Quase no final da Parashá Vaetchanan, há uma declaração tão discreta, mas ao mesmo tempo com implicações tão abrangentes que desafia a impressão que tem prevalecido na Torá, dando uma complexidade inteiramente nova à imagem bíblica do povo de Israel.
O Eterno não colocou Sua afeição sobre vocês e os escolheu porque eram mais numerosos que os outros povos, pois vocês são o menor de todos os povos. 1 Não é isso que temos ouvido até agora. Em Bereshit, D'us promete aos patriarcas que seus descendentes serão como as estrelas do céu, a areia na praia e o pó da terra, incontáveis. Avraham será o pai não apenas de uma nação, mas de muitas.
No início do Shemot lemos sobre como a família do pacto, formada por meras setenta pessoas quando desceram ao Egito, era “fértil e prolífica, e sua população aumentou. Eles se tornaram tão numerosos que a terra ficou repleta com eles”. 2
Três vezes no livro Devarim, Moshê descreve os israelitas como sendo “tantos quanto as estrelas do céu”.3 O Rei Shlomo fala sobre si mesmo como colocado entre “o povo que escolheste, um grande povo, numeroso demais para contar ou numerar.”4 O Profeta Hosea diz que “os Israelitas serão como a areia da praia, que não pode ser medida ou contada.”5
Em todos esses textos e em outros é o tamanho, a grandeza numérica, do povo que é enfatizada. O que, então, devemos fazer com as palavras de Moshê que fala de sua pequenez?
Targum Yonatan interpreta isso como não sendo sobre números, mas sobre auto-imagem. Ele não traduz como “o menor dos povos”, mas como “o mais simples e humilde dos povos.” Rashi dá uma leitura similar citando as palavras de Avraham “Eu sou apenas pó e cinzas,” e as de Moshê e Aaron, “Quem somos nós?”
Rashbam e Chizkuni dão a explicação mais direta de que Moshê está contrastando os israelitas com as sete nações com quem eles estariam lutando na terra de Canaan/Israel. D'us iria levar os israelitas à vitoria apesar do fato de que eles estavam em bem menor número que os habitantes locais.
Rabenu Bachya cita Maimônides, que diz que teríamos esperado que D'us, Rei do universo, tivesse escolhido a nação mais numerosa no mundo como Seu povo, pois “a gloria do rei é a quantidade de pessoas.”6 D'us não agiu desta forma. Assim, Israel deveria se considerar extraordinariamente abençoado porque D'us o escolheu, apesar de sua pequenez, para ser Seu am segulá, Seu tesouro especial. Rabenu Bachya se viu forçado a dar uma leitura mais complexa para resolver a contradição de Moshê, em Devarim, dizendo tanto que Israel é o menor dos povos e “tantos quanto as estrelas do céu”. Ele transforma isso num subjuntivo hipotético, significando: D'us ainda teria escolhido vocês, mesmo se vocês tivessem sido o menor dos povos.
Moshê os adverte contra o casamento misto, não uma questão racial, mas por razões religiosas: “Eles afastarão seus filhos de Me seguirem, para servir a outros deuses.” Malbim interpreta nosso versículo como Moshê dizendo aos israelitas: Não justifiquem casamento misto dizendo que isso vai aumentar o número de judeus. D'us não está interessado em números”.
Sforno faz uma leitura simples e direta: D'us não escolheu uma nação por Sua honra. Se Ele tivesse feito isso, iria sem dúvida ter escolhido um povo poderoso e numeroso. Sua escolha nada teve a ver com honra, e tudo a ver com amor. Ele amava os patriarcas pela sua disposição de considerar Sua voz; portanto Ele ama seus filhos.
Porém há algo neste versículo que ressoa através de grande parte da história judaica. Historicamente, os judeus foram e são um povo pequeno; hoje, menos de 1/5 de 1 por cento da população do mundo. Houve duas razões para isso. A primeira é o pesado fardo carregado no decorrer dos tempos por exílio e perseguição, diretamente por judeus mortos em massacres e pogroms, indiretamente por aqueles que se converteram – na Espanha no Século Quinze e na Europa no Século Dezenove – para evitar perseguição (tragicamente, nem a conversão funcionou; o anti-semitismo racial persistiu em ambos os casos).
A população judaica é uma mera fração daquela que poderia ter sido se não houvesse Hadrian, Cruzados e nenhum anti-semitismo. O segundo motivo é que os judeus não procuram converter outros. Se tivessem feito isso, eles teriam se aproximado dos números do Cristianismo (2,2 bilhões) ou Islam (1,3 bilhões). Na verdade, Malbim lê algo como isso em nosso versículo. Os versículos anteriores tinham dito que os israelitas estão a ponto de entrar numa terra com sete nações: Hititas, Girgashitas, Amoritas, Canaanitas, Perizitas, Hivitas e Jebusitas. Moshê os adverte contra o casamento misto, não uma questão racial, mas por razões religiosas: “Eles afastarão seus filhos de Me seguirem, para servir a outros deuses.” Malbim interpreta nosso versículo como Moshê dizendo aos israelitas: Não justifiquem casamento misto dizendo que isso vai aumentar o número de judeus. D'us não está interessado em números”.
Houve um momento em que os judeus poderiam ter procurado converter outros. (Para assegurar, houve um exemplo quando eles o fizeram. O rei-sacerdote Hasmoneano John Hyrcanus I converteu forçosamente os Edomitas, conhecidos como os Idumeanos. Herodes foi um desses.) O período em questão foi no império romano no primeiro século.
Os judeus eram cerca de 10 por cento do império, e havia muitos romanos que admiravam aspectos de sua fé e estilo de vida. As divindades pagãs do mundo helenista estavam perdendo seu apelo e plausibilidade, e em todos os centros do Mediterrâneo, indivíduos estavam adotando práticas judaicas. Dois aspectos do Judaísmo os atrapalhavam: os mandamentos e a circuncisão. No final, os judeus escolheram não comprometer seu estilo de vida em prol de ganhar convertidos.
O povo helenista que simpatizava com o Judaísmo em sua maioria adotou em vez dele o cristianismo paulino. Consistentemente no decorrer da história, os judeus escolheram ser fiéis a si mesmos e permanecerem poucos em vez de fazer concessões em prol do aumento dos números.
Além de toda proporção de seus números, os judeus puderam e podem ser encontrados trabalhando como advogados lutando contra a injustiça, economistas lutando contra a pobreza, médicos lutando contra doenças, e professores lutando contra a ignorância.
Por que a Divina providência ou a escolha humana, ou ambas, terminaram na pura pequenez do povo judeu? Poderia ser, simplesmente, que através do povo judeu D'us está dizendo à humanidade que vocês não precisam ser numerosos para serem grandes. As nações são julgadas não pelo seu tamanho, mas pela sua contribuição ao legado humano. Sobre isso, a prova mais contundente é que uma nação pequena como os judeus puderam produzir um fluxo sempre renovado de profetas, sacerdotes, poetas, filósofos, sábios, santos, halachistas, hagadistas, codificadores, comentaristas, rebes e chefes de yeshivot; que eles puderam também lançar alguns dos mais notáveis escritores, artistas, músicos, produtores de filmes, acadêmicos, intelectuais, médicos, advogados, empresários e inovadores tecnológicos. Além de toda proporção de seus números, os judeus puderam e podem ser encontrados trabalhando como advogados lutando contra a injustiça, economistas lutando contra a pobreza, médicos lutando contra doenças, e professores lutando contra a ignorância.
Você não precisa de números para aumentar o horizonte espiritual e moral da humanidade. Precisa de outras coisas: um senso de valor e dignidade do indivíduo, da força da possibilidade humana para transformar o mundo, da importância de dar a todos a melhor educação que eles possam ter, de fazer cada um de nós se sentir parte da responsabilidade coletiva de melhorar a condição humana, e na disposição para pegar ideais elevados e colocá-los no mundo real, não abalados por desapontamentos e defeitos.
Em nenhum lugar isso está mais em evidência hoje que entre o povo de Israel em Israel: traduzido na mídia e patrocinado por grande parte do mundo, mesmo assim, ano após ano, produzindo milagres humanos em medicina, agricultura, tecnologia e nas artes, como se a palavra “impossível” não existisse no idioma hebraico.
Quando, portanto, nos sentimos temerosos e deprimidos sobre o sofrimento de Israel, vale a pena voltar às palavras de Moshê: “O Eterno não colocou Sua afeição em vocês e escolheu vocês porque eram mais numerosos que outros povos, pois vocês são o menor de todos os povos.”
Pequeno? Sim. Ainda cercados, como os israelitas estavam então, por “nações maiores e mais fortes que vocês”. Mas aquele povo pequeno, desafiando as leis da história, sobreviveu a todos os grandes impérios do mundo, e ainda tem uma mensagem de esperança para a humanidade. Vocês não precisam ser grandes para serem notáveis. Se você estiver aberto a um poder maior que si mesmo, vai se tornar maior que si mesmo. Israel hoje ainda carrega aquela mensagem para o mundo.
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