O imperador Selassie tolerava os judeus, mas o ditador Mengistu era contra todas as religiões. Depois de um irmão ser preso e torturado só por ensinar hebraico, Belaynesh Zevadia decidiu deixar a Etiópia. Tinha 16 anos.
Voltou três décadas depois como embaixadora israelense

A jovem Belaynesh Zevadia com a mãe,
Addis, na Etiópia
© DR
Zelaynesh Zevadia explica as fotos antigas no celular, uma dela jovem, com cabelo afro e de ganga e T-shirt ao lado da mãe em vestes tradicionais, outra de uma refeição familiar, todos sentados no chão, como era hábito em Ambober, onde nasceu em abril de 1969.
"Tenho muitas memórias da Etiópia. Nunca vi o imperador, mas nasci na época dele.
Haile Selassie era uma figura especial e a forma como morreu deixou muita gente triste. Conseguiu que a Etiópia nunca fosse colonizada. Já sobre o regime de Mengistu só tenho coisas más a dizer", afirma a refugiada judia que um dia voltou à Etiópia como embaixadora de Israel. Esta conversa, em que conta a sua história de vida, decorre em Lisboa, que conheceu agora, menos ensolarada do que esperava.

Voltou três décadas depois como embaixadora israelense
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A jovem Belaynesh Zevadia com a mãe,
Addis, na Etiópia
© DR
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"Tenho muitas memórias da Etiópia. Nunca vi o imperador, mas nasci na época dele.
Haile Selassie era uma figura especial e a forma como morreu deixou muita gente triste. Conseguiu que a Etiópia nunca fosse colonizada. Já sobre o regime de Mengistu só tenho coisas más a dizer", afirma a refugiada judia que um dia voltou à Etiópia como embaixadora de Israel. Esta conversa, em que conta a sua história de vida, decorre em Lisboa, que conheceu agora, menos ensolarada do que esperava.
Do imperador ao ditador comunista
O imperador provinha de uma dinastia chamada Salomônica, que governava desde a Idade Média. Regente desde 1916 e imperador a partir de 1930, Haile Selassie chegou a ter laços chegados com o Estado de Israel fundado em 1948, mas a seguir à Guerra do Yom Kippur a pressão dos líderes africanos forçaram-no a cortar as relações diplomáticas. E pouco depois, em 1974, foi derrubado por um golpe comunista, morrendo quando estava preso num palácio, suspeita-se que por falta de tratamento médico. Mengistu Haile Mariam não tardou a emergir como o homem forte da Junta Militar.
"Haile Selassie gostava de Israel. Mas não gostava dos judeus, só nos tolerava. O meu pai era uma espécie de rabino-chefe da comunidade e um dia foi a Addis Abeba, umas centenas de quilómetros de caminho. Demorou um ano até ver o imperador e receber autorização para construir escolas. Isto foi antes de eu nascer, mas ele contou-nos e há cartas dele a relatar como foi difícil conseguir autorização para fazer algo pela comunidade", acrescenta Zevadia, que me fora apresentada dois dias antes pelo embaixador Raphael Gamzou, durante um jantar de Shabat em que a convidada de honra foi a cantora israelita Noa.
Em Ambober, a pequena Belaynesh cresceu numa família numerosa. O pai, Gate, e a mãe, Addis, educaram os filhos na fé tradicional. Foi ali, na região de Gondar, no norte da Etiópia, que o judaísmo se manteve forte até ao século XX. "Os muçulmanos eram um pouco como os judeus, tolerados, mas os cristãos comportavam-se como a elite. Haile Selassie dizia ser da Casa de Judá, descendente de Salomão e da rainha de Sabá. Mas os judeus não podiam ter terras e só podiam trabalhar como artesãos. Mais tarde podia pagar-se uma renda para trabalhar a terra", conta a diplomata.
O tempo da Operação Moisés
Depois de 1974, a situação dos judeus agravou-se :"Mengistu era contra todas as religiões: os cristãos, os muçulmanos e os judeus. Foi um tempo em que muitos judeus deixaram a Etiópia. Caminhavam 700 ou 800 quilômetros até ao Sudão. Para ficarem em campos de refugiados até irem para Israel. Vinham de noite buscar os judeus, porque o Sudão era um inimigo oficial e o resgate tinha de ser secreto." A mais famosa das ações de Israel para ir buscar esses judeus negros ficou conhecida como Operação Moisés.
A partida de Zevadia aconteceu em 1984, ano de grande fome na Etiópia, com as imagens de crianças de estômago inchado a encherem os telejornais e o mundo a reagir com iniciativas como o Live Aid, o célebre concerto para angariar fundos para o único país africano nunca colonizado (a Itália tentou duas vezes conquistar a Etiópia, mas sem sucesso). Mas a aldeia da agora israelita não foi afetada, a zona da fome era longe.
No próximo ano, em Jerusalém
"A minha alyiah foi pessoal. Qualquer judeu sonha um dia fazer a alyiah. O nosso sonho é ir para Jerusalém, não Israel, mas Jerusalém mesmo. Um dia iremos para lá era a mensagem. E as pessoas que foram a pé para o Sudão não tinham nada, nem comida nem bebida, e enfrentavam animais pelo caminho, cobras e isso, mas o que as animava pelo caminho era a ideia de que um dia estariam em Israel", explica Zevadia.
"Com 15 anos acabei a escola. Era a época de Mengistu e era suposto mandarem-me para o exército. Pedi uma bolsa de estudos em Israel e a dificuldade maior foi conseguir passaporte. Mas viajei para o Egito e depois para Tel Aviv. Fui uma refugiada especial. Mas as minhas duas irmãs que chegaram a seguir tiveram de caminhar da Etiópia para o Sudão. Uma delas tem quatro filhos e foram meses debaixo de calor intenso."
Chegada a Israel, deu-se o desafio da integração num novo país. "Não falava hebraico. Só um pouco de inglês. Mas aprendi muito depressa. O sistema de ensino, para nos absorver no hebraico, é muito bom. Os meus colegas vinham da América, da França, de todo o lado. Mas foram também seis anos de imensa tristeza. Deixei a minha família para trás. O meu pai e a minha mãe eram muito velhos. Tinha irmãs no Sudão, outras na Etiópia. E não sabia nada deles. Não havia celular e e-mails nem WhatsApp. Só um irmão estava já em Israel. Sofria a pensar no que lhes acontecera. Chegava uma carta de três em três meses quando muito. Telefonar tinha de ser para algum vizinho, muitas vezes não dava. Até que os meus pais chegaram. Quase toda a família se juntou em Israel. Em Beersheba. "Este é o sitio de Abraão, temos de ficar aqui", disse o meu pai."
Pergunto à embaixadora se alguma vez sentiu racismo em Israel. "Nem tudo é cor-de-rosa em Israel. São muitas as comunidades e todos os dias vejo sempre algum preconceito. Dos laicos em relação aos religiosos, dos asquenazes em relação aos sefarditas ou dos russos em relação aos etíopes. Israel é feito de gente vinda de mais de cem países. A cantora Noa, no outro dia, disse ser israelense de quarta geração, que os antepassados tinham vindo a pé do Iêmen no final do século XIX. Mas é raro. Imigrantes são a regra. Construir uma sociedade assim é complexo e no entanto o sucesso de Israel é indiscutível. Para nós judeus etíopes o que fez mais diferença à chegada a Israel foi a educação. Éramos camponeses ou artesãos. Com poucos estudos. E para os mais velhos foi difícil. Eram os chefes da casa, da família, os mais sábios, e de repente precisavam de ajuda dos filhos para ir ao banco. Foi o choque cultural. O meu pai sabia um pouco de hebraico da Bíblia. Minha mãe não. Nunca aprendeu."
Em 1992, já depois da derrubadae de Mengistu, Etiópia e Israel voltaram a ter relações. Coincidiu com a época em que Zevadia entrou para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois de estudar Relações Internacionais e Estudos Africanos na Universidade Hebraica, em Jerusalém. Antes de ser nomeada em 2012 embaixadora em Addis Abeba foi cônsul em Houston e Chicago.
Terra das oportunidades
"Israel para mim foi a terra das oportunidades. Para mim ser uma diplomata a serviço de Israel é um sonho realizado. Saí da Etiópia como adolescente e regressei embaixadora. Fui a primeira em todos os sentidos. A primeira etíope israelense mas também a primeira etíope na Etiópia apesar da imensa diáspora.
Lembro-me de, ao entregar as credenciais, o presidente falar em amárico e dizer ser um sonho poder fazê-lo com um embaixador de outro país. Para mim foi maravilhoso. Para um diplomata, conhecer a língua e a cultura é já 50% do trabalho feito. Mas ao mesmo tempo há grandes expectativas. E eu tinha de explicar que estava ao serviço de Israel, mas a fazer tudo para que os dois países que eu amo se dessem bem. Eu sentava com as pessoas, bebia café. Um dia andei sete horas para falar com uma mulher em Afar, uma província no nordeste. O carro não chegava lá", explica. Nessas viagens pelo país onde nasceu não faltavam referências a Portugal, acrescenta, "uma ponte feita pelos portugueses, um forte, etc. Deixaram lá uma memória positiva". Digo que também para os portugueses a Etiópia é uma terra de fascínio, o reino do Prestes João, onde chegamos em 1490 como aliados. E por isso quando o imperador Haile Selassie visitou Portugal em 1959 o DN, jornal que conto ter mais de 150 anos, escreveu a toda a largura da primeira página "Consolida-se uma amizade de mais de cinco séculos".
Lembro-me de, ao entregar as credenciais, o presidente falar em amárico e dizer ser um sonho poder fazê-lo com um embaixador de outro país. Para mim foi maravilhoso. Para um diplomata, conhecer a língua e a cultura é já 50% do trabalho feito. Mas ao mesmo tempo há grandes expectativas. E eu tinha de explicar que estava ao serviço de Israel, mas a fazer tudo para que os dois países que eu amo se dessem bem. Eu sentava com as pessoas, bebia café. Um dia andei sete horas para falar com uma mulher em Afar, uma província no nordeste. O carro não chegava lá", explica. Nessas viagens pelo país onde nasceu não faltavam referências a Portugal, acrescenta, "uma ponte feita pelos portugueses, um forte, etc. Deixaram lá uma memória positiva". Digo que também para os portugueses a Etiópia é uma terra de fascínio, o reino do Prestes João, onde chegamos em 1490 como aliados. E por isso quando o imperador Haile Selassie visitou Portugal em 1959 o DN, jornal que conto ter mais de 150 anos, escreveu a toda a largura da primeira página "Consolida-se uma amizade de mais de cinco séculos".
Hoje a Etiópia está a desenvolver-se mas fora das cidades continua pobre, admite aquela que foi lá embaixadora. E Zevadia vê como sinal positivo o papel crescente da mulher. Depois de uma ministra da Defesa, agora há uma presidente, Sahle-Work Zewde. "Conhecia-a bem. É muito inteligente. Mas o cargo é cerimonial, como em Israel."
Beta Israel e não falashas
Pergunto porque não gostam os judeus etíopes de serem chamados de falashas. Zevadia explica que a palavra quer dizer "estranho", alguém "que não pertence aqui" e por isso preferem ser chamados de Beta Israel, ou seja "da Casa de Israel". Serão hoje 150 mil a viver em Israel, e muitos poucos ainda nas aldeias de Gondar.
A diplomata relembra que há na Bíblia mais de 40 referências à Etiópia, mas que apesar de a rainha de Sabá ter visitado Jerusalém, Salomão nunca foi à Etiópia, e portanto quando ela conseguiu que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu visitasse Addis Abeba foi a primeira visita de sempre de um líder israelense a um país onde a estrela de David está presente até no Palácio Imperial.
Zevadia é casada com um judeu etíope, que cresceu no Canadá e fez mais tarde a alyiah. Têm uma filha adolescente, Lee, e dois gêmeos mais pequenos, Itai e Yuval. Mas os casamentos fora da comunidade vão acontecendo cada vez mais. Há casamentos com judeus indianos, russos, britânicos, na própria família mais chegada.
Como diplomata, Zevadia tem também de saber lidar com a questão palestina, "sempre presente". Conta que desde o início se deu com muitos árabes israelitas e palestinos. Que na universidade em Jerusalém tinha colegas árabes e chegou a ir às suas aldeias e a casamentos. "As coisas não são como se veem na CNN", diz.
Lembra-se de que um dia, quando trabalhava em Chicago, um professor palestino acusou Israel de praticar o apartheid e que isso a revoltou: "Disse-lhe: "não me diga isso. Eu sou negra. Uma judia africana. E sou israelense. Fiz a minha tese sobre o ANC e a luta contra o apartheid na África do Sul e sei que Israel não é um país do apartheid."