Poucos aqui no Brasil sabem o que aconteceu numa pequena escola
na cidade de Riceville no interior do estado de Iowa nos EUA no dia 5 de abril
de 1968. Talvez muitos saibam o que aconteceu no dia anterior, que foi a
ignição para o evento que desejo narrar aqui: o assassinato de Martin Luther
King, Jr. Muita gente na época comemorou, outras não se importaram e muita
gente se lamentou, mas pouquíssimas reagiram como Jane Elliott. Inconformada
com o preconceito e o racismo em nossa sociedade, ela resolveu tomar uma
atitude e ensinar os alunos de sua escola o que significa de fato esse
comportamento tão abominável.
Munida apenas de suas habilidades como professora de 34 anos, de
sua determinação em levar as situações até o limite e de sua conhecida máxima: “Oh, Grande Espírito, não me
deixe jamais julgar um homem antes de andar em seus sapatos.”, ela elaborou uma
dinâmica para realizar com seus alunos do ensino elementar na manhã seguinte.
Quando os alunos chegaram, ela perguntou aos alunos o que eles
achavam dos negros. A turma (que não tinha nenhum aluno negro) respondeu que
negros eram burros, não tomavam banho e que tinham dificuldades de se manter
nos empregos. (Alunos do ensino elementar! Meramente repetiam o que a família
dizia.) Então ela perguntou a eles como seria se fossem negros por um dia. Ao
ver que ninguém respondeu, ela comentou “Seria difícil saber, não seria, a menos que nós mesmos realmente
experimentássemos a discriminação.”e então pegou um conjunto de braçadeiras e separou a turma em
dois grupos: os de olhos azuis e os de olhos castanhos, dando as braçadeiras
aos do primeiro grupo.

Para deixar
as crianças mais impressionadas, ela resolveu escrever a palavra MELANINA no
quadro negro e explicar que o pigmento que altera a cor dos olhos estava
intimamente ligado à inteligência da pessoa. Ela sabia que agindo dessa forma,
impressionaria os estudantes até o ponto de fazê-los acreditar que aquilo era
verdade. Para impressioná-los ainda mais, Jane, que tinha olhos azuis, começou
a derrubar o material de trabalho para fingir que era desastrada. Os alunos
logo lembraram que isso se devia ao fato dela ter olhos azuis e pensaram que se
ela tivesse olhos castanhos já seria diretora ou superintendente, ao invés de
ser mera professora.
E então, para testar o quanto os alunos haviam assimilado a
ideia, Jane perguntou à turma se os alunos de olhos azuis se lembravam da
última tarefa, no que foi surpreendida com um sonoro “Não!” vindo dos alunos
com olhos castanhos. Em instantes, o grupo que havia sido distinguido com a
braçadeira já tinha sido apelidado pejorativamente como os “azuizinhos”. Uma aluna que nunca
tivera problemas com multiplicação começou a cometer diversos erros de uma hora
para outra. Alunos de olhos marrons juntaram-se sobre um “azulzinho” que estava
correndo e exigiu que ele pedisse desculpa porque era inferior (e ele de fato
pediu). Os alunos levaram a sério e no mesmo dia começaram uma verdadeira
ditadura opressiva dos castanhos contra os azuis.
No mesmo dia!
Surpreendente na época, tal reação não espantaria muitos
psicólogos hoje em dia. Para quem leu o artigo Suscetibilidade
ao Estereótipo: Ênfase na Identidade e Mudanças no Desempenho Quantitativo publicado
na revista Psychology Science em 1999 e que traduzi e publiquei aqui, já é
sabido que uma estereotipagem ruim afeta diretamente o desempenho quantitativo
em testes. A aluna que nunca errava, ao descobrir que fazia parte dos mais
burros, começou a cometer erros que normalmente não cometia. Não é somente o
desprazer de ser lembrado que é inferior, mas se tornar de fato inferior devido
somente ao esteriótipo que torna o preconceito uma prática tão abominável.
Naquela sexta-feira, os alunos com olhos azuis sentiram na pele
o que é ser um negro. Foram ofendidos e humilhados. O estigma de pertencerem ao
grupo dos burros se refletiu sobre a sua atitude e sobre o seu desempenho. Eles
foram negros por um dia. E na segunda-feira, quando voltaram para a escola e
descobriram que a professora havia se enganado, e que na verdade os alunos de
olhos castanhos que eram mais burros, não houve vingança na mesma moeda.
Sabendo eles mesmos como é estar no sapato dos outros, trataram os “castanhozinhos” com mais respeito
do que receberam quando a situação ainda não tinha sido invertida. E no final
da aula, quando Jane pediu para os alunos de olhos castanhos retirarem suas
braçadeiras, a cena que se seguiu a marcou toda a sua vida: os alunos começaram
a se abraçar, alguns até mesmo chorando. Todos eles haviam aprendido o que era
preconceito com aquela dinâmica aparentemente boba.
Na terça-feira, os alunos resolveram escrever uma carta à esposa
de Martin, pois tinham ficado sensibilizados com os quatro filhos que ele
deixou órfãos. As cartas foram parar no jornal local de Riceville, e depois
publicadas nacionalmente. Em algumas semanas, Jane Elliott foi chamada para uma
entrevista na televisão. Ao ser questionada por uma telespectadora que dissera: “Como você ousa tentar esse
experimento cruel em crianças brancas? Crianças negras estão acostumadas com
tal comportamento, mas crianças brancas, não tem jeito delas entenderem isso. É
cruel com as crianças brancas e vai causar grandes danos psicológicos a elas.”, Jane respondeu de
prontidão: “Por
que nós estamos tão preocupados com os frágeis egos de crianças brancas que
experimentaram algumas horas de racismo simulado por um dia enquanto crianças
negras experimentam racismo real todos os dias de suas vidas?”
Dois anos
depois, Jane Elliott fora chamada para realizar o experimento na Casa Branca. E
daí em diante, ela replicou o experimento dezenas de vezes, inclusive para a
televisão, e se tornou a cidadã mais famosa de Riceville. Em certa ocasião, ela
tirou fotos dos alunos nos dois dias da dinâmica. Podia-se ver claramente como
elas sempre estavam mais felizes quando não estavam com o colar que marcava os
inferiores. Os efeitos chegam a ser visíveis neste ponto! Sua história se
tornou um símbolo de como o racismo, mesmo simulado, pode ter efeitos reais e
devastadores em nossas vidas. Pudessem todas as pessoas andar com os sapatos
dos outros por um dia que seja, e os pedidos por respeito seriam apenas mais um
clichê.
Um relato escrito por Stephen G. Bloom da Universidade de Iowa,
em inglês, da história de Jane Elliott, no qual me baseei para escrever este texto,
pode ser encontrado neste link. Também
podemos saber mais sobre ela na wikipedia.