Shoah de Lanzmann

Shoah de Lanzmann

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À medida que o tempo passa, é o tempo que o confirma: Claude Lanzmann é o cineasta de ‘um só filme’, “Shoah”, esse monumento de 9h30 sobre o Holocausto que o cineasta francês estreou em 1985, e o material então recolhido (mais de 200 horas ao longo de 12 anos de trabalho) uma matéria inesgotável “que gerou a sua própria atualidade”, segundo as palavras do autor. Cineasta de ‘um só filme’? Dizemo-lo em sentido figurado.

Ainda este ano, em Cannes, Lanzmann mostrou “Napalm” (que o DocLisboa também passou), documentário das suas viagens à Coreia do Norte onde se deparou com outras perplexidades e contradições. Mas este foi só uma pausa. “Shoah” é o momento fundador e também aquele para onde tudo converge na sua obra. Recorde-se que, essencialmente, “Shoah” é um filme de depoimentos sobre (e com) os sobreviventes dos campos de concentração nazis, já que, do crime mais hediondo da história da Humanidade, Lanzmann não admitiu — questão de cinema e de moral — que aquele se representasse por fotos ou imagens de arquivo (o contraponto mais violento a esta decisão será porventura o que testemunha “German Concentration Camps — Factual Survey”, filme de 1945 que o Imperial War Museum de Londres libertou para o mundo em 2014, e que a Berlinale exibiu em primeira mão.

O que nos traz aqui chama-se “Les Quatre Soeurs”, um dos filmes que nos foram dados a ver da programação deste ano da Viennale (terminou dia 2), que o apresentou em estreia europeia depois do Festival de Nova Iorque. Novo tomo da filmografia do autor de 91 anos, trata-se de um projeto satélite de “Shoah”, com quatro episódios de durações variadas: “Le Serment d’Hippocrate” (90 min.), “Baluty” (64 min.), “La Puce Joyeuse” (52 min.) e “L’Arche de Noé” (68 min.).

Os episódios trazem-nos quatro testemunhos de outras tantas mulheres judias que sobreviveram ao Holocausto nos campos de extermínio. São quatro encontros não-datados com precisão (gravados entre o final dos anos 70 e início dos anos 80), e que Lanzmann — tal como o material de “Sobibor, 14 octobre 1943, 16 heures” ou de “Le Rapport Karski” — não conseguiu incorporar na montagem final de “Shoah”. A câmara está fixa e Lanzmann escuta, dentro ou fora de campo, conduzindo as entrevistas com a objetividade e a gravidade que o tema exige.

No segundo tomo, “Baluty” (nome de um bairro judeu de Lodz), Lanzmann entrevista em inglês Paula Biren, polaca daquela cidade que nos conta a invasão do país em 1939, tinha ela 17 anos, até à sua deportação para Auschwitz, onde toda a família foi gaseada. Em “La Puce Joyeuse”, o cineasta fala em alemão com outra polaca de Jaroslaw, a camponesa Ada Lichtman. Escapou milagrosamente de Sobibor: tinha jeito para a costura e os soldados nazis encarregaram-na do conserto das bonecas que as meninas judias traziam consigo e que aqueles recuperavam em seguida para dar aos seus filhos.

“L’Arche de Noé” leva-nos a Cluj, capital da Transilvânia, hoje Roménia, mas cidade que se chamava Kolozsvár quando era húngara e Klausenberg, quando os nazis invadem a Hungria, membro do Eixo, em 1944. Aqui, é Hanna Marton quem nos fala da sua história e da do marido, respeitado líder da comunidade, enviado para a frente de combate russa em 1942. Conseguiu regressar e foi um dos poucos: os nazis usavam estes judeus-soldados como ‘detetores vivos’ dos campos de minas soviéticos. Deportados para Auschwitz em 1944, lograram sobreviver por mera questão de tempo (só nesse ano o judaísmo húngaro é tocado pelo extermínio). Lanzmann está já a gravar num tempo em que estas pessoas conseguem enfrentar aquilo que lhes aconteceu mas o relato, em grande plano, termina frequentemente em comoção.

O mais pungente e longo é o de Ruth Elias, judia checa de Ostrava. Tinha vida confortável com as irmãs (o pai fundara uma fábrica de salsichas) até ser deportada para Theresienstadt, com 19 anos. É a mais calma das entrevistas, mas também a mais terrível. Naquele campo de concentração, conseguiu trabalhar como enfermeira, depois foi enviada para Auschwitz. O seu estatuto especial permitiu-lhe casar com um judeu, e desse casamento nasceu uma criança que ela se viu obrigada a sacrificar recém-nascida para que o bebé escapasse às experiências hediondas de Josef Mengele.

Está prevista uma difusão de “Les Quatre Soeurs” pelo canal franco-alemão ARTE no final de janeiro de 2018, seguida de uma edição em DVD. É uma descida aos infernos que faz parte do que mais arrepia, importante de divulgar com urgência.

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