“Roma, Cidade Aberta” é, por muitos, considerado o filme que abre as portas a uma nova forma revolucionária de fazer cinema. Enquanto filme percursor do neo-realismo italiano, esta obra de Rossellini mostra, antes de tudo, uma cidade devastada, não só na sua parte física, mas também espiritual.
A história gira em torno de um dos líderes da resistência italiana, Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), que é acolhido e ajudado pelo seu amigo Francesco (Francesco Grandjacquet) e pela futura esposa deste, Pina (Anna Magnani), que tinham o seu casamento marcado para o dia seguinte. O Padre Don Pietro (Aldo Fabrizi), amigo do casal, decide ajudar Manfredi a entregar uma quantia de dinheiro aos membros que lutam do lado da resistência e, posteriormente, fazer com que Giorgio saia de Roma sem ser apanhado pelos nazis, que o perseguem. Porém, todos são traídos e entregues à Gestapo.

Quando Pina corre atrás do seu filho pela casa, não conseguimos deixar de sorrir quase como o velho enfermo que presencia tudo e cuja expressão é, para nós, comicamente desconcertante. Mas, nessa mesma cena, vemos que as famílias se tinham juntado no mesmo espaço e lutavam diariamente para conseguir harmonizar o lar, apesar das duras circunstâncias. A realidade vai-nos sendo apresentada pela forma como a câmara vai captando estes símbolos essenciais que advêm do espaço onde as personagens estão inseridas. As pessoas parecem agora inseparáveis do espaço que as envolve, que diz mais sobre elas do que elas mesmas se encontram capazes de dizer.
No estilo neo-realista tudo fala.
Não existe uma pretensão moral de forçar uma determinada visão da realidade, mas despi-la de qualquer a priori político que possa manipular a consciência do espectador. Então, talvez o cinema nunca tenha vivido tanto da sua imagem, que agora fica entregue ao olhar do espectador e à ambiguidade própria da vida. Ficam na retina as cenas mais fortes; a imagem ganha maior intensidade e, antes de qualquer tese moral, é o seu impacto em nós que prevalece, ficando os juízos para depois.
Sabemos que, assim que o filme termina, fica difícil não nos lembrarmos da cena em que Pina se solta das mãos dos soldados e corre para tentar deter o camião que leva Francesco, acabando por ser metralhada pelas tropas nazis; ou o silêncio de Manfredi sentado e entregue às várias torturas da Gestapo. No final, parece que não conseguimos culpar ninguém: nem a mulher superficial que trai Manfredi em troca de um simples capricho material; nem o oficial nazi, que parece resignado à sua condição de assassino e cuja alma parece ter sido já completamente engolida pela mais bárbara das cegueiras ideológicas, que foi cozinhada num ódio em lume brando, e que, a certa altura, lhe roubou a mais pequena centelha de humanidade, que acreditamos viver dentro de toda a criatura que pensa.

Durante quase todo o filme vemos que o intento das tropas nazis é invadir toda a privacidade, tentar penetrar no interior das vidas para violentar os espaços privados e as almas até que elas manifestem as palavras que contêm a informação que eles desejam obter. Porém, há algo maior que o somatório de todas as almas, um reino imaterial onde elas habitam em igualdade. No filme, é o silêncio que guarda a chave deste reino, que por mais violência e brutalidade que se exerçam para que ele se quebre, mais ele intensifica o valor absoluto da igualdade e a imagem clara das forças que lutam, em vão, para a encobrir, porque o que o filme nos mostra é a sua indestrutibilidade. As tropas nazis chegam ao ponto de afirmar que se os italianos não falarem, então só podem pertencer a uma raça superior, declaração que mostra uma surdez para a igualdade, quando esta mais lhes grita perto dos ouvidos.
O filme de Rossellini mostra como duas forças opostas lutam para reagir sobre uma mesma realidade objectiva, o espírito. Se uma delas tenta destruir qualquer elo que possa religar o homem a essa realidade, a outra vive para preservar o seu poder de criar união.
Quando se exaure um corpo do seu movimento, ainda fica, no seu interior, aquilo que nos torna humanos; o intervalo que nos faz hesitar, que nos impede de, simplesmente, levar o corpo e o seu insaciável desejo para um mundo solipsista onde só existem os interesses pessoais. Rossellini coloca toda a humanidade diante de si mesma, ao fazer do cinema um espelho mágico, que ao mesmo tempo que faz brilhar intensamente uma espiritualidade objectiva que nos une, é capaz de confrontar o homem com as suas maiores fragilidades e os seus abismos mais profundos.