defendeu a política de um "direito divino" para o Estado de Israel, o que em parte reforçou (em 1967) a instalação judaica nos territórios de Gaza e da Cisjordânia. Isso, tanto em termos econômicos quanto militares (pois a região não era produtiva em nenhuma forma significativa, e acabou mantendo localizada ali metade do numerário militar israelense), era uma decisão muito pouco "estratégica", que segundo especialistas, visaria estabelecer um ponto a partir do qual o diálogo pudesse ser travado entre Israel e seus vizinhos, contrários ao Estado Judeu. [IV] É importante frisar que de 1948 até 1967 Israel não era foco de interesses nem de planejamentos estratégicos do bloco capitalista da Guerra Fria, capitaneados pelos Estados Unidos. Mesmo com Israel alinhado ao "ocidente" após sua fundação, a força da simpatia soviética em Israel era enorme. Dentre outras, ainda que o presidente Eisenhower tenha apoiado tanto o Estado de Israel quanto as nações árabes, a tendência foi um favorecimento dos árabes, pois o tema petróleo já era, então, a matter of life and death para o governo estadunidense. Após a independência de Israel, as constantes discordâncias israelenses com os objetivos políticos dos EUA na região culminaram com a crise de Suez (em 1956), quando Grã-Bretanha e França aliaram-se a Israel contra o líder nacionalista do Egito Gamal Abdel Nasser. A vitória relâmpago de Israel levou a uma ocupação da Península do Sinai, um ponto estratégico dos estadunidenses na região, levando o presidente Eisenhower a exigir a retirada incondicional dos israelenses em Sinai. Esse fato marcou uma mudança crucial na história política de Israel: aliado a cada vez mais forte propaganda anti-sionista soviética, Israel passou a se alinhar mais proximamente aos EUA, em busca de apoio não apenas do seu governo mas da poderosa parcela judaica da população estadunidense, que até então não havia se interessado muito para com os problemas de Israel, salvo pouquíssimas exceções. [V] Neste cenário, as manifestações políticas de direita em Israel passaram a simbolizar, aos olhos do mundo, a própria idéia de sionismo, que paulatinamente iria se transformando na política oficial do Estado de Israel, para sua manutenção e defesa. Em nada este sionismo tem a ver com àquele proposto por Herzl 60 anos antes. Na prática, contudo, quando inúmeras outras variáveis passam a compor este quadro, mais complexa vai se tornando a definição para sionismo. Este teve de passar a abarcar uma pluralidade (inerente à diáspora) onde as tais demandas por um Estado Nacional Judeu apontavam em diferentes direções, por vezes direções diametralmente opostas. O annus mirabilis de 1967 marca, pois, um ponto de guinada na história recente de Israel e do sionismo. Após esse momento a ala mais à direita assumiu a liderança política do país, instaurando um novo rumo e sentido para o termo sionismo. Esse "novo" sionismo radical será contemporâneo de um novo tipo de estrutura política radical: o fundamentalismo de escala global. As diferenças políticas e de estratégia são, em grande parte, produto de um sensível declínio na qualidade das lideranças israelenses desde então (à exceção, talvez, de Izak Rabin – assassinado por um extremista judeu há 10 anos). [VI] Ao conceber seu Judenstaat (o Estado Judeu) em sua Altneuland (Velha Terra Nova), Herzl afirmava que a presença árabe, muçulmana, cristã, grega, armena e de membros de inúmeras outras etnias e grupos religiosos se fazia presente na região. Talvez não lhe ocorresse que esta presença se fizesse um obstáculo insuperável ao Estado Judeu. Hoje o Estado Judeu é uma realidade, e a completar 60 anos. Pensar sobre as questões que animaram (e animam) a constituição deste país pode, talvez, trazer novas possibilidades ao debate que certamente está muito longe de um termo. Este artigo visa trazer a lume a questão da diferença através do tempo. Pensar historicamente uma questão tão candente quanto o que vem a ser "sionismo" é crucial para entendermos (ainda que parcialmente) como a situação chegou ao nível atual, no que tange aos conflitos do Oriente Médio. Demandaria muitas páginas e inúmeros interlocutores, além de muita paciência e tolerância frente às "diferenças" discursivas e/ou ideológicas, para travarmos um debate muito mais profícuo acerca deste tema, sem mencionar a reflexão sobre a causa nacional Palestina – de crucial importância, mas que não foi meu foco aqui. O que propus foi um ponto de partida para pensarmos a questão da mutação do sionismo dentro de um espectro mais amplo e universal: a crise dos nacionalismos do mundo ocidental. Vivemos na era da globalização em seu nível mais avançado. A velocidade com que as informações nos chegam muitas vezes não nos permite refletir devidamente acerca de problemas tão complexos quanto os conflitos no Oriente Médio, por exemplo. Normalmente isso acaba provocando ou reforçando maniqueísmos que deveriam ser de difícil acesso no âmbito das discussões entre historiadores. Os "nacionalismos" estão cada vez menos comportando as diferenças internas nos Estados. Em Israel a imigração de milhões de judeus etíopes, que em nada se identificam com a trajetória sionista (européia), ou ainda a pressão dos ortodoxos, as constantes revisões críticas acerca das utilizações políticas para a memória do Holocausto, dentre outras, começam a minar alguns traços que deveriam alimentar a idéia de união pátria do "Povo do Livro" para com Eretz Israel. Este não é um fenômeno exclusivo em Israel: precisaríamos lembrar do fiasco das celebrações dos "500 anos do Brasil", e o sintomático naufrágio da réplica da Caravela de Cabral? Das manifestações de índígenas, estudantis, de homossexuais etc. que não se identificavam com as imagens largamente veiculadas acerca de um arquétipo de "brasileiro", que lembra àquela imagem cunhada nos idos do Oitocentos? Ou ainda das manifestações nos subúrbios de Paris? Das guerras fomentadas por interesses de grandes corporações, em lugares tão distantes das fronteiras de determinados Estados, que em nada o ameaçam? Estes eventos mostram, tão somente, o quanto um processo de "desnacionalização" vem se formando nos horizontes do mundo ocidental. Os particularismos vêm acentuando-se dentro dos espaços públicos, supostamente universais. Isso tudo reflete, portanto, um momento quando as demandas nacionais ultrapassam a própria estrutura das Nações. Mais do que questionar o que seria (ou é) o nacionalismo judeu, teremos pela frente questões acerca do que é uma Nação, que, curiosamente, foi uma indagação para um problema mais do que moderno, e que, por exemplo, já assombrava Ernest Renan no final do século XIX. O que é sionismo? Talvez essa questão ainda não tenha uma resposta adequada. Talvez devêssemos indagar como o sionismo nos permite pensar a atual situação dos nacionalismos no mundo ocidental. Ou ainda, o que significa uma Nação hoje? Refletir sobre as promessas de um sionismo que se voltava para um "velho mundo novo", com Herzl e seus companheiros sionistas, mas também sobre a trajetória e mutação do movimento sionista pode abrir portas para a realização não apenas de novas promessas, mas, principalmente, a realização das antigas. Notas: [I] É mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. [II] Alguns casos mais conhecidos pela história do judaísmo remontam, por exemplo, às figuras messiânicas de David Alrói no século XII – que montou um exército para tentar reconquistar a Terra Prometida; em fins do século XIII, Abraham Bem Samuel Abulafia; em 1500, Moysés Lemlein; em 1525, David Reuveni tenta um acordo com o Papa Clemente VII e acaba queimado num auto-de-fé; ou ainda, Sabbetai Zvi, em 1626. Para maiores detalhes Cf. MALAMUD, Samuel. Do arquivo e da memória: fatos, personagens e reflexões sobre o sionismo brasileiro e mundial. Rio de Janeiro: Bloch, 1983. [III] A bibliografia sobre nacionalismo é realmente muito extensa. No entanto, podemos elencar alguns estudos mais significativos como, por exemplo, HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984; Nação e Nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: New York, 1983. Mais especificamente para o caso do nacionalismo judaico: LAQUEUR, Walter. A Histrory of Zionism (1976). New York: Schocken Books, 2003; KATZ, Jacob. O Movimento Nacional Judaico: uma análise sociológica. In: UNESCO. Vida e Valores do Povo Judeu. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1972; PINSKY, Jaime. As Origens do Nacionalismo Judaico. São Paulo: Editora Ática, 1997. [IV] Cf.: LAQUEUR, W. Op. Cit., p. XVII. [V] FINKELSTEIN, N. G. A Indústria do Holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 30. Ver também: HERTZBERG, Arthur. Jewish Polemics. New York: Schocken Books, 1992, p. 33; ALTERAS, Isaac. Eisenhower, American Jewry and Israel. American Jewish Archives (november 1985) apud FINKELSTEIN, idem ibidem; NOVICK, Peter. The Holocaust in American Life. New York: Mariner Books, 1999. [ |