
Comentário sobre a Porção Semanal da Torá de Emor
“E disse o Eterno a Moshê: Fala aos sacerdotes, filhos de Aharon, e lhes dirás: o sacerdote, por um morto entre seu povo, não se fará impuro. Salvo por sua mulher, que é próxima a ele, por sua mãe, por seu pai, por seu filho, por sua filha e por seu irmão; e por sua irmã virgem, próxima a ele, quem não esteve com homem, por ela se fará impuro… Santos serão para seu D-us, e não profanarão o nome de seu D-us; pois as ofertas queimadas do Eterno e o pão de seu D-us eles oferecem, e serão santidades”.
(Vaicrá 21, 1-6)
Um homem vivo, mesmo que seja a pessoa mais simples, o mais vulgar, o mais malvado ou ainda um delinqüente, não pode transmitir impureza ritual (tumá).
Já o morto, mesmo que tenha sido a pessoa mais justa ou o mais santo ou o mais puro, pelo fato de sua alma ter ido embora, transmite impureza ritual.
Deste modo, através das leis concernentes a pureza ritual, a Torá nos brinda uma amostra do valor da vida. No momento em que a vida se interrompe, o dano é enorme e a ferida irreparável; o homem se converte em um corpo que contamina.
Aos cohanim, lhes está proibido contaminar-se através do contato com um cadáver. O Cohen simboliza o culto Divino na casa de D-us. Portanto, a vida é seu símbolo e sinal; o Cohen deve afastar-se do símbolo oposto, da anti-vida; da morte.
A Torá adverte ao Cohen para não se aproximar do morto. Não apenas lhe é proibido tocar, senão também estar ao lado de um cadáver. Na realidade, todo tipo de contato com o morto provoca a impureza ritual do Cohen, e esta lei está ainda em vigência em nossos dias, sendo portanto proibido a um judeu que é Cohen, aproximar-se ou entrar na casa onde haja um morto.
No entanto, existem ocasiões em que os Cohanim se vêem obrigados a contaminar-se se aproximando de um morto, pois o Cohen deve participar do enterro dos sete parentes mais próximos de si: sua esposa, seu pai, sua mãe, seu filho, sua filha, seu irmão e sua irmã. Também está obrigado a ocupar-se do enterro de uma pessoa pobre ou abandonada que não tenha quem se ocupe dela (um morto de mitzvá). Ocupar-se do enterro de um morto é considerado como uma das obrigações superiores do homem. Por isso, o Cohen não pode utilizar sua condição de Cohen para evadir-se desta responsabilidade com respeito a seus parentes mais próximos ou a pessoa que não tem quem se preocupe de seu enterro.
As proibições impostas ao Cohen com respeito ao contato com o morto nos ensinam tanto sobre a natureza da morte, como sobre a importância da vida.
Como podemos explicar a impureza que se produz pelo contato entre um homem vivo e um homem morto?
A morte é o fim natural e inevitável, que nos espera pacientemente ao final do caminho. No entanto, o homem não vive, geralmente, com a consciência permanente acerca da morte, nem a sua sombra. O homem é um ser dinâmico que vive e acredita em si mesmo, em sua própria força e em sua própria vida. Entretanto, o encontro com a morte concreta pode alterar esta atitude do homem. O peso da realidade da morte pode ser mais forte que a consciência sobre sua existência.
A visão surpreendente do homem que até poucos instantes atrás estava com vida, respirava e sentia, e que repentinamente deixa de respirar, pode sacudir o homem e estremecê-lo com o pensamento de que “o homem não vale nada”, “que não vale a pena se esforçar” ou “para que lutar”. Este encontro com a morte provoca um sentimento de pessimismo, que pode conduzir a pensamentos individuais e sociais prejudiciais, e por fim produzir a “contaminação”.
O sistema de impureza ritual é um meio de defesa do espírito do homem diante da morte. Como todo contato com a morte contamina, o ritual permite a volta ao equilíbrio, ao pensamento adequado, para liberar-se da “filosofia do cemitério”, e poder então voltar a ter fé no valor de sua alma e de sua vida.
O judaísmo não se relaciona com a morte como um problema de higiene ou limpeza. No mundo antigo, o velório e enterro dos mortos, se prolongava durante muitos dias. Hoje também acostumamos honrar o morto não realizando o enterro de imediato. Fazendo-o permanecer entre os vivos o quanto seja possível.
Para o judaísmo, entretanto, quanto menor é o tempo transcorrido entre a morte e o enterro, melhor é. O judaísmo considera que a vida e a morte são fenômenos reais, porém trata de manter o homem em um equilíbrio adequado entre ambos elementos, sendo necessário diferenciar com a maior presteza possível entre os vivos e os mortos.
É possível assinalar outra profunda diferença entre a vida e a morte. No momento de sua morte, o homem vê a vida como uma série de momentos passageiros, e a morte como o fenômeno permanente. O judaísmo nos ensina o contrário: a vida é permanente e firme, enquanto que a morte é algo passageiro e temporal.
Enquanto vive, o homem deve enfrentar-se com a relação entre o temporal e o permanente. A morte enfrenta o homem com o conflito entre a temporalidade e a permanência. A vida do homem se caracteriza pela busca de algo duradouro, de algo que permaneça ao longo de todos as mudanças e transições. Nisso consiste a busca do sentido da existência humana, o homem busca a existência metafísica mais além da mera existência física.
Do ponto de vista físico, o homem depende das leis do espaço e do tempo. A nível metafísico pode superá-las. Isto explica a necessidade da cultura, da fé, de algo que conceda ao homem um sentido de permanência ao mundo.
A morte é um fenômeno físico que tem lugar na dimensão de espaço. O sentido é um fato metafísico que existe na dimensão de tempo. De forma paradoxal, o homem pode “vencer” a morte na dimensão de espaço, enquanto existir no mundo do sentido, na dimensão do tempo, e a morte seja percebida como temporal e secundária em relação a continuidade e a permanência da vida espiritual no mundo do sentido.
O judaísmo santifica a vida e vê nela uma característica verdadeiramente humana. O homem santifica sua vida mediante a constante busca do sentido de sua existência.