Judaísmo e História

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Judaísmo e História
(Publicado em MANOEL, Ivan (ed.): História das Religiões: Desafios, problemas e avanços teóricos, metodológicos e historiográficos. São Paulo, Paulinas, 2006).

Edgard Leite
I - O Judaísmo na História.
Do ponto de vista histórico, as raízes do povo judeu e do judaísmo são obscuras. Como se sabe, não dispomos de documentos que possam ser cotejados com os textos bíblicos até períodos bem adiantados da história judaica. Nunca foi localizado, por exemplo, qualquer fonte significativa ou inscrição real da monarquia unida ou algum texto contemporâneo que trate dos reinos de David e Salomão . A situação se agrava quanto mais re-cuamos no passado. Em um único documento, a "Estela de Merneptah" (c. 1230 a.e.c.?), que dá conta das ações externas do sucessor de Ramsés II, é mencionado o nome "Israel" (Y-s-y-r-y-3-r), utilizando-se o determinativo de "povo" e não de "lugar". No entanto, essa singular referência é muito árida para sustentar as controvérsias que suscitou .

Mas apesar dessa indigência documental, parece claro que, em linhas gerais, os ho-rizontes históricos delineados no pentateuco correspondem à alguma realidade. O Gênesis afirma que a terra natal de Abraão era "Ur dos caldeus", na Suméria (Gn, 11:28). Embora o sumério não fosse um idioma semítico, tanto o acadiano quanto o babilônio e o assírio, falados ao seu redor, o eram . E realmente, quer pela comum origem lingüística semítica, quer pela insistência em um legalismo típico da civilização mesopotâmica, parece estar nessa região lançada uma das raízes históricas dos hebreus. O Gênesis também sustenta que José, descendente de Abrãao, "fora, portanto, levado ao Egito" (Gn, 39:1), e para ali se dirigiram, depois, seus parentes. De fato, não são poucas as evidências sobre as influências egípcias no pensamento judaico. Elas se fortaleceram após as descobertas em Amarna, antiga capital do faraó reformador Aquenáton (c. 1364-1347 a.e.c). Abrindo mão de qualquer fantasia teológica, foi já anotada a similitude entre o monolátrico "Hino ao Sol" de Aquenáton e o Salmo 104. Pode-se, portanto, aceitar que no Egito se encontra um outro importante pilar da civilização judaica. A presença do Nilo, do Tigre e do Eufra-tes é constante em toda literatura bíblica.

A formação da identidade do povo hebreu, no entanto, repousa na sua essencial desvinculação desses dois universos civilizacionais. O Pentateuco assegura que o deslo-camento dos hebreus do Egito em direção à Canaã, terra prometida ao patriarca Abraão, foi um dos momentos cruciais determinantes dessa particularidade. Esse acontecimento apresenta dificuldades para os historiadores. Em nenhum arquivo, entre os diversos encontrados em estados limítrofes, há referências ao processo de estabelecimento do povo hebreu em Canaã. Na Bíblia (1Rs 6:1) está escrito que o êxodo ocorreu 480 anos antes da construção do Templo de Jerusalém, ou seja, algo em torno de 1430 a.e.c. No entanto, o Êxodo explica que os judeus cativos construíram a cidade de Ramsés (Ex 1:11) o que, se-gundo alguns, nos leva a datar o evento para algum momento posterior a 1290 a.e.c. . De qualquer forma, não existe clareza sobre o assunto na arqueologia do Sinai. Não são evidentes, do ponto de vista arqueológico, correlações entre esses acontecimentos e um vir-tual processo de ocupação de Canaã. São imprecisos os sinais de conflitos militares em Israel nessa época. Há, sem dúvida, um processo de desenvolvimento urbano em Canaã no período entre 1250 e 1050 a.e.c "por pessoas que eram íntimas da cultura cananita e fazendeiros experimentados" . Mas semelhantes lacunas e dificuldades documentais tor-nam difícil a construção de teorias sustentadas para os momentos fundadores da identidade judaica. No entanto, pelo menos duas propostas tem suscitado as reflexões dos his-toriadores e arqueólogos.

A primeira é a de Albrecht Alt. Alt propôs que Canaã foi lentamente infiltrada no pe-ríodo final da idade do bronze (c. 1200 a.e.c.) por pastores nômades, hebreus. Tratar-se-ia de um tipo de deslocamento pastoril muito comum na Antigüidade e na região. Esses povos se fixaram no interior, distante dos núcleos urbanos cananitas. O fato das regiões montanhosas serem a área por excelência de ocupação hebréia parecia a Alt um forte argumento favorável. A subseqüente organização de ligas tribais conduziu os hebreus ao confronto com os cananeus . A saga, contida em Josué, de uma invasão hebréia de Canaã seria uma construção mítica posterior. Talvez análoga à visão que a civilização védi-ca, na Índia, tinha de suas origens, isto é, não derivada de um processo de colonização lento e centenário, mas oriunda de uma invasão primeva, fundadora de direitos de con-quista.

Uma segunda teoria para explicar a origem do povo judeu é a de G. Mendenhall. A partir da correspondência de Amarna, Mendenhall identificou o grupo social ou étnico dos 'apiru/habiru. Estes são, nos textos egípcios, caracterizados como escravos fugitivos ou camponeses sem terra. Mendenhall propôs então que essa palavra poderia estar conecta-da de alguma forma com o vocábulo que identifica o hebreu, 'ibri, yrbu. Assim, os primeiros israelitas seriam camponeses marginais, segmentos sociais resistentes ao poder, alguns deles talvez oriundos do Egito, que ocupavam regiões agrárias em torno das cidades ca-nanitas. Oprimidos pelo universo urbano e estatal cananeu, acabaram por erguer-se em um movimento social-revolucionário que buscava a justiça e o estabelecimento de leis de harmonia e igualdade social . Alguns, como Moran, acham difícil a associação entre habi-ru/'ibri . Mas isso não parece ser um obstáculo à tese . A teoria de Mendenhall apresen-tou a interessante possibilidade de explicar a insistência judaica na Justiça e na igualda-de, principalmente em questões fundiárias. Igualmente permitiu compreender o caráter contestador do pensamento político hebreu e sua denúncia do processo de organização estatal e as expropriações subsequentes, cujas conseqüências mais claras encontram-se no profetismo posterior.

A tese de Mendenhall é superior, do ponto de vista qualitativo, à de Alt. Principal-mente no campo da história das religiões, pois possibilita a depreensão de que as experi-ências históricas das sociedades articulam paradigmas qualificadores que podem possuir significações religiosas profundas. É evidente, no entanto, que ela não alcança o âmago da gênese da proposição religiosa. Esta não pode ser explicada apenas em função das variáveis objetivas, mas também das decisões e inspirações subjetivas. É difícil falar do surgimento do povo judeu e do judaísmo, ou de qualquer sistema religioso, sem a consideração dessas interpretações qualitativo-religiosas subjetivas fundadoras. Elas estabele-cem conceitos religiosos essenciais que, mesmo padecendo de transformações posteriores, são utilizadas pelas gerações subseqüentes no estabelecimento de parâmetros para a pre-servação das identidades e coerências sistêmicas. A dificuldade no estudo desse processo é significativa, no entanto. Há tantos problemas em alcançar a solução documental para os elementos objetivos das origens do povo judeu quanto no estudo dessa subjetividade fundadora.

Tal realidade pode ser observada nas discussões a respeito da estrutura do penta-teuco. Os cinco livros atribuídos a Moisés são, como vimos, uma fonte para o estudo dessas origens -senão as objetivas, pelo menos das subjetivas. Definir onde, quando e como os conceitos religiosos foram definidos, através da decifração literária e histórica do texto, pareceu aos lingüistas e historiadores um caminho para dimensionar a subjetividade no interior da história. Poder-se-ia não se ter os elementos arqueológicos materiais suficientes, mas tendo-se os elementos dessa arqueologia textual talvez pudesse ser alcançado um certo dimensionamento histórico da arquitetura conceitual fundadora do judaísmo. Essa foi a perspectiva dominante no campo a partir do iluminismo.

Blenkinsopp apontou com precisão que um dos primeiros intelectuais a tratar o as-sunto foi Wilhelm De Vette (1780-1849). De Vette assinalou que o livro das Crônicas afirma a existência de toda uma estrutura legal e de crenças já nas origens da monarquia unificada. Isto contradiz, por exemplo, o livro dos Reis. Assim, em Crônicas estaria pre-sente a existência de um movimento de projeção do sistema em vigor no período persa na direção do passado, a fim de legitimá-lo. Esse processo permitiria sugerir, em conseqüên-cia, que o material legal existente no pentateuco foi ali introduzido a posteriori . O fato dos profetas pré-exílio não mostrarem muita familiaridade com o sistema legal mosaico ou com a lei ritual reforçaria esse argumento . A existência de um complexo sistema de inserções e modificações textuais processadas ao longo de séculos tornou-se então evi-dente.

Wellhausen estabeleceu a teoria básica sobre estrutura do pentateuco que tornou-se padrão por muito tempo. O livro, evidentemente não mais atribuído a Moisés em seu conjunto, seria composto de duas fontes primárias, a chamada Javista (J), oriunda de Judah, talvez, e a Eloista (E), provavelmente oriunda de Israel, articuladas por um redator javista em torno do século X a.e.c. Há uma outra fonte cujo núcleo é a lei ritual (Lev 17-26) que foi denominada Sacerdotal (S). E, por fim, uma quarta fonte, a Deuteronômica (D). Como a narrativa no Deuteronômio mostra familiaridade com J e E, mas não com S, o livro deve ter sido combinado com fontes antigas antes de ser articulada com S. A seqüência histórica, portando, seria JEDS. Considerando os elementos presentes no livro dos Reis e na literatura pós-exílio, tudo leva a crer que o texto do pentateuco foi ultimado em torno do tempo de Esdras, isto é, no período persa, no século V a.e.c. . A datação aproximada da consolidação do pentateuco no período pós-exílio não é incongruente com uma certa visão que o texto bíblico possui sobre o assunto. Em 2Rs 22:8 é narrado que, durante o reinado de Josias, em 621 a.e.c., quase 800 anos após a data estimada do êxo-do, foi descoberto o "Livro da Lei no Templo do Eterno". Trata-se, provavelmente, do Deu-teronômio, ou parte dele. E o livro Neemias, relata o entusiasmo, e surpresa, com que a população de Jerusalém recebeu a grande leitura pública da Lei, por Esdras (Ne 8). Tratava-se, portanto, de um texto que possuía uma história bem complexa, fato reconhecido pelas fontes judaicas posteriores.

A crítica textual ampliou, no século XX, os seus horizontes. Como escreveu Blen-kinsopp, "as fontes entraram em colapso e se desintegraram numa multiplicidade de componentes e estratos" . Diferentes narrativas, tradições, formulações teológicas e inserções foram localizadas e depreendeu-se que foram inseridas e alteradas por redatores de diferentes temporalidades. A questão básica, no entanto, é que o estudo do mistério da associação textual foi quase sempre relegado. Isto é, poucas pesquisas foram destinadas às razões pelas quais diferentes fontes foram associadas umas às outras. Poucas análises se dedicaram à investigação das decisões dos escribas que, ao longo das gerações, acreditaram estar dialogando, numa linguagem atemporal, entre si, e depreendendo sentidos ocultos, não históricos, entre os diversos componentes textuais. Ou seja, não se esclareceu o mistério das origens, mas também não se tentou pensar sobre o enigma da perma-nência.

No campo da história das religiões essa perspectiva é central por permitir a compreensão do papel e da dinâmica da subjetividade na história. Ao tratarmos com as perma-nências e insistências religiosas, podemos lançar luzes sobre os elos que permitem a um texto tão plural, como é o pentateuco, tornar-se um livro único, solidamente instalado como referência conceitual para muitas temporalidades e etnicidades. O nosso objetivo é, portanto, discutir um dos elementos presentes de forma insistente nos textos bíblicos: o tema da associação entre eternidade e transitoriedade no curso dos eventos humanos. Muito embora a insistência dos escribas sacerdotais seja clara no sentido de adequar di-ferentes fontes às suas preocupações histórico-legalistas, também nos parece claro que existe, em distintos fragmentos bíblicos, uma permanente inquietude com o tema da precariedade do tempo histórico e a percepção da presença, em seu interior, de uma realidade que tem, como um de seus atributos, a eternidade. Esse fato pode sugerir uma explicação tanto para a congruência interna do texto quanto para as razões de sua misteriosa sobrevivência. Assim, não trabalharemos com o tema das origens, mas sim com o da per-manência, através da análise do desenrolar coerente de uma proposição teórica ao longo da literatura bíblica.
II - O Judaísmo e a História.
Tem sido sustentado que o pentateuco pode ser comparado aos trabalhos historio-gráficos gregos, como os de Heródoto, Hecateu de Mileto e Helanico de Lesbos. Van Seters e Whybray , especificamente, insistiram nessa correspondência. Tal associação possui alguma lógica, na medida em que a data proposta para a consolidação básica do pentateuco está em torno do século V a.e.c., mesmo período da produção de Heródoto. Não é impossível, embora improvável, que existissem contatos intelectuais entre escribas judeus e intelectuais gregos. Whybray chegou a defender que o texto em seu conjunto é obra de um único pensador inspirado que trabalhou de forma muito parecida à de Heródoto . No entanto as aproximações entre os dois corpi documentais não parecem ir muito adiante. Um aspecto que distingue os textos em questão é a associação entre as histórias nacional e universal, presente no texto judeu. Tal articulação, de origem mesopotâmica, só se fará presente na historiografia grega bem depois . Outro é a preocupação moral e religiosa do pentateuco , muito diferente da abordagem anedótica da historiografia grega . Mas é evidente que não apenas no pentateuco, mas em todo corpo literário judaico, a preocupação com a história é central e absoluta.

Mas que história? Um trecho do pentateuco particularmente esclarecedor nesse sentido é aquele que trata do Jardim do Éden (Gn 2:4b-3:24). Essa passagem possui pro-vavelmente um núcleo Javista (J), cuja redação data, talvez, segundo Eissfeldt e Fohrer , do período inicial da monarquia unida (século X a.e.c.). Trata-se, portanto, de um texto arcaico. Ele conta que no paraíso habitaram os primeiros homem e mulher, Adão e Eva. "Entre toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer" que ali havia, existiam duas árvores singulares, uma "do conhecimento do bem e do mal", outra "da vida", ou da imortalidade (Gn 2:9). Entre o casal primordial e o ambiente existia um estado de harmonia plena. Não é certo que o homem fosse, na ocasião, imortal, já que somente a fonte criadora é eterna, mas apenas que não era manifesto no ser o reconhecimento do tempo ou da morte.

Tal situação de equilíbrio foi, no entanto, rompida pelo ato humano de comer o fruto da "árvore do conhecimento". Este movimento tornou o homem versado "no bem e no mal" (Gn 3:5), deu-lhe "discernimento" (3:6) e abriu-lhe os olhos (3:7). A conseqüência dessa atitude foi a súbita percepção de uma realidade marcada pela finitude. Talvez na medida em que conhecimento é consciência, tornaram-se perceptíveis a dor, o desejo, o sofrimento, as possibilidades do trabalho e do poder e as realidades do nascimento e da morte. E, como fica claro, um pouco adiante, no episódio de Caim e Abel, instalou-se o conflito do homem contra o homem. "YHVH Elohim", conversa duramente com o homem: "comeste então da árvore que te proibi de comer!" (Gn, 3:11). "E o expulsou do Jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tirado" (Gn, 3:23), isto é, separou o ser dessa har-monia primordial, da qual, de fato, o homem já havia se divorciado ao comer do fruto. "YHVH Elohim" é particularmente preocupado que o humano "não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre" (Gn 3:22). Essa "expulsão", portanto, tornou consciente no humano a impossibilidade da imortalidade. O caminho da árvore da vida passou a estar guardada por querubins e pela "chama da espada fulguran-te" (Gn 3:24).

A partir desse instante, segundo o redator javista, os seres humanos estarão envol-vidos em um processo que é marcado pela sucessão de vidas e eventos transitórios. Em hebraico bíblico não existe uma palavra que designe tal movimento de forma específica, como a nossa História. A expressão que mais a ela se aproxima e que contém os elemen-tos fundamentais para o entendimento dessa sucessão de acontecimentos é toledot, twdlwt "gerações". Mas em que pese o fato dessas gerações serem tomadas pela pretensão de exercer o controle cada vez maior do mundo, encontram-se sempre diante da impossibili-dade de faze-lo, ou diante da dimensão transitória das coisas. A historiografia judaica, no entanto, possui uma inflexão religiosa fundamental, e nela se depreende que uma força maior, que engendrou o homem e é externa ao mundo sensível, continua de forma per-manente a agir, como uma fonte inesgotável, apesar do homem conhecer e atuar. Ela funciona, na natureza e nas gerações, talvez, como o "manancial que subia da terra e regava toda a superfície do solo" que existia no Paraíso (Gn 2:6), isto é, como a origem infinita da finitude. Os homens, portanto, continuam envolvidos no diálogo iniciado no Éden com essa instância que, ao contrário do humano, é eterna e auto-sustentada. O tema continua sendo o mesmo: os alcances e limites do conhecimento, a natureza do discernimento, a manutenção da harmonia ou desarmonia na ordem das coisas. Trata-se de um diálogo que continua indefinidamente, através das gerações e, principalmente, nas gerações, isto na história.

"O Judaísmo", escreveu Heschel, "é uma religião da história, uma religião do tempo. O Deus de Israel não é encontrado de forma primária em fatos da natureza. Ele fala através de eventos na história" . Nessa perspectiva, por não compartilhar dos atributos da eternidade, o ser humano só pode contatar o infinito através da finitude do mundo. Sendo a natureza das gerações a mudança, cada experiência é particular e única. Como termo de comparação podemos tomar a tradição religiosa hindu, cuja concepção a respeito do tema é bem diferente. No antigo poema épico Mahabharata há uma passagem denomina-da Bhagavad Gita. Nela, um dos irmãos pandavas, Arjuna, hesita diante de uma guerra fratricida. O deus Krishna, que é o seu auriga, paralisa o tempo, e num hiato entre se-gundos afirma-lhe a eternidade do ser: "Nunca houve tempo em que eu não existisse, nem tu, nem nenhum desses nobres...o verdadeiro ser vive sempre" (Bhagavad Gita, II:2). É necessário que Krishna paralise o tempo, interrompa o fluxo da história, para que Arjuna possa entrar em contato com o Eterno. Na literatura judaica, ao contrário, o diálogo com a eternidade dá-se sempre dentro da temporalidade. A natureza desse encontro é, portanto, singular. É significativo que, enquanto Moisés está no monte Sinai, recebendo as leis divinas, a história continue seu curso, a ponto de, quando descer da montanha, encontrar os hebreus adorando o bezerro de ouro (Ex 32). Essa historicidade fundamental do judaísmo será desenvolvida na literatura posterior, especialmente nos textos proféticos.

São os profetas, de fato, os que mais aprofundaram as conseqüências dessa concepção da história como o campo de interação entre o humano e o divino. Primeiramente, consolidaram a tese de que a crise do Éden foi assinalada pela pergunta de Deus dirigida ao homem, quando este se escondeu após ingerir o fruto do conhecimento: "Onde estás?" (Gn 3:9). Essa pergunta continua ecoando ao longo das gerações, de todas as gerações, tanto de judeus quanto de não-judeus. Esse chamamento à responsabilidade humana na gestão do conhecimento, ou da consciência, é universal, assim como a história. Isso é claro no caso dos profetas hebreus, permanentemente chamados. É claro com relação à descendência da Abraão, e os textos bíblicos são, em grande medida, a história desse chamamento ao povo judeu. Mas é claro também no que diz respeito às pessoas comuns, judeus ou não-judeus e aos outros povos. Amós (séc. VIII a.e.c.), com efeito, enumerou os erros éticos cometidos não apenas pelos habitantes de Israel e Judá, mas também pelos de Damasco, Filistéia, Tiro, Edom, Amon e Moab. (Am, 1:3-13, 2:1-7). O texto declina a universalidade do chamado: "Vocês são para mim como os cuchitas, ó filhos de Israel – palavra de IHWH. Não fiz Israel subir da terra do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir?" (Am, 9:7). Assim, toda a humanidade faz parte dessa grande história que é a história da descendência de Adão e toda ela, envolvida com as questões derivadas do conhecimento, é permanentemente chamada a responder pelos seus atos. E sempre, como Adão ou Caim, ou como séculos depois, Jonas, busca sempre se esconder dessa verdade absoluta.

"Melhorai os vossos caminhos e as vossas obras", disse o profeta Jeremias (séc VI a.e.c.) (Jr 7:3). Mas em que sentido? Se voltarmos aos eventos ocorridos no Jardim do Éden, parece que a tese contida na literatura bíblica é a de que o chamamento tem por objetivo convidar o homem a administrar o conhecimento e o poder dele decorrente de uma forma harmoniosa. Tendo-se em mente o paradigma de equilíbrio que é característi-co da eternidade fundadora. Caim, não por acaso um agricultor, isto é, envolvido direta-mente com as bases mais essenciais das transformações históricas, mata seu irmão Abel, um pastor. A pergunta de Deus é novamente repetida, mas agora num sentido bem mais preciso. No lugar de "Onde estás?" ouve-se "Onde está seu irmão Abel?" (Gn 4:9). A natu-reza desse chamamento divino parece definir o rumo da história a partir da aceitação ou recusa da responsabilidade social do sujeito. Está aqui contida a teoria de que as trans-formações históricas decorrentes do conhecimento, o desenvolvimento da agricultura ou o surgimento do Estado, por exemplo, colocaram o homem contra o homem. O compromisso com a fonte criadora se expressa, portanto, de forma mais visível no compromisso do homem consigo mesmo. O ser humano não pode se esconder de si próprio, de sua condi-ção ou de seus próximos. Isto é, deve-se buscar a harmonia social correspondente à har-monia eterna, a fim de que sejam legitimadas as ações humanas. E harmonia aqui deve ser entendida basicamente como o espírito essencial da Justiça.

O primeiro Isaías (séc. VIII-VII a.e.c.), com efeito, afirmou essa dimensão social da questão: "Ai dos que promulgam leis iníquas, os que elaboram rescritos de opressão para desapossarem os fracos do seu direito e privar da sua justiça os pobres do meu povo, para despojar as viúvas e saquear os órfãos" (Is 10: 1-2). Toda a literatura profética está re-pleta de temas sociais, onde a denúncia dos abusos dos poderosos coincide com o espírito da mensagem divina. A estrutura da sociedade está, para os profetas, em flagrante rota de colisão com o espírito da força que permite o surgimento da mesma sociedade. O caráter contestador dessa historiografia é evidente. Nem os próprios reis ungidos, David e Sa-lomão, por exemplo, escapam dessa crítica visceral, que é crítica à própria organização do Estado. Quando os hebreus pedem um Rei a Deus, por exemplo, o profeta Samuel lhes explica, soturnamente, que o Rei "exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus escravos" (1Sm 8:17). Quanto mais o conhecimento engendra o auto-centramento humano, mais ele é desarmonioso, mais distantes os homens estão de suas raízes ontológicas, mais ilegítimos seus atos. A pretensão humana de colocar-se no lugar de Deus, portanto, como a de almejar a imortalidade, mistura dimensões absolutamente distintas, o transitório e o eterno. Propicia a destruição de todos os padrões, inclusive os de harmonia e justiça. A perspectiva crítica do estudo das gerações, ou da história, é, na literatura bíblica, fundada numa crítica ética.

De fato, nos textos bíblicos, especialmente na literatura profética, uma das denún-cias mais incisivas é a da irresponsabilidade humana diante do conhecimento, ou do poder que ele gera. Da fuga humana ao chamamento divino. Poucas passagens são mais expressivas nesse assunto do que aquelas que envolvem o profeta Jeremias. Em que pese sua insistência na necessidade humana de correção, que o leva ao escárnio público, à prisão e à ameaça de morte, a displicência dos humanos é inamovível. O rei Sedecias, colocado diante das palavras de Deus, escritas por determinação de Jeremias para que tomasse conhecimento dos seus erros, é totalmente irresponsável: "O rei estava sentado em sua casa de inverno... e o fogo de um braseiro ardia diante dele. E assim que Judi lia três ou quatro colunas, o rei as cortava com a faca do escriba e as lançava no fogo do braseiro, até que todo rolo foi consumido pelo fogo do braseiro". (Jr 36: 22-23). Quando Jerusalém é tomada pelos babilônicos, o rei Sedecias é capturado e seus olhos furados, numa metáfora ilustrativa da tragédia da condição humana. Se os olhos de Adão e Eva se abriram, a inabilidade do ser em lidar com o conhecimento o conduz, no entanto, à ce-gueira(Jr 39:7). O desastre humano está, portanto, fundado na recusa em reconhecer o significado fundador da eternidade como fonte do conhecimento. Como escreveu Heschel, as mitsvot, isto é, os mandamentos divinos, "não são ideais, entidades espirituais sus-pensas na eternidade: mitsvot são fins espirituais, pontos de eternidade no fluxo da tem-poralidade" . A tese aqui contida talvez seja a de que o homem não pode tornar-se infini-to, mas pode viver em harmonia com o infinito, mesmo na finitude, se reconhecer humil-demente sua real dimensão no mundo e sintonizar-se com o espírito da moralidade uni-versal.
Não parece haver dúvidas, portanto, nessa historiografia, que as tragédias da histó-ria são fruto das próprias decisões humanas. Gradualmente, quanto mais entramos na literatura profética, as ações divinas punitivas através de eventos naturais decrescem em número e significação. As reações divinas passam a ser prioritariamente históricas: invasões estrangeiras, atrocidades, derrotas, desarticulação social. Isto é, elas se tornam pre-sentes como reação humana a atos humanos. Jeremias parece muito pessimista sobre as possibilidades do homem escapar dessa história reacionária e seus ciclos infinitos de tra-gédias, que começaram com Adão e Eva ao experimentarem o conhecimento. Mas os pro-fetas do final do período do exílio, ou posteriores ao século VI a.e.c., como Ezequiel, Abdias, o segundo e o terceiro Isaías e Jonas, insistirão que existe a possibilidade de uma harmonia nas gerações. Ou que o rumo da história, tal como definido pelo divino, é mar-cado pelo amadurecimento crescente dessa possibilidade. Em Jonas, por exemplo, tal transformação pode ser realizada basicamente através de atos de consciência. Isto é, a atitude de ruptura, revolucionária, interrompe os ciclos reacionários. Assim, a decisão da população de Nínive de, subitamente, aceitar a Justiça divina como sua regra de compor-tamento, e Justiça divina é basicamente justiça social, a livra da destruição (Jn 3).

É claro que é muito forte a tese de que tal transformação será decorrente de uma definitiva intervenção divina na história, através do Messias. Diz o terceiro Isaías: "Com efeito, vou criar novos céus e nova terra; as coisas de outrora não serão lembradas, nem tornarão a vir ao coração. ...Já não haverá ali criancinhas que vivam apenas alguns dias, nem velho que não complete a sua idade ... Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos. ... os meus eleitos consumirão eles mesmos o fruto do trabalho de suas mãos" (Is 65: 17-22). O sentido inspirado da história, assim, o único que é eterno e guarda correspondência com as fontes da existência, é o da busca e realização da harmonia e da Justiça. E ele acabará por irromper dentro do tempo. O mesmo Isaías recorda mais uma vez o Jardim do Éden. A sociedade utópica é aquela aon-de não haverá mais chamado nem fuga, o homem se reencontrará com o homem e o equi-líbrio será restabelecido: "Acontecerá então que antes de me invocarem, eu já lhes terei respondido; enquanto ainda estiverem falando, eu já os terei atendido. O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá feno como o boi" (Is 65: 24-25).

Assim, sendo um ato de conversão ou fruto da ação messiânica, de qualquer forma a Justiça se realizará na história, e não fora dela. Não se trata de um retorno ao Éden. Por isso Isaías relembra a fonte que existia no paraíso, mas explica que a sua dimensão inte-gradora será recuperada pelos seres humanos através de atos históricos. "se afastares do meio de ti o jugo, o gesto ameaçador e a linguagem iníqua; se tu te privares para o famin-to, e se tu saciares o oprimido, a tua luz brilhará nas trevas, a escuridão será para ti co-mo a claridade do meio-dia. O Eterno será o teu guia continuamente e te assegurará a fartura, mesmo em terra árida. Ele revigorará os teus ossos, e tu serás como um jardim regado, como uma fonte borbulhante cujas águas nunca faltam" (Is 58: 9-11).
III - Conclusões.
Existe uma fragmentação documental no pentateuco e na literatura bíblica. Mas mesmo assim esses textos guardam uma unidade fundamental. Um de seus elementos aglutinadores centrais, que aparentemente concentrou a atenção dos escribas ao longo dos séculos, foi a construção de uma teoria da história, ou de uma explicação para os eventos que tem lugar no curso das gerações. Trata-se de uma teoria que buscou explicar o desenvolvimento histórico a partir de uma complexa trama de conflitos entre o humano e o divino, entre a vivência do limitado e as possibilidades de experimentar o ilimitado. Um de seus aspectos mais específicos é a crença de que a história tem um ritmo e um sentido, isto é, que ela está centrada no diálogo entre o tempo e a eternidade e que cami-nha para a realização de um novo patamar na relação do homem consigo mesmo. Essa perspectiva otimista da história é igualmente otimista com relação ao humano.

A historiografia judaica também aponta, com uma clareza que encontramos rara-mente na historiografia antiga, que as escolhas realizadas pelo homem ao longo da história, principalmente no exercício do poder, guardam uma permanente tendência à ilegiti-midade. Isso não é absolutamente original. A literatura budista realizou, na Antigüidade, uma crítica econômica e histórica da construção do poder, apontando o movimento de delimitar propriedades como o ato fundador do Estado (Agganna Sutta,11). Mas o judaís-mo realizou semelhante crítica a partir de uma outra vertente, ética, fundada na tese de que a passagem para a agricultura, ou a expulsão do paraíso, foi assinalada pelo desejo humano de tudo saber e de ser eterno. Nesse sentido o ser negou-se a reconhecer a exis-tência de regras maiores e absolutas. A impossibilidade de realização desse desejo é uma das razões da reacionária e trágica experiência da história. E embora budismo e judaísmo vejam a possibilidade real de uma ruptura libertadora e o advento de uma existência so-cial harmoniosa, o budismo sempre considerou tal probabilidade como oriunda apenas de decisões individuais. O judaísmo, ao contrário, jamais perdeu de vista a natureza coletiva de qualquer experiência histórica transformadora. Transformar a história só é possível através da transformação da humanidade.

Parece claro que poucas investigações históricas alcançaram uma compreensão absoluta das razões que propiciaram o desenvolvimento e o amadurecimento de semelhan-tes e singulares proposições. Mas é evidente que se trata de um desenvolvimento centená-rio, cuja razão repousa em recorrentes ansiedades humanas. Se há dúvidas, portanto, sobre suas origens históricas, não parece haver muitas suspeitas sobre as razões que conduziram o judaísmo à sua sobrevivência e à importância que desempenhou e desem-penha na história do Ocidente. O judaísmo pode ser caracterizado como um dos primeiros sistemas a entender que no fluxo das gerações está contido um processo de amadureci-mento da consciência. Em conseqüência afirmou que está ao alcance do humano definir as bases éticas de uma nova ordem social, justa e harmoniosa.


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