Em 1944, prisioneiro judeu
escreveu uma série de textos e os enterrou em Auschwitz.
Décadas depois, papéis
foram achados e, hoje restaurados quase na íntegra, compõem um dos relatos mais
impressionantes do Holocausto. Todos os dias, Marcel Nadjari e outros presos de
uma unidade de trabalho conhecida como Sonderkommando (comando especial), no
campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, enfrentavam o pior dos horrores.
"Todos aqui sofremos coisas
que a mente humana não pode imaginar", afirma Nadjari.
O relato está num texto que ele
escreveu secretamente no final de 1944, colocou dentro de uma garrafa térmica
envolta numa bolsa de couro e enterrou perto do Crematório 3 do campo, que
seria libertado no início de 1945.
O texto, tido como um dos mais
impressionantes documentos do Holocausto foi descoberto por um estudante nos
anos 1980 e, após anos de restauração, agora pode ser lido quase na íntegra.
"Debaixo de um jardim, há um
porão com dois recintos infinitamente grandes: um deles é usado para tirar as
roupas. O outro é uma câmara da morte", relata Nadjari. "As pessoas
entram nuas e, quando o espaço está cheio com cerca de três mil pessoas, ele é
fechado, e todos são asfixiados com gás."
O prisioneiro grego descreve,
entre outras coisas, como os detentos do campo eram enfiados "como
sardinhas" na câmara, enquanto os alemães usavam chicotes para apertá-los
ainda mais dentro do recinto antes de trancar as portas e abrir os dutos de
gás.
"Após meia hora, abríamos as
portas e começávamos o nosso trabalho", conta Nadjari. Sua ocupação: levar
os cadáveres aos fornos de incineração, onde "um ser humano acaba sendo
reduzido a cerca de 640 gramas de cinzas".
O Sonderkommando era um grupo de
trabalho em Auschwitz composto por prisioneiros judeus do campo de extermínio.
Os detentos eram obrigados a preparar os assassinatos em massa de outros
prisioneiros, saquear seus pertences após a gaseificação e transportar os
corpos para os fornos. A história é bem contada, por exemplo, no filme húngaro
O filho de Saul (2015), vencedor do Oscar de melhor longa estrangeiro.
Os escritos de Nadjari, de
raridade e importância histórica, estão agora quase inteiramente legíveis, após
terem sido descobertos em condições precárias de conservação. Neste mês, eles
foram publicados pela primeira vez em alemão, pelo Instituto de História
Contemporânea (IfZ), com sede em Munique.
De acordo com o historiador russo
Pavel Polian, a mensagem de Nadjari, é um de nove documentos distintos
encontrados enterrados em Auschwitz. O conjunto de textos, escritos por cinco
membros do chamado Sonderkommando, "são os documentos mais centrais do
Holocausto", afirma o pesquisador.
Três décadas enterrados
Polian pesquisou o texto por dez
anos e publicou suas descobertas no livro Scrolls from the ashes (Pergaminhos
das cinzas, em tradução livre). Mensagens enterradas como a de Nadjari foram
encontradas exclusivamente em Auschwitz, diz o historiador, ma a maioria em
fevereiro ou março de 1945, logo depois que o campo foi libertado.
A mensagem de Nadjari foi a
última a ser encontrada, e Polian acredita ser altamente improvável que haja
outras mensagens de membros dos Sonderkommando ainda enterradas.
Cerca de cem dos quase 2 mil
prisioneiros de Auschwitz encarregados de se livrar dos milhares de cadáveres
sobreviveram aos horrores do campo de extermínio. Dos cinco que escreveram e
enterraram suas mensagens, Nadjari foi o único sobrevivente.
Em 1980, um estudante que fazia
escavações na floresta próxima às ruínas do Crematório 3 de Auschwitz-Birkenau
desenterrou as notas enroladas dentro da garrafa térmica. Ao contrário das
mensagens dos outros prisioneiros, apenas entre 10% e 15% do texto de Nadjari
estavam legíveis.
Os papéis, escritos em iídiche,
ficaram enterrados em solo úmido por 35 anos no momento da descoberta. Depois,
foram encaminhados ao Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, instalado na
Polônia.
Em 2013, um jovem russo
especialista em TI passou um ano trabalhando no manuscrito borrado, voltando a
tornar os contornos das letras visíveis com a ajuda de análise de imagens multiespectrais
(usando imagens com diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas).
"Atualmente, conseguimos ler
de 80 a 90%", diz Polian, que iniciou o projeto de avaliação do
manuscrito. Segundo o historiador, o texto está sendo traduzido para o inglês e
para o grego - e as traduções deverão ser publicadas em novembro.
Retorno à Grécia
Nascido em 1917, Marcel Nadjari
era um comerciante grego de Tessalônica. Foi deportado para Auschwitz em abril
de 1944 e colocado para trabalhar no Sonderkommando.
"Se você ler sobre as coisas que fizemos, vai dizer: 'Como alguém pôde fazer isso, queimar seus companheiros
judeus? '", escreveu Nadjari. "Foi o que eu também disse no início, e
no que pensei várias vezes".
Após a guerra, Nadjari retornou à
Grécia. Em 1951, ele, sua esposa e seu filho emigraram para os Estados Unidos,
onde ele trabalhou como alfaiate. Nadjari morreu em Nova York em 1971, aos 54
anos de idade.
Apesar de Nadjari, no período em
que morou na Grécia, ter escrito suas memórias, parece que ele nunca contou a
ninguém sobre o manuscrito que enterrara em Auschwitz. Nos escritos, mais de
uma vez, Nadjari escreveu que ficava tão devastado que pensava em se juntar aos
prisioneiros nas câmaras de gás - mas a perspectiva de vingança sempre o
impedia de fazê-lo.
Ele é o único dos cinco autores
do Sonderkommando que escreveu abertamente sobre vingança. Segundo o
historiador russo Polian, é isso que distingue as anotações de Nadjari dos
outros.
"Não estou triste por
morrer", escreve Nadjari, "mas fico triste por não poder me vingar
como eu gostaria.”.
A Deutsche Welle é a emissora
internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.