A história de Balam e sua jumenta é a história das nossas próprias vidas, com uma porção de lições
Um misterioso evento na porção desta semana da Torá revela um fenômeno novo para a moderna psicologia – que devemos ouvir a voz do nosso corpo, que carrega mensagens, lembranças e força potente.
Um dos episódios mais estranhos na história ocorre na porção desta semana. O profeta não-judeu Balam é contratado pelo rei moabita Balac para amaldiçoar o povo judeu. Ele desejava derrotá-lo em batalha e expulsá-lo. A princípio D'us não permite que Balam vá. Mas depois que os emissários de Balac imploraram a Ele, D'us permite que ele vá, dizendo: “Mas faça apenas exatamente como Eu o instruir.”
Balam levantou-se pela manhã, arreou sua jumenta e se pôs a caminho. D'us colocou Seu anjo na estrada para enfrentá-lo. Quando a jumenta viu o anjo de D'us de pé com uma espada na mão, saiu da estrada e foi para um campo. Balam bateu no animal para fazê-lo voltar à estrada. O anjo de D'us então ficou de pé numa trilha estreita através do vinhedo, onde havia uma cerca de cada lado. Quando a jumenta viu o anjo de D'us, afastou-se para o lado, esmagando o pé de Balam contra o muro. Este a golpeou ainda mais. O anjo de D'us continuou à frente, e ficou num local estreito, onde não havia espaço para virar-se para a direita ou para a esquerda. Quando a jumenta viu o anjo de D'us, deitou-se recusando-se a ceder a Balam. Este perdeu a paciência e bateu no animal com uma vara.
D'us então abriu a boca da jumenta, e esta perguntou a Balam: “O que eu fiz a você para que me batesse três vezes?”
“Você me constrangeu [ou: está brincando comigo]” – gritou Balam à jumenta, “Se eu tivesse uma espada na mão agora mesmo teria matado você!”
A jumenta replicou: “Não sou sua [fiel] jumenta, a qual você tem cavalgado até este dia. Alguma vez fui desrespeitosa com você?” Balam respondeu: “Não.”
D'us então abriu os olhos de Balam e ele viu o anjo de pé na estrada com uma espada na mão. [Balam] ajoelhou-se e prostrou-se diante dele.
O anjo de D'us disse-lhe: “Por que bateu na jumenta três vezes? Vim para enfrentá-lo, porque sua incumbência é detestável para mim. Quando a jumenta me viu, ficou de lado três vezes. Se ela não tivesse se voltado perante mim, como fez agora, eu teria matado você e poupado [a jumenta].”
Balam disse ao anjo de D'us: “Eu pequei! Não sabia que você estava na estrada à minha frente. Se você considera errado [eu ir], voltarei para casa.” O anjo disse a Balam: “Vá com os homens, mas não diga outra coisa além das palavras exatas que declaro a você.
A narrativa prossegue com D'us obrigando Balam a abençoar os judeus em vez de amaldiçoá-los, para espanto de Balam e seus acompanhantes.
Essa história com a jumenta falante é intrigante do princípio ao fim. Se D'us não queria que Balam fosse até Balac, por que simplesmente não o impediu de ir? Se por algum motivo D'us queria bloquear seu caminho com um anjo, por que escondeu o fato de Balam e permitiu que a jumenta visse o anjo – afinal, Balam, não a jumenta, era o profeta!
Um axioma da Torá declara que D'us não faz milages em vão. Por que então foi necessário esse milagre dos milagres, fazer a jumenta ver o anjo, resistir a mover-se, até que a jumenta termina por falar? Esse milagre teria sido totalmente desnecessário se o próprio Balam tivesse visto o anjo. Por que a necessidade de abrir a boca da jumenta?
A trama se complica: a Mishná declara (na Ética dos Nossos Pais) que a “boca da jumenta” foi uma das dez coisas singulares criadas ao crepúsculo do sexto dia da criação! Em outras palavras, D'us plantou esse episódio desde o princípio dos tempos criando a “boca da jumenta” para o dia em que o animal fosse falar com Balam!
Por que a “boca da jumenta” é tão significativa?
Em poucas palavras: a Torá fala na linguagem do homem. Por baixo do significado literal na narrativa da Torá estão camadas e mais camadas de dimensões mais profundas. No “corpo” da história está sua alma – ideias profundas, espirituais e psicológicas que iluminam a natureza de nossa psique e fornecem uma direção sobre como lidar com os desafios da vida. Todo personagem na Torá, todo episódio de sua narrativa faz paralelo com uma faceta de nossa personalidade.
A história de Balam e sua jumenta é a história das nossas próprias vidas, com uma porção de lições.
A palavra hebraica para jumento é “chamor”. [Uma jumenta (jennet) é chamada “osson”. “Pered” é o nome hebraico para mula, um híbrido nascido de cavalo e jumenta. Porém, o nome geral para jumento, macho ou fêmea, é “chamor”].
O Baal Shem Tov explica que “chamor” também significa matéria. Em Shemot o versículo declara: “Quando vires o jumento de teu amigo sendo sobrecarregado pelos seus fardos, não o ignore. Cabe a você ajudá-lo a aliviar seu fardo.” O Baal Shem Tov interpreta: você observa “chamor” – seu corpo físico e o grosseiro materialismo da vida – e vê que ele é seu inimigo, opondo-se a tudo que é espiritual, e sentindo-se sobrecarregado pelas sublimes responsabilidades da alma. Você pode então pensar em ignorar o corpo para que ele não o distraia de cumprir ao seu chamado. Você pode até querer punir seu corpo por meio do ascetismo e auto-flagelação. Diz a Torá: Não! Você é responsável por apoiar, refinar e elevar o “chamor”, mesmo que ostensivamente ele seja seu inimigo.
O Profeta Balam representa o paradoxo de um homem espiritual trancado num estilo de vida decadente. Cada um de nós tem duas dimensões: um lado sagrado e um profano. Uma pessoa pode ser profundamente espiritual, mas também profundamente corrupta. Na verdade, o Talmud diz: “quanto maior a pessoa, maior sua má inclinação.” Uma pessoa extraordinariamente dotada sempre tem desafios igualmente poderosos. Se forem deixados sem disciplina, esses dons podem ser abusados. E quando eles são, é muito difícil chegar até a pessoa. Porque quanto mais inteligente ela é, melhores são as suas desculpas e sua capacidade para cobrir suas pistas. Pode mascarar sua subjetividade com brilhantes cortinas de fumaça.
No seu extremo, você tem Balam. Um profeta propenso e deliciado em usar seu poder Divino para amaldiçoar uma nação inteira.
Corrupção ou distorção espiritual é pior que outras formas de corrupção, porque usa uma força muito positiva para fins negativos. Em outros exemplos de corrupção, você sempre pode esperar que a consciência e o espírito da pessoa possam ser despertados. Mas depois que o espírito foi corrompido, e a alma ficou refém das forças destrutivas, que recurso resta?
O mesmo é verdade para qualquer abuso perpetrado por uma pessoa que supostamente ama você: um pai, um irmão, um cônjuge. Com estranhos ficamos em guarda. Se um estranho é abusivo, ele/ela não pode ferir você excessivamente porque você não espera muito de um estranho. Porém, abuso vindo de um ente querido magoa no local mais profundo: o local do amor. Um pai, por exemplo, supõe-se que ama você, e como filho você está vulnerável perante ele. Assim, quando um pai é abusivo, isso afeta o próprio âmago do nosso ser: nossa alma. O pior abuso é aquele que fere nossos locais mais vulneráveis. Nada é pior que o próprio amor – e a fonte do amor – (ab)usada de maneira cruel.
Então qual é o antídoto para este exemplo de distorção? Se a pessoa querida, ou aquela que deveria estar proporcionando amor, torna-se corrupta a ponto de nem sequer ouvir, como então você faz contato com ela?
O dilema também está na perspectiva do abusado (o sobrevivente): depois que alguém foi magoado numa parte profunda de seu espírito, não permite que mais ninguém entre. Então, como ele pode ser alcançado?
Porém, D'us em Sua infinita sabedoria precede a cura antes da doença. Até quando a alma parece ser incapaz de ouvir a mensagem, o corpo tem sua própria voz que fala conosco. Na moderna psicologia há um fenômeno, que chamamos de “hipotermia psicológica”. Quando uma criança sofre abuso severo por parte de um ente querido (especialmente se é continuado) ela “sai do corpo” para distanciar-se da experiência. Um dos motivos para isto é presumivelmente porque a criança não pode tolerar a possibilidade de um ente querido a ferindo. Portanto, se dissocia da experiência, como se não acontecesse com ela.
A hipotermia é “uma diminuição da temperatura do corpo a um nível no qual as funções cerebrais e musculares normais são afetadas.” Quando uma criança, por exemplo, cai em água gelada, e sua temperatura decresce a níveis perigosos, a criança entra em estado de choque, que fecha as funções vitais básicas a tal ponto que ela pode parecer morta, a fim de preservar o mínimo de energia para os órgãos vitais. Em outras palavras, para sobreviver, as faculdades conscientes precisam parar de funcionar temporariamente. O mesmo é verdade no campo psicológico. A fim de sobreviver, às vezes temos de nos afastar de uma experiência, a tal ponto que podemos ficar inconscientes dela em nossa mente consciente.
Porém – e este é o grande porém – mesmo quando nosso espírito consciente está inconsciente da experiência, nosso corpo se lembra dela. Toda experiência em nossa vida está ligada à lembrança do nosso corpo. É por isso que falamos sobre sentir “nós” e “apertos” em nosso corpo. Sensações psicológicas não permanecem no âmbito mental; elas mergulham no corpo, causando todos os tipos de reações físicas (“nó no estômago: é um exemplo suave). A ansiedade cria toxinas em seu corpo. Experiências fortemente traumáticas dão “nós” no seu corpo.
Em casos graves, a mudança de personalidade que ocorre na hora do abuso permanece muito depois da experiência. Uma criança pode crescer e ficar adulta e realmente mudar de personalidade, e está vivendo, em algumas maneiras, como outra pessoa, após ter tido experiências “fora do corpo”, tão grave foi o abuso inicial.
Mas, mesmo quando a alma, qualquer que seja o motivo, é incapaz de reconhecer conscientemente uma experiência, o corpo a armazenou, para o dia em que será seguro emergir. E nisso está a verdadeira força da terapia e crescimento: ajudar um indivíduo a encontrar segurança, para que possa então trabalhar em “desatar os nós” e permitir-se acessar a alma que teve de se esconder há tanto tempo.
De maneira alguma esse é um processo simples. Pode até ser torturante às vezes. Porém, de uma maneira estranha esse fenômeno é testemunha das maiores resistências do ser humano: D'us permite que um filho sobreviva até às piores experiências, e então dá a ele a força para reconectar-se consigo mesmo quando a hora for certa e a situação segura. Mesmo quando a alma não está consciente da lembrança, porque o abuso veio de uma conexão da alma – uma pessoa amorosa – o corpo é dotado com uma sabedoria que recorda. E guarda o segredo até o dia em que a alma conseguirá escutar a mensagem.
Este é o interior da história de Balam e sua jumenta. D'us não podia contactar Balam num nível fundamental. Ele viu que Balam tinha a intenção de ir até Balac e ajudá-lo a implementar seu plano maléfico. Mas mesmo quando a alma não pode ser alcançada, o corpo pode. Assim é o “chamor” – o corpo – que vê o “anjo” e é o corpo que clama à pessoa, fazendo-a abrir os olhos.
O que é mais fascinante sobre este conceito é que geralmente associamos percepção com a alma. Porém, o misticismo judaico ensina que o corpo também foi criado por D'us. Ele contém, portanto, energia Divina única que é sua. Na verdade, o corpo carrega enorme poder originado da Essência de D'us, que em algumas maneiras é superior até à energia da alma!
Mas com frequência, quando nosso corpo fala conosco, conclamando-nos a agir, podemos ignorar a voz. Ou pior: podemos “bater” no corpo, como Balam bateu na jumenta, porque está se tornando um empecilho e nos distraindo de nossos planos equivocados.
Portanto, temos muitas vozes disponíveis. Numa situação sadia, e em muitos exemplos, é a voz da nossa alma que devemos considerar. Porém, às vezes nosso corpo carrega importantes mensagens para nós. A pergunta é: estamos escutando?