
“Era dia 2 de
dezembro de 2001”. Ele entrou na sinagoga, no horário de Shacharit (reza da
manhã). Eu o cumprimentei com um aceno de cabeça, como eu fazia todos os dias.
Mas, ao contrário de me cumprimentar de volta, ele fez um gesto estranho, que
eu não consegui entender. Alguns minutos depois, como se ele não estivesse mais
aguentando, como se algo estivesse fervendo dentro dele, ele se aproximou de
mim e perguntou:
- Você não escutou? - Escutou o que? - eu respondi surpreso.
- Você não escutou? - perguntou ele, de novo, desta vez de forma mais
impaciente, quase frustrado.
Eu entendi que ele estava se referindo ao terrível atentado terrorista que
havia ocorrido na noite anterior, em um local frequentado não apenas por jovens
israelenses, mas também por muitos turistas. A partir daquele momento, comecei
a imaginar que ele estava se referindo a alguém conhecido que havia morrido ou
se ferido no atentado. Então eu perguntei sobre quem ele estava falando.
- Sobre quem? - perguntou ele, me olhando com o se eu tivesse vindo de
outro planeta - sobre todos os que morreram e se feriram no atentado da noite
passada!
- É claro que eu escutei - respondi, mas sem entender exatamente onde
ele queria chegar.
- Então por que você não está chorando? - ele perguntou, com muita
tristeza e dor no seu rosto.
Suas palavras entraram no meu coração como uma espada, como ensinam os
nossos sábios: "Palavras que saem do coração entram no coração". Ele
estava certo. Por que eu não estava chorando? Eu não pude responder nada. Eu
não tinha o que dizer. Ele então apontou para as outras pessoas da sinagoga e
perguntou:
- Por que todos os meus amigos não estão chorando? Não deveríamos estar
todos chorando?
Novamente não pude responder nada. Ele estava certo. O que aconteceu com
a nossa sensibilidade? Alguns chamam isso de "dormência". Outros
chamam isso de "choque coletivo". Alguns ainda dizem que estamos
sofrendo um trauma sem fim que afetou os nossos sentidos. Mas, na prática, o
que vemos é que, infelizmente, nos tornamos pessoas com corações de
pedra".
Por uma ironia do destino, dois anos depois o Sr. Chezi Goldberg z"l foi
assassinado, junto com outros 9 judeus, por um terrorista que detonou uma bomba
dentro do ônibus 19, quando o ônibus passava pelo bairro de Rechavia, em
Jerusalém.
Nesta semana o Shabat coincide com a próxima Festa do calendário
judaico, Pessach, também conhecida como "Zeman Cheruteinu" (A época
da nossa liberdade). Nos dias de Pessach, e em especial durante o Seder,
revivemos a alegria de termos sido libertados de uma pesada escravidão, após
210 anos de torturas e sofrimentos sem fim. Mas a libertação do povo judeu não
foi algo rápido, pois estávamos diante de um Faraó obstinado, que resistia às
ameaças de D'us e não permitia a saída dos judeus. Foram necessárias 10 pragas,
que destruíram completamente a infraestrutura do Egito, para quebrar sua
resistência.
Porém, percebemos algo interessante quando prestamos atenção nos
versículos que descrevem as pragas e a reação do Faraó a cada uma delas.
Após a primeira praga, sangue, está escrito "E o coração do Faraó se
endureceu... E ele também não se importou com isso" (Shemot 7:22,23). Nas
próximas pragas, sapos, piolhos, animais ferozes e epidemia, a Torá alterna
entre "o coração do Faraó se endureceu" e "o Faraó deixou pesado
seu coração". Por que na praga do sangue, após a Torá dizer que o Faraó
endureceu seu coração, foi necessário dizer que ele não se importou? Além
disso, por que a Torá repete tantas vezes que o Faraó endureceu seu coração e
deixou-o pesado?
Explicam os nossos sábios que a praga do sangue foi a única que não
atingiu o Faraó. Em um reconhecimento pelo Faraó ter criado Moshé em seu
palácio, D'us o poupou desta praga. Se o Faraó fosse um bom líder, mesmo
estando livre da praga, ele teria se preocupado com o bem-estar de seu povo.
Porém, o Faraó demonstrou ser uma pessoa insensível. Como o sofrimento não o
atingiu, então ele não se importou com o sofrimento dos outros. Mesmo que seu
povo estava literalmente morrendo de sede, isto não sensibilizou o Faraó. Nas
outras pragas, quando a praga cessava e terminava o seu sofrimento pessoal, o
Faraó voltava a se comportar de forma insensível, não se importando com o seu
povo e todo o sofrimento pelo qual eles passavam.
O Faraó representa o nosso Yetser Hará (má inclinação). A Torá repete diversas
vezes a reação do Faraó aos sofrimentos que recaíam sobre o seu povo para nos
ensinar que esta é uma das táticas do nosso Yetser Hará, de querer tirar a
nossa sensibilidade, de nos fazer deixarmos de sentir o sofrimento dos outros.
Quando nossos corações se tornam insensíveis, a ponto de não se afetarem mais
com a dor dos outros, este é um momento extremamente perigoso para a
humanidade. Embora seja parte de um mecanismo natural para nos ajudar a lidar
com traumas e dificuldades, se permitirmos que esta insensibilidade cresça a
ponto de a dor alheia não ser mais sentida e não nos motivar a tomarmos
atitudes corretivas, então isto é um sinal de que perdemos o nosso lado humano.
Mesmo quando despertamos da nossa dormência com uma tragédia ou nos
inspiramos com uma nova ideia, infelizmente acabamos endurecendo nossos
corações e ignoramos um possível impulso positivo. Cada vez que endurecemos
nosso coração, ele vai ficando mais pesado e mais insensível. Por exemplo, da
primeira vez que vimos algum mendigo pedindo esmola nas ruas, provavelmente
sentimos uma grande dor e oferecemos algum tipo de ajuda. Porém, com o passar
do tempo, vamos deixando de sentir a dor dos outros e, consequentemente, vamos
deixando de oferecer ajuda, apesar de aquela cena do mendigo dormindo na rua
ainda doer em nosso coração. Se mesmo neste estágio não fizermos nada, o
próximo passo é nos tornamos tão entorpecidos a ponto de deixarmos de enxergar
aqueles mendigos na rua, como se eles tivessem se tornado parte da
"decoração" da cidade.
Uma dica para o conserto da nossa sensibilidade está contida nos
detalhes do Korban (sacrifício) que era oferecido em Pessach. A Torá nos
comanda a oferecermos um cordeiro que, após a Shechitá (abate), deveria ser
assado, não cozido. Todas as pessoas que quisessem comer de um Korban Pessach
precisavam estar juntas em um mesmo grupo. Além disso, nenhum osso do Korban
Pessach podia ser quebrado. Por que tantos detalhes estranhos em relação ao
Korban Pessach, que não encontramos em outros Korbanót? E por que justamente um
cordeiro e não uma vaca?
Explicam os nossos sábios que o cordeiro é um animal pequeno e delicado.
Se alguém pisa em uma de suas patas, seu corpo inteiro se arrepia. Quando uma
carne é cozida, o cozimento faz com que as partes do animal comecem a se
separar. Porém, quando assamos uma carne, as partes do animal se compactam e se
unem ainda mais. Os ossos não podem ser quebrados, pois a quebra implica em uma
separação. Os judeus devem estar em grupos para comer o Korban Pessach. A
mensagem de todos estes detalhes contidos no Korban Pessach é a mesma, pois
aludem ao desenvolvimento de um senso de união e proximidade, que normalmente
são sentidos quando estamos em família, e ao desenvolvimento da nossa
sensibilidade em relação às dores e sofrimentos sentidos por outros judeus. O
povo judeu é comparado com um cordeiro, pois se um judeu sente dor, o povo
judeu inteiro deve sentir também esta dor. Quando nos unimos, como se fossemos
uma única família, nos tornamos um povo forte.
Uma dor que não podemos escapar é a dor de quando alguém muito próximo,
como um familiar ou um amigo, está passando por algum sofrimento. Portanto,
este é o antídoto para que nossos corações não fiquem insensíveis à dor alheia:
internalizar que todos aqueles que estão sofrendo são nossos irmãos, parte de
nossa grande família. E se conseguirmos sentir isto de verdade, então não
descansaremos até que o sofrimento deles seja ao menos diminuído. A Torá descreve
o Faraó como sendo alguém pequeno, enquanto a Torá relata que "Moshé
cresceu e saiu para ver seus irmãos e observar sua opressão" (Shemot
2:11). Quando a Torá diz que o Faraó era pequeno e Moshé cresceu, não
necessariamente está se referindo ao tamanho físico deles, e sim à bondade e a
preocupação com o próximo de cada um deles. O mundo do Faraó incluía apenas ele
mesmo, pois ele não se importava com os outros, por isso ele é descrito como
sendo pequeno. Já Moshé, mesmo estando nos luxos do palácio, saiu para ver seus
irmãos. Ele se tornou grande, pois seu mundo não era apenas ele mesmo, incluía
também todos os outros judeus, seus "irmãos".
O processo para voltarmos a ter sensibilidade começa com a
personalização das tragédias que ocorrem, como se fossem conosco ou com nossos
familiares. Apesar de a dor ser algo desconfortável, ela é um sinal de que
ainda estamos espiritualmente vivos. Se, D'us nos livre, perdermos a nossa
capacidade de sentir dor, junto nós perdemos a capacidade de verdadeiramente sentirmos
a beleza da vida.
Pessach é Zeman Cheruteinu. É a época de nos transformarmos, de pessoas
pequenas em seres humanos gigantes, que se importam com seus semelhantes, como
se fizéssemos parte de uma única família. Começamos o "Maguid", parte
do nosso Seder, com o "Há Lachmá Aniá", no qual convidamos todos os
que necessitam para que venham e comam. Saímos do Egito unidos, como um só
povo. Somente quando voltarmos a nos unir seremos libertados deste nosso atual
exílio, no qual somos escravos do nosso próprio egoísmo.
Shabat Shalom e Pessach Kasher Ve Samaeach
R' Efraim Birbojm
Fonte: http://ravefraim.blogspot.co.il