Um crime de guerra em Qana?
quarta-feira, agosto 09, 2006
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Um crime de guerra em Qana?
Por Orde F. Kittrie
A tragédia de Qana intensificou as acusações de que as manobras de
Israel no Líbano violam o direito internacional. Toda morte de uma
pessoa inocente é extremamente lamentável; mas não há evidência de que
Israel tenha cometido qualquer crime de guerra. Em contrapartida,
Hisbolá, Irã e Síria violaram a lei internacional muito claramente
nesse conflito. Além disso, a conduta de Israel tem sido muito melhor,
comparativamente, do que a de seus mais poderosos acusadores quando
seus próprios interesses foram ameaçados.
A lei internacional aponta três grandes proibições em relação ao
incidente de Qana. A primeira proíbe ataques deliberados contra civis.
A segunda proíbe que armamentos sejam escondidos em áreas civis, o que
transforma a população em "escudos humanos". A terceira proibição, a
restrição de proporcionalidade que Israel é acusada de ter violado,
envolve um complicado e controverso teste de proporcionalidade.
O Protocolo I da Convenção de Genebra contém uma versão do teste de
proporcionalidade, o Estatuto do Tribunal Criminalista Internacional,
outra; nenhum dos dois é universalmente aceito. Como resultado, o
teste de proporcionalidade é determinado pelo "direito internacional
consuetudinário" – um amálgama de tratados, acordos e decisões
jurídicas não-universais –, e também pela maneira como nações
influentes agem usualmente. Ele não depende, entretanto, do número
relativo de baixas ou do montante de força utilizado – mas da
intenção, do propósito do combatente. De acordo com a lei
internacional consuetudinária, a proporcionalidade proíbe ataques que
possam causar morte incidental ou ferimentos a civis se esses danos
forem, em média, excessivos em relação ao legítimo objetivo militar
global traçado.
Em Qana, uma aeronave israelense disparou contra um prédio para
impedir que o Hisbolá atirasse foguetes em suas cidades. A aeronave
não objetivou alvos civis deliberadamente; mas os foguetes do Hisbolá
são sempre disparados contra áreas civis, o que se constitui em claro
crime de guerra. O dirigente da ONU para assuntos humanitários, Jan
Efeland, apelou ao Hisbolá, na semana passada, para que detivesse sua
prática de "blindar-se covardemente" entre mulheres e crianças: "Ouvi
que eles estavam orgulhosos por terem perdido muito poucos
combatentes, enquanto a população civil é quem arca com a parte mais
difícil de tudo isso." Se o Hisbolá utilizou-se de civis libaneses em
Qana como "escudos humanos", então o Hisbolá – e não Israel – é
legalmente responsável por suas mortes.
Se Israel cometeu um equívoco e o Hisbolá não atirava a partir de
áreas civis nem se escondia entre a população, a legalidade da ação
pode ser avaliada pelo teste de proporcionalidade. Mas o teste é vago,
houve bem poucos casos – se algum – desde a II Guerra Mundial no qual
um soldado, comandante ou país estivesse convicto de sua violação. Na
ausência de orientação por parte dos tribunais, determinar se o
exército de Israel falhou no teste da proporcionalidade depende de uma
avaliação do número esperado de baixas civis, de quais eram os
objetivos militares como um todo, de qual o contexto em que o país
estava operando e de como a comunidade internacional tem comparado, em
geral, o risco civil em relação aos objetivos militares.
Israel não esperava danos civis; advertiu os civis para que deixassem
Qana – e a investigação oficial de Israel concluiu que seu exército
atacou com base na "informação de que o prédio não era habitado por
civis e que estava sendo usado como esconderijo pelos terroristas." A
lei de guerra reconhece que erros são inevitáveis e não condena
soldados que, em boa fé, procuram evitá-los.
O maior objetivo militar de Israel é sobreviver a ataques sofridos por
inimigos determinados a aniquilar o país. O líder do Hisbolá, Hassan
Nasrallah, afirmou: "Israel ... é uma entidade violenta, ilegal e
ilegítima, que não tem futuro ... Seu destino está expresso em nosso
lema: 'Morte a Israel'". Portanto, Israel se esforça para evitar que o
Hisbolá utilize os 10.000 foguetes que ainda lhe restam, e para
implementar a Resolução 1.559 do Conselho de Segurança da ONU que
determina o desarmamento do Hisbolá.
Entretanto, o Hisbolá e o Irã – que apóia o grupo terrorista com
armas, diretrizes e mais de US$ 100 milhões por ano – estão em
permanente violação de uma lei internacional. Seus brados pela
destruição de Israel violam o acordo internacional contra genocídios,
que proíbe "incitamentos diretos e públicos ao genocídio". O esforço
do Irã em desenvolver um arsenal nuclear que possa obliterar Israel ou
intimidar sua resposta a futuros ataques do Hisbolá viola o Tratado de
Não-Proliferação de Armas Atômicas. O apoio iraniano (e sírio) ao
Hisbolá viola a Resolução 1.373 do Conselho de Segurança da ONU,
exigindo que os países "abstenham-se de fornecer qualquer tipo de
apoio, ativo ou passivo, a entidades ou pessoas envolvidas em atos
terroristas". O Hisbolá deu início ao conflito armado, atirando
foguetes contra cidades israelenses e seqüestrando soldados
israelenses: atos de guerra não provocados, que violam um fronteira
internacionalmente reconhecida.
Israel tem agido em sua auto-defesa e tem evitado a morte de civis,
até mesmo avisando antecipadamente por telefone aos ocupantes das
casas sobre os ataques que irá efetuar aos esconderijos do Hisbolá.
Enquanto o Hisbolá deliberadamente maximiza os danos causados aos
civis israelenses e libaneses, Israel coloca seus próprios soldados em
risco para minimizar as vítimas civis libanesas.
O currículo de muitos dos mais poderosos acusadores de Israel –
incluindo China, Rússia e União Européia – é péssimo no que diz
respeito à avaliação de riscos civis em relação a objetivos militares.
A China assassinou centenas de pacifistas durante os protestos na
Praça da Paz Celestial em 1989. Ocupou o Tibete durante cinco décadas,
tendo massacrado dezenas de milhares de pessoas. E tenciona invadir
Taiwan se a ilha declarar sua independência. Os manifestantes da Praça
da Paz Celestial, nem do Tibete e nem de Taiwan jamais ameaçaram
"varrer a China do mapa."
A Rússia vem lutando desde 1994 para reprimir a luta da Chechênia por
sua independência. Numa população chechena de um milhão de pessoas,
cerca de 200.000 foram mortas enquanto a Rússia arrasava a capital
Grozny. Os rebeldes chechenos não propuseram a ameaça de "varrer a
Rússia do mapa". Todos os principais países da União Européia
participaram ativamente da campanha de bombardeios da OTAN contra a
Iugoslávia em 1999, durante 78 dias. O objetivo militar era acabar com
a opressão da Iugoslávia sobre a minoria kosovar. As bombas e mísseis
da OTAN destruíram pontes, instalações elétricas e uma rede de
televisão, matando centenas de civis. A Iugoslávia não impôs qualquer
ameaça à existência de nenhum dos paises da União Européia que a
atacaram.
Se compararmos à forma como China, Rússia e União Européia lidaram com
ameaças não-existenciais a seus paises – e a despeito das condutas ao
arrepio da lei por parte do Hisbolá, do Irã e da Síria –, as reações
de Israel às constantes ameaças à sua existência têm sido
consideravelmente brandas, ao invés de desproporcionalmente violentas.
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Orde F. Kittrie é professor de Direito Internacional na Universidade
Estadual do Arizona, EUA, e trabalhou no escritório do Conselheiro
Legal do Departamento de Estado dos Estados Unidos entre 1993 e 2003.
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Fonte: http://online.wsj.com/article/SB115473619322627572.html
Tradução: Gisella Gonçalves