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O Oriente Médio e o discurso de ódio - no O Estado de hoje


O Oriente Médio e o discurso de ódio 


   
Celso Lafer


São indizíveis, adverte a Carta da ONU, os sofrimentos da guerra.
Atingem os que padecem uma pena sem culpa, vitimados pela violência
empregada nos conflitos bélicos. A intervenção de Israel no Líbano,
induzida por uma provocação militar do Hezbollah, trouxe à tona a
sensibilidade em relação a estes sofrimentos que incidem no contexto dos conflitos no Oriente Médio.O contencioso Israel-palestinos é um dos epicentros destes conflitos.
Ele não tem a clareza jurídica de uma controvérsia, qual seja a das
condições de criação de um Estado palestino política e economicamente
viável e o reconhecimento do direito de Israel de viver em paz dentro
de fronteiras reconhecidas. Não tem esta clareza pois o problema se
insere num ambiente de tensões. As tensões, em contraste com as
controvérsias, são difusas. Manifestam-se por posturas que escapam à
razoabilidade da lógica diplomática.
O Oriente Médio está permeado de múltiplas tensões. Entre elas a
tensão da hegemonia provocada pelo unilateralismo
 
 
Inaceitável trazer essas tensões para uma sociedade plural e
fraterna 
 
 
da intervenção norte-americana no Iraque e seus efeitos; a tensão do
solipsismo da razão terrorista; a tensão estratégica, induzida pelas
aspirações de poder do Irã; a tensão da sublevação dos
particularismos religiosos e nacionais.
Um entorno regional com estas características é centrífugo e
heterogêneo. Carece de uma vontade comum de estabilidade.
Por isso os esforços de persuasão diplomática se vêem atropelados
pela violência. Esta é a razão pela qual a política na região está
mais vinculada à busca dos meios para sobreviver e vencer, ficando em
segundo plano a aspiração kantiana de construir a paz e evitar os
sofrimentos da guerra, reconhecendo o direito à hospitalidade
universal.
Esta contextualização de complexidades é necessária para o tema deste
artigo, que diz respeito ao impacto, no Brasil, da importação das
tensões no Oriente Médio.
Uma das características da globalização é a internalização, nos
países, das tensões do mundo. É o que vem ocorrendo com a situação do
Oriente Médio, no qual um dos elementos de irradiação é a tensão de
hegemonia trazida pela ação norte-americana no Iraque. Esta leva ao
antiamericanismo e afeta Israel, que tem nos Estados Unidos um
decidido aliado.
No caso do Brasil, para a equação da internalização contribui o fato
de existir um expressivo número de cidadãos brasileiros de origem
libanesa com laços de família e de memória afetiva em relação ao
Líbano, com compreensível sensibilidade ao que se passa num país que
se estava reconstruindo em meio a suas dificuldades. Também é um dado
desta equação a existência de um número relevante de cidadãos
brasileiros de origem judaica, muitos dos quais também têm laços de
família e de afeto com o Estado de Israel e que, por isso mesmo,
olham para a segurança deste país com atenção. Neste olhar existe a
memória de guerras do passado e dos insucessos das negociações,
permeado por uma sensibilidade própria em relação aos atentados
terroristas em Israel e ao fato de o Hezbollah operar a partir do
Líbano, respaldado pela Síria com o declarado apoio logístico-militar
do Irã - cujo presidente denega o Holocausto e propõe o
desaparecimento de Israel do mapa do Oriente Médio.
Feitos estes registros, observo que o preâmbulo da Constituição
considera como valores supremos do nosso país a concepção de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica de
controvérsias.
Esta diretriz tem sido bem-sucedida na construção histórica do
amálgama do povo brasileiro na diversidade das suas origens.
Daí o tranqüilo entendimento entre brasileiros de origem árabe e de
origem judaica. Este é um adquirido da convivência nacional a ser
preservado. Não pode ser corroído pelo discurso de ódio que,
lamentavelmente, tem aparecido como parte das internalizações das
tensões do Oriente Médio. É o caso, por exemplo, de certas virulentas
manifestações antiisraelenses mescladas de inequívoco anti-semitismo
do tipo das relatadas pela revista Carta Capital de 6/9 em matéria
apropriadamente intitulada O Líbano é aqui.
A contenção do discurso de ódio tem sido objeto das normas
internacionais dos Direitos Humanos às quais o Brasil aderiu. É o que
estipula a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto
de São José. Este, no seu artigo 13, 5, reza: 'A lei deve proibir
toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio
nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à
discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.' É nesta
moldura que o Direito brasileiro, no âmbito do artigo 5º, XLII, da
Constituição, que prevê o crime da prática de racismo, capitula como
prática de racismo o discurso de ódio (artigo 20 da Lei 7.716/89, com
a redação dada pela Lei 8.081/90).
Foi esse o entendimento que o Supremo Tribunal Federal consagrou ao
decidir, em 2003, o caso Ellwanger, observando que a liberdade de
expressão não consagra o 'direito à incitação ao racismo'.
Daniel Sarmento, escrevendo sobre o 'hate speech', explica, neste
contexto, por que ele compromete a dinâmica da democracia. Observa
que o discurso de ódio está mais próximo de um ataque que de uma
participação no debate de opiniões; não se baseia no recíproco
reconhecimento da igualdade da dignidade humana, que é a garantia da
integridade da discussão na esfera pública, e, ao estigmatizar
grupos, a eles causa dano, propiciando preconceitos.
Em síntese, a importação das tensões do Oriente Médio na forma de
discurso de ódio precisa ser afastada. É inaceitável, pois fere a
dignidade humana e compromete um dos objetivos constitucionais do
Brasil, que é o de 'promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação' (Constituição federal, artigo 3º, IV).


Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi
ministro das Relações Exteriores no governo FHC




 

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