Patrícia Carvalho
Terra(s) de Sefarad arranca esta quinta feira com um congresso internacional, música, cinema, exposições e um mercado kosher numa cidade que tem dois espaços dedicados ao legado dos judeus sefarditas.
A arquiteta Susana Milão, natural de Guimarães, sabia que tinha raízes
transmontanas, mas nunca lhe ocorrera que no passado da sua família havia
ligações judaicas. Descobriu-o, agora, quando está prestes a ser inaugurado o
Memorial e Centro de Documentação Bragança Sefardita, que desenhou em coautoria
com Eurico Salgado, no âmbito daquele que é já considerado o maior evento
dedicado à cultura judaica em Portugal: Terra(s) de Sefarad, que decorre em
Bragança entre quinta-feira e o próximo domingo.
“A propósito de uma das conferências que vai acontecer no congresso do
Terra(s) de Sefarad, descobri que há uma investigação bastante grande em torno
deste apelido “Milão” e uma família judaica sefardita cristã-nova de Bragança.
Foi uma descoberta familiar curiosa”, diz a arquiteta. Joaquim Pinheiro,
coordenador do evento que, além do ciclo de conferências internacional, vai ter
vários momentos culturais e um mercado kosher, tem outro episódio para contar,
relacionado com a cultura escondida dos judeus de Bragança. Há pouco tempo, num
restaurante da zona que frequenta há anos, descobriu a filha do proprietário a
ler um livro sobre gastronomia judaica na cidade. “Fui comer um pouco mais
tarde, já fora de horas, e surpreendia-a a ler aquilo. Ela explicou-me que o
livro era do pai, como outros itens, incluindo um ki pá, que o dono do
restaurante confirmou ser dele, ao mesmo tempo que admitia as raízes judaicas.
“Digo-lhe isto a si, mas se alguém perguntar, eu não digo nada”, recorda
Joaquim Pinheiro ter ouvido ao homem. “Há muitos judeus e descendentes de
judeus na região, mas não se manifestam”, sintetiza.
Nada que seja novo. A presença de judeus em Bragança tem centenas de
anos, e cresceu muito no final do século XV, quando da sua expulsão de Espanha,
em 1492. Contudo, a vida no nordeste transmontano mudaria, de novo, antes do
século terminar, com Portugal a expulsar também os judeus que viviam no seu
território, deixando-lhes como alternativa, a conversão.
Ou, pelo menos, fingir
que se convertiam. “A vida judaica estava escondida, como está até aos dias de
hoje. Mas toda esta região tem uma forte história judaica, que está agora a
retornar à luz”, diz o rabino de Belmonte, Elisha Salas. Os quatro dias inteiramente
dedicados à história dos judeus sefarditas (oriundos da Península Ibérica) são,
por isto mesmo, encarados pelo rabino como de uma enorme importância. “As
pessoas que ali vivem vão vencer o medo cultural que existe na psicologia
portuguesa, e que faz com que muitos se reconheçam como judeus, mas não se
assumam”, argumenta.
E o que se vai passar em Bragança nasceu da concepção, decidida pela
Câmara de Bragança, de dois espaços dedicados à cultura judaica – o Centro de
Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano, desenhado pelo arquiteto
Souto de Moura e que abriu este ano, e o Memorial e Centro de Documentação
Bragança Sefardita, de Susana Milão e Eurico Salgado, cuja inauguração está
agendada para sexta-feira. A arquiteta explica que o novo edifício é mais
centrado na realidade de Bragança e surge como complemento ao Centro de
Interpretação, com um conceito alargado a toda a região. Joaquim Pinheiro
acrescenta: “Este novo espaço tem uma pequena sinagoga e vai ser, sobretudo um
espaço de memória virtual, de recolha de testemunhos e histórias, seja em forma
oral, escrita ou visual.”
Dos espaços ao Terra(s) de Sefarad, foi pouco mais que um passo. “Surgiu
de forma natural. Pensamos, temos equipamentos, porque não fazer um evento
imaterial sobre a cultura sefardita? E avançamos com a ideia de criar um evento
que levasse ali pessoas de fora da cidade, do território. Esperamos até que
possa trazer descendentes dos antigos judeus da cidade”, diz.
O ponto alto dos quatro dias do programa é o congresso internacional
Identidade e Memória Sefardita: História e Atualidade, com a organização
científica da Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” da
Universidade de Lisboa (cujo programa completo pode ser encontrado em
terrasdesefarad.com). Os conferencistas chegam um pouco de todo o lado –
Israel, Holanda, Estados Unidos da América, Espanha e, claro, Portugal – e vão
abordar os mais diversos temas, desde a perseguição movida pela Inquisição, ao
desenvolvimento da comunidade de judeus portugueses em Amsterdã, passando pelo
pensamento do influente filósofo nascido em Bragança, Isaac Oróbio de Castro
(1617-1687), que foi conselheiro de Luís XIV (1638-1715), o Rei-Sol de França,
ou a relação entre os judeus e a indústria de sedas que floresceu em Bragança
entre os séculos XVI e XVIII, mas, entretanto, desapareceu.