Doença ocidental legada aos muçulmanos - Reprodução
domingo, dezembro 18, 2005
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Doença ocidental legada aos muçulmanos
Jonathan Freedland
Houve poucos momentos memoráveis na campanha eleitoral britânica de
2005, mas um não esqueço. Eu entrevistava um grupo de eleitores
muçulmanos em Edimburgo sobre como o guerra do Iraque tinha
desestabilizado suas alianças políticas e um senhor idoso disse que
não culpava Tony Blair nem George W. Bush pelo rumo que as coisas
tomaram, pois eles eram meros títeres de uma força mais poderosa. E
que a catástrofe de 11 de setembro não foi o que pareceu: os autores
não foram os 19 seqüestradores dos aviões, mas agentes ocultos,
desconhecidos até de Bush. Mais tarde, a caminho do metrô, perguntei-
lhe qual seria esse poder secreto. Resposta: "Judeus ricos."
Ponderei que, tal como há muita mentira sobre muçulmanos, também há
sobre judeus, e nenhum de nós devia aceitá-las. Deixo seus
comentários de lado, divagações desconexas.
Nos últimos anos, li muitas notícias de pregações no mundo árabe
contra o judaísmo e os judeus e tentei vê-las num contexto mais
amplo. Assim, assisti à TV saudita perguntando a transeuntes se
apertariam a mão de um judeu e a resposta unânime foi: "Não."
Presumi que isso talvez fosse algo excepcional, e não um indicador.
Li a transcrição de uma entrevista, da mesma TV, com uma garotinha
de 3 anos, Basmallah, apresentada como "uma verdadeira muçulmana".
Eis o diálogo: "Basmallah, você conhece os judeus?"
Basmallah: "Sim." Entrevistador: "Gosta deles?" Basmallah: "Não."
Entrevistador: "Por que não gosta deles?" Basmallah: "Porque são
macacos e porcos."
Estremeci ao ler isso, mas foi traduzido e distribuído pelo Middle
East Media Research Institute (Memri) e, como outros, me perguntei
sobre as motivações dessa entidade, fundada por um veterano da
inteligência militar israelense. (Poucos contestam as traduções do
Memri, mas, por mais impalatáveis que sejam, os textos são bem
reais.) Esse tem sido meu procedimento-padrão, sempre tentando ver
se há um modo de contextualizar tais incidentes, para vê-los na
dimensão adequada. Minha motivação é simples: prefiro que minha
identidade judia seja positiva, e não definida por uma eterna defesa
contra o anti-semitismo. Mas todos têm seus limites e atingi o meu
quando o presidente do Irã se pôs ao lado dos neofascistas e
racistas que negam o Holocausto. "Alguns países europeus insistem em
dizer que Hitler matou milhões de judeus inocentes em fornos", disse
Mahmoud Ahmadinejad. "Embora não aceitemos essa afirmação ..."
De repente, as desculpas usuais não funcionam mais. Ninguém pode
dizer que o presidente do Irã, na verdade, reclamava de Israel e do
sionismo, e não dos judeus, nem que ele falava dos crimes coloniais
do Ocidente. Estava era propagandeando um dos bordões que definem a
extrema direita racista - a negação do Holocausto. Uma posição que
visa a negar aos judeus sua história, seu sofrimento, quase sua
existência. É como negar que os afro-americanos tenham sido
escravos, coisa de quem só deseja o mal. Sob esta luz, as reflexões
anteriores de Ahmadinejad parecem bem diferentes. Em outubro, quando
se postou sob uma faixa que prometia "um mundo sem sionismo" e
clamou que Israel fosse "varrido do mapa", muitos judeus sentiram um
calafrio ante o que parecia uma fantasia aniquilatória. Para cabeças
mais frias, aquilo fora só o estilo hiperbólico da região, uma
jogada anti-sionista pesada para a imprensa, e não anti-semita. O
que ele queria, explicaram-me pacientemente, é um mundo sem
sionismo, não sem judeus.
Bem, estou farto de explicações benevolentes. Quem se recusa a
acreditar na verdade histórica é capaz de qualquer coisa. Não se
trata de uma TV a cabo árabe nem de um obscuro jornal egípcio. Mas
de um chefe do governo, líder de uma nação de 70 milhões de pessoas -
um país que aspira a liderar o mundo muçulmano e tem ambições
nucleares. Logo, não é paranóica a preocupação com um presidente que
tem sonhos de aniquilação. É prudente. Infelizmente, isso não
termina com Ahmadinejad, um caipira que o analista iraniano dr. Ali
Ansari admite ser "um constrangimento monumental". Pois ele deu voz
a um sentimento entranhado no Irã e no mundo muçulmano. Basta dar
uma olhada na imprensa iraniana. "Muitos historiadores revisionistas
acreditam que a história do Holocausto é falsa e o provaram com
muitas evidências e documentos", diz o jornal conservador Resalat. O
linha-dura Siyasat-e Ruz aplaude o líder por "revelar a verdade".
Não é surpresa. TVs em todo o mundo muçulmano vêm apresentando esse
lixo há décadas, com pavoroso anti-semitismo. O especial de Ramadã
da TV jordaniana este ano foi Al-Shatat, uma série produzida na
Síria que fala de um "governo judaico global" e repete a velha
infâmia de que os judeus usam o sangue de crianças cristãs na comida
da Páscoa. Essa foi uma seqüência do especial de Ramadã da TV
egípcia em 2002, o Cavaleiro sem Cavalo, cujo tema central foram os
Protocolos dos Sábios do Sião, uma fraude de cem anos, criada pela
polícia secreta czarista, sobre um suposto complô judaico para
dominar o mundo.
Não podemos seguir negando: o vírus do anti-semitismo infectou o
mundo islâmico. E, para quem odeia tanto os judeus, é uma espécie de
doença, como pode testemunhar a Europa cristã. Esta é uma das mais
torpes heranças do Ocidente: os muçulmanos adotarem uma forma de
anti-semitismo exógena, copiando uma linguagem e uma iconografia da
cristandade. A infâmia sangrenta e os Protocolos foram forjados em
Norwich, Mainz ou Moscou, mas retomam o fôlego no Cairo, em Riad e
Damasco.
Claro que isso é uma ameaça para os judeus, mas também uma tragédia
para os muçulmanos. Sua tradição histórica é valorizar o
conhecimento e, quando um ignorante como Ahmadinejad nega a
esmagadora evidência histórica, debocha dessa tradição. Numa época
que os judeus ainda recordam como uma era de ouro, os muçulmanos
eram o povo do saber, da ciência, da tolerância e da coexistência,
um contraste com os bárbaros cruzados. Mas agora muitos engolem os
mitos e as mentiras que nutriam os camponeses da Europa no passado e
perduraram ao longo do século passado, conduzindo a Treblinka.
Os muçulmanos de hoje não deviam participar de tal ignorância ou
cegueira, que os diminui. É de aplaudir Azzam Tamini, da Associação
Muçulmana da Grã-Bretanha, por sua condenação implícita de
Ahmadinejad na conferência Stop the War, dizendo à platéia que,
qualquer que seja sua opinião, não poderá negar o Holocausto. O
Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha deve seguir esse exemplo e o do
Conselho Muçulmano de Assuntos Públicos dos EUA, que também condenou
esse pregador do ódio. E os não-muçulmanos progressistas que têm
feito alianças com os islâmicos devem fazer o mesmo. Isso talvez
leve a conversas desconfortáveis, mas os dias de negação têm de
acabar.
Jonathan Freedland é
analista político do jornal
britânico The Guardian