Uma canção desesperada

Uma canção desesperada

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Uma canção desesperada
Celso Martins
Um ambicioso ciclo criativo que junta a pintura, a palavra e a música, mas que é também uma memória do Holocausto.
Segregação, fuga, morte no campo. 
Visto de longe, o destino de Charlotte Salomon (1917-1943) não é diferente da maioria dos judeus alemães nos anos 30 e 40. Nascida numa família culta e abastada, viu o pai ser impedido de dar aulas na universidade; a madrasta, a importante cantora lírica Paula Lindberg e figura de obsessão para Charlotte, impedida de cantar para não-judeus e ambos serem internados num campo de concentração de onde haveriam de escapar. No seu caso, porém, ao horror induzido pelo regime acrescenta-se ainda uma história familiar de contornos trágicos, com os suicídios da tia, da mãe e da avó em momentos decisivos da sua vida.
Salomon acabaria assassinada, grávida, em Auschwitz em 1943. Para trás, deixados em caixotes, ficavam cerca de 1300 guaches que executou entre 1940 e 1942 quando se refugiou no Sul de França com os avós após a intensificação das perseguições. Entregue ao pai em 1947, esse acervo foi parcialmente mostrado em exposições na Holanda e Alemanha, durante os anos 60, mas só a partir dos anos 90 a sua obra despertou verdadeira atenção internacional.
A sua estrutura é, porém, mais complexa: simultaneidade de tempos na mesma imagem; polifonia de vozes e figuras; espaços que se tornam quase abstratos ou intensamente narrativos, por vezes recorrendo a dissociações entre texto e imagem; solilóquios meditativos; referências religiosas, filosóficas ou musicais alargam a densidade de uma obra que se vai construindo de acordo com uma lógica que segue as convenções narrativas do teatro (com uma sucessão de cenas e atos) dando um sentido global a desenhos que sobrevivem na sua qualidade individual e revelam uma autoria.
Como sugere a historiadora Griselda Pollock, que escreveu um livro sobre Charlotte, a receção destes trabalhos tem sido marcada pela ambivalência entre o reconhecimento da tragédia pessoal e a dificuldade de clarificar o lugar de uma obra como estas no contexto da arte do seu tempo. O observador, porém, não tem de escolher. Como os romances de Primo Levi ou a poesia de Paul Celan, os diários de Anne Frank ou Victor Klemperer, os desenhos de Charlotte Salomon são evidentemente um contributo para entender a desumanização a que o III Reich conduziu as suas vítimas. Mas na sua complexidade e vitalidade trágica, também reafirmam a importância da arte como forma de resistência à monstruosidade.

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