Na vila havia uma senhora. Quando era a hora chamava-se a senhora e ela
vinha a casa do doente. As pessoas saíam, ficava apenas ela e o doente. Os
gemidos paravam, o serviço estava feito. Era um capitão do Exército que não
dormia nem morria. Contaram esta história à mesa, era eu pequeno, e nunca mais
esqueci, como nunca se esquece uma história contada à mesa em que um capitão do
Exército é morto por uma almofada segurada por uma velha. Uma história
distante, de como se faziam as coisas, e foi assim que me lembro de ter sabido
pela primeira vez que se matavam doentes para não sofrerem mais. Abafadeira, o
nome da pessoa, da função.
Abafador é o tio Alma-Grande dos Novos Contos da Montanha, de Miguel
Torga. O conto tem por base o mito de que as comunidades de cristãos-novos
matavam os seus moribundos antes que chegasse o padre para os ritos finais e a
ele confessassem a sua verdadeira fé. No Alma-Grande, o abafador já com as mãos
no pescoço de Isaac e o joelho no peito é interrompido pelo filho Abel. Não
acaba o serviço que tinha sido chamado a fazer por Lia, mulher de Isaac.
"Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras
vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza." Isaac
recupera da febre, escapa à morte. Ou melhor, não escapa, porque acaba por
matar o Alma-Grande. Pescoço por pescoço.
N'O Crime do Padre Amaro, é Carlota a ama, tecedeira de anjos, que faz
dos bebes indesejados anjos, como faz ao de Amélia e Amaro. Ao contrário do que
Amaro pensava, Carlota tinha bom ar, era "forte de peitos". A criança
é entregue à tecedeira, para ser cuidada por um ano, mas sabendo-se que nunca
lá passam mais de dois dias. Como Amélia morre, Amaro arrepende-se (?) e volta
para buscar a criança. É tarde, o serviço está feito. A casa de Carlota era
asseada, a louça rebrilhava, "e havia tanta ordem que uma claridade
parecia sair do asseio e do arranjo das coisas". Em Eça, a estética da
morte, a tentativa de civilizar, a ilusão do controlo, como os prístinos
apartamentos das clínicas na Suíça, ou no Oregon dos documentários, onde se
morre a pedido, o feng shui como substituto da humanidade que cuida.
Cuidar junto da morte é a humanidade na sua brutalidade, o maior poder
porque perante o menor poder. Paula Rego ilustra O Crime do Padre Amaro, as
crianças, as tecedeiras, os anjos, o padre. Paula Rego, que numa entrevista ao
Financial Times disse ser favorável ao suicídio assistido (respondeu yes, não
explicou), cuidou do marido com esclerose múltipla. Tinha pintado um quadro
influenciada por esse período, uma mulher a pentear um homem num terraço, a
prepará-lo para ir para a guerra. Era o quadro preferido de Vic, que morreu em
1988. O quadro ardeu em 2004. Nesse período, de cuidar, diz que deixou de
sentir, mas que o mais perto que esteve de sentir foi quando pintou Girls and
Dogs, em 1986, em que uma rapariga cuida de um cão, dá-lhe banho, abre-lhe a
boca para o alimentar, mas também levanta a saia. Sobre outra sua pintura, Dog
Woman, em que uma mulher é pintada de gatas, com cara de quem vai morder, diz
que ser bestial é bom. É o poder que vem da animalidade. E quando isso não é
poder?
Muita gente leva o cão ao veterinário para que o matem serem postos a
dormir, diz-se. Fazem-no, não duvido, por amor, por empatia, ficam devastados.
Mas o que pensa e sente o cão? Nas reportagens virais online sobre o último dia
de um cão na terra, com os donos no parque, a comer a sua comida favorita, e
por fim o cão no veterinário, rodeado da família devastada, morto. Não consigo
deixar de ver no fundo dos olhos de cada cão, no seu ar, no seu olhar, lá no
fundo dos olhos, a morte que acontece em vida quando estamos a ver o máximo e
definitivo abandono a vir por ali fora.
Lembro também um documentário francês, há muitos anos. Um doente com uma
doença degenerativa, obeso e que tinha de sair da cama com um pequeno guindaste
queria morrer, não sei se poderia ou não em França naquele momento. O que não
esqueci é que queria morrer a ouvir o Fado Amália, penso que dizia que não
sabia o que queria dizer a letra, mas gostava. Numa gravação ao vivo em Itália,
das melhores versões do fado, antes da música, Amália diz que Amália não vai
bem sem amor, e não existe amor sem sofrimento. Sofrimento que não é apenas o
efeito, é também areia do cimento de que é feito o amor. Que talvez seja a
única coisa que fica deste lado, para lá do pó. Mas amor do verdadeiro, forte,
que permanece. Não como o amor que larga quando o fardo pesa, como aquele que
no fim do fado sobre ela já diz "Amália? Não sei quem é".
A lei e as práticas clínicas vigentes permitem uma zona de conformação,
de indefinição que pode ir sendo concretizada no tempo, nos espaços. Entre a
vida e a morte essa zona é a da sedação paliativa progressiva, contínua ou
intermitente, que é já praticada. Sabendo-se o que pode provocar, o seu
objetivo é retirar o sofrimento, precisamente dar dignidade, que é dos dois
efeitos o principal e desejado. A sedação progressiva, em conjunto com a
liberdade do suicídio e o direito de recusar a obstinação terapêutica, num
contexto compassivo e de permanente melhora dos cuidados continuado, são o
consolo humanamente desejável e possível.
Gosto pouco de enganar os outros, e ainda menos a mim mesmo. Por isso, a
mim e no que aos meus diz respeito, preferia não cair na ilusão de que praticar
a morte vence a morte. Estejam por lá, ao meu lado, tragam a Amália, deixem a
morfina ir gotejando no cinzento indefinido da sedação, e se eu disser que é
para desligar a máquina, de certeza que é a televisão com os programas da
tarde, que as enfermeiras voltam a ligar sempre que muda o turno. Vai ser um
fardo pesado? Vai. É a vida.