'A Cidade sem Judeus' é baseado em um romance satírico do
escritor judeu Hugo Bettauer.
Em um cenário com os níveis de inflação e desemprego nas
nuvens, os habitantes de uma cidade de língua alemã após a Primeira Guerra
Mundial encontraram um bode expiatório - a população judaica - e uma solução:
expulsá-la.
O que parece refletir o antissemitismo do Terceiro Reich é o
profético argumento do filme mudo A Cidade sem Judeus, lançado em
1924, quando o partido nazista ainda era proibido e Adolf Hitler escrevia na
prisão o livro Mein Kampf (Minha Luta).
Baseado em um romance satírico do escritor judeu Hugo
Bettauer, o longa-metragem desapareceu na década de 30 até que um colecionador
encontrou uma cópia completa em 2015 em um mercado de rua de Paris.
Agora, quase 94 anos depois, o filme restaurado reestreará
na próxima quarta-feira no cinema Metro de Viena.

"O Filmarchiv é basicamente a biblioteca nacional dos
filmes austríacos, razão pela qual temos um especial dever com esta obra por
sua mensagem de tolerância", acrescentou.
A trama do filme mostra não só as circunstâncias econômicas
que levaram ao auge do antissemitismo, mas também relata as consequências do
êxodo da população judaica de Viena, chamada "Utopia" no filme.
A deportação dos judeus acontece sob fogos de artifício, mas
a economia, longe de melhorar, se dirige à ruína absoluta, o desemprego e a
pobreza aumentam e a vida cultural desmorona.
Ao final, os judeus recebem boas vindas da mesma multidão
que festejou sua partida.
A realidade superou à ficção apenas 15 anos depois, quando
os judeus foram assassinados em massa em campos de extermínio nazista.
"Em 1924 não se podia conceber que se pudesse
assassinar pessoas de forma industrial. Essas imagens não estão neste filme.
Nesse sentido não é uma profecia do que aconteceu, mas um apelo à
tolerância", refletiu Wostry.
Cena do filme A Cidade sem Judeus (1924), de Hans Karl
Breslauer Foto: EFE
A nova cópia oferece novidades em relação à única versão
incompleta conservada, achada em 1991 em Amsterdã e que carecia de final porque
faltava o último rolo do filme.
Na versão restaurada se observa a virulência do
antissemitismo desde o primeiro momento, incluindo ataques físicos, e o final é
uma chamada à tolerância e à convivência.
"É um filme muito incomum porque aborda o
antissemitismo de forma explícita. E em um filme isso tem mais impacto que em
um romance, é mais visual", comentou Wostry.
A ficção mostra um final feliz com a volta da população
judaica, algo que contrasta com a realidade austríaca após o Holocausto,
destacou o diretor da Filmarchiv.
A Áustria não só não ajudou os sobreviventes do Holocausto,
criticou o especialista, como também demorou décadas para reconhecer sua
responsabilidade como Estado no massacre.

"Existe uma contradição na história da Áustria",
declarou Wostry, acrescentando que seu país costuma identificar-se com artistas
e cientistas judeus, como Sigmund Freud e o escritor e dramaturgo Arthur
Schnitzler, mas encara com má vontade seu histórico antissemita.
O filme pôde ser restaurado graças a uma campanha de
microfinanciamento que conseguiu arrecadar em 2016 mais de 75.000 euros.
Wostry não oculta sua decepção pelo fato de não ter havido
fundos públicos para restaurar um filme tão importante, mas se mostra muito
orgulhoso da grande resposta da sociedade civil.
A restauração é também importante pela sua atualidade,
salientou, já que o filme fala das desastrosas consequências de demonizar uma
minoria e isso se aplica tanto então como agora, quando crescem as tendências
nacionalistas na Europa.
A estreia em 1924 de A Cidade sem Judeus causou
protestos de simpatizantes nazistas e houve inclusive agressões contra quem
tentava ver o filme.
Cena do filme A Cidade sem Judeus (1924), de Hans Karl
Breslauer Foto: EFE
O filme marcou a vida de muitos dos que estiveram envolvidos
com ele de alguma forma: Bettauer, o autor do romance que a inspirou, foi
assassinado por nazistas meses depois da estreia.
O diretor e roteirista, Hans Karl Breslauer, não voltou a
dirigir e morreu na pobreza em 1965. A co-roteirista Ida Jenbach foi deportada
ao gueto de Minsk e morreu ali em 1941.
E, em um cruzamento de destinos, o ator que interpretou o
protagonista judeu do filme, Johannes Riemann, filiou-se ao partido nazista e
em 1944 chegou a atuar para as SS (organização paramilitar de Hitler) em
Auschwitz.
Pelo contrário, Hans Moser, que encarnou um furibundo
antissemita, se negou durante o regime nazista a divorciar-se da sua esposa
judia.
Fonte: Estadão