Pergunta:
Por que, para o Judaísmo, um judeu é quem nasce de mãe judia? Na Bíblia, a
linhagem não era pelo pai?
Muitas pessoas se surpreendem quando
ouvem dizer que o Judaísmo reconhece como judeu aquele que é filho de mãe
judia. Isto é, reconhece a linhagem matrilinear.
Assim diz a halakhá:
“Este
é o princípio geral: Quando um filho nasce a um servo, um estrangeiro, uma
serva, ou uma estrangeira, ele é como a mãe. Não nos ocupamos do pai.” (Mishnê
Torá – Sefer Qedushá – Hilkhot Issurê Biá 15:4)
I
– Erros de Parte a Parte
A surpresa ocorre principalmente
porque as Escrituras estão repletas de exemplos como o abaixo:
“Estes
foram os contados, que contaram Moshé e Aharon, e os príncipes de Israel, doze
homens, cada um era pela casa de seus pais.” (Bamidbar/Números 1:44)
É importante desde imediato ressaltar
que o autor desta resposta, embora observe a halakhá, entende que é
desonestidade intelectual tentar afirmar que em Israel a linhagem sempre foi
reconhecida de maneira matrilinear. Simplesmente não há, salvo se dois ou três
versículos forem tirados de contexto, sustentação para essa afirmação.
Por outro lado, grupos sectários que
afirmam a linhagem patrilinear e denunciam a prática judaica também cometem um
grave erro de desonestidade intelectual, ao afirmarem que a Torá estabelece a
linhagem patriarcal.
Por ‘estabelecer’, isso implicaria em
haver uma lei específica da Torá para lidar com a questão. E não há. Nem para
um lado, nem para o outro.
Há sim, quando se olha para a narrativa
da Torá, uma prática claramente patrilinear. Isso é inegável. Mas, prática é
diferente de lei.
Para, portanto, compreender a questão
de maneira racional, sem cair em radicalismos, ou trocas de acusações
infundadas, é importante olhar para o contexto, e para o processo como um todo.
II
– A Cultura do Oriente Médio Antigo
Na realidade, a prática patrilinear
já era praxe na região do Oriente Médio muito antes da Torá ser dada a Moshé
(Moisés) no Sinai. Observe um exemplo, extraído da própria Torá:
“Então
falou Hamor com eles, dizendo: A alma de Shekhem, meu filho, está enamorada da
vossa filha; dai-lha, peço-vos, por mulher; E aparentai-vos conosco, dai-nos as
vossas filhas, e tomai as nossas filhas para vós; E habitareis conosco; e a
terra estará diante de vós; habitai e negociai nela, e tomai possessão nela.”
(Bereshit/Gênesis 34:8-10)
Repare que os heveus propõem a
Ya`aqobh (Jacó) e seus filhos, que à época ainda não eram uma nação
constituída, que se aparentassem, tomando suas filhas e dando suas filhas em
casamento. Há uma clara valorização da posição masculina.
Quando se fala de práticas da
antiguidade, a Torá pode tomar três caminhos: Regulamentá-la sob forma de lei,
combatê-la, ou ser a ela indiferente.
Existem dezenas de exemplos dessas
três situações no que diz respeito à cultura do antigo Oriente Médio. Não será
escopo, contudo, deste estudo adentrar nessas questões.
O importante aqui é dizer que não há
uma regulamentação da Torá em cima da questão da pertinência de alguém a um
determinado povo ou família.
Além disso, há outra questão
importante a se considerar, que é o fato de que mesmo a questão cultural do
Oriente Médio não era escrita em pedra. Ela possuía uma certa fluidez na sua
forma de se constituir. Observe o exemplo abaixo:
“Então
respondeu Labhan, e disse a Ya`aqobh: Estas filhas são minhas filhas, e estes
filhos são meus filhos, e este rebanho é o meu rebanho, e tudo o que vês, é
meu; e que farei hoje a estas minhas filhas, ou a seus filhos, que deram à
luz?” (Bereshit/Gênesis 31:43)
Labhan (Labão) é um perfeito exemplo
de que a cultura da época estabelecia que o cabeça da família geralmente era
tido como pai daqueles que nascessem à sua parentela.
Observe que ele considera como seus
filhos aqueles que foram nascidos às suas filhas! Isso porque Ya`aqobh (Jacó)
habitava com ele. Logo, ele como cabeça da família, tinha direito sobre aqueles
filhos.
Em outras palavras, é muito
complicado tomar a cultura da época como lei absoluta, haja vista que ela era
fluida. E a razão dessa fluidez estava justamente no fato de que as leis civis
eram muito menos elaboradas do que, por exemplo, em nossa sociedade.
III
– A Fluidez no Israel Primitivo
Mesmo em Israel, observa-se também
essa fluidez na própria narrativa da Torá. Abaixo, um exemplo:
“E
saiu, do meio dos filhos de Israel [בְּתוֹךְ
בְּנֵי יִשְׂרָאֵל – betokh benê yisra’el] , o filho de uma mulher israelita, o qual
era filho de um homem egípcio; e o filho da israelita e um homem israelita
discutiram no arraial.” (Wayiqrá/Levítico 24:10)
O hebraico não deixa dúvidas de que o
homem, filho de uma israelita com um egípcio, era contado dentre os filhos de
Israel.
Outro exemplo curioso ocorre quando
vemos as seguintes passagens em contexto:
“Da
tribo de Yehudá, Kalebh, filho de Yefuné.” (Bamidbar/Números 13:6)
“Exceto
Kalebh, filho de Yefuné o quenezeu, e Yehoshua, filho de Nun, porquanto
perseveraram em seguir a ADONAY.” (Bamidbar/Números 32:12)
Observa-se que Kalebh (Calebe) foi
contato entre os da tribo de Yehudá (Judá) apesar de seu pai ser um
estrangeiro.Fato é que, em tese, a filiação tribal não ocorreria se seu pai era
estrangeiro. Até porque, considerando a cronologia do texto, o pai dele teria
sido recebido entre os filhos de Israel antes mesmo da outorga da Torá.
Como se pode observar, apesar do
argumento histórico pela patrilinearidade ser verídico, ele não se apresenta
com peso de lei, nem aplicado da maneira estrita que se supõe.
A grande verdade é que a Torá não
estabelece uma lei que defina a nacionalidade de alguém que tenha ascendência
apenas de um dos lados. O fato de haver uma prática cultural no Oriente Médio
não a torna, por si só, uma lei. Esse é o gravíssimo erro de argumentação
cometido por aqueles que defendem essa prática.
A razão é simples de entender: A Torá
não foi concebida para o exílio, e sim para que o povo permanecesse sob a Lei
do Eterno na terra da promessa.
Não havia, nessas circunstâncias, uma
quantidade muito grande de miscigenação entre Israel e outros povos, à exceção
do caso do peregrino residente (guer sedeq).
IV
– Os Limites da Torá
Aqui cabe um parêntesis. É importante
o leitor compreender que a Torá não contempla, em seu texto, absolutamente
todas as situações possíveis e imagináveis a serem vivenciadas pelo povo de
Israel. Fosse assim, a Torá precisaria ser uma biblioteca inteira, e não um
livro.
O que fez o Eterno, portanto, para
lidar com essa situação? A resposta é: Ele estabeleceu juízes, para conduzirem
o povo. Observe:
“Quando
alguma coisa te for difícil demais em juízo, entre sangue e sangue, entre
demanda e demanda, entre ferida e ferida, em questões de litígios nas tuas
portas, então te levantarás, e subirás ao lugar que escolher ADONAY teu Elohim;
E virás aos sacerdotes levitas, e ao juiz que houver naqueles dias, e
inquirirás, e te anunciarão a sentença do juízo. E farás conforme ao mandado da
palavra que te anunciarem no lugar que escolher ADONAY; e terás cuidado de
fazer conforme a tudo o que te ensinarem. Conforme ao mandado da lei que te
ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás; da palavra que te
anunciarem te não desviarás, nem para a direita nem para a esquerda.”
(Debharim/Deuteronômio 17:8-11)
Ou seja, se Israel viesse a ter necessidade
de estabelecer oficialmente a questão de quem é israelita, em caso de um dos
pais não o ser, seriam justamente os juizes de Israel.
Isso faz todo o sentido, considerando
que Israel é, antes de mais nada, uma nação. Quem estabelece, em qualquer nação,
as condições para que uma pessoa seja considerada cidadã são justamente o poder
legislativo e o judiciário. Que, no caso de Israel, era representado pela Corte
dos 70 anciãos (vide. Nm 11:24,25)
E é exatamente isso que aconteceu.
V
– Exílio e Mudança
Se num primeiro momento Israel não
tinha grandes problemas dessa natureza, isso logo viria a mudar com o exílio.
Vivendo em meio a uma nação
estrangeira dominante, é natural que Israel viesse a ter que enfrentar o
problema das uniões mistas. E, então, o que fazer?
Não há lei na Torá que contemple o
caso. E só há um órgão autorizado pelo Eterno a estabelecer uma norma para o
povo de Israel: o Sanhedrin (Sinédrio), isto é, a Corte Mosaica.
O próprio Tanakh (Bíblia Hebraica)
registra o problema, ocorrido quando do retorno do povo após o cativeiro
babilônio:
“Porque
tomaram das suas filhas para si e para seus filhos, e assim se misturou a
linhagem santa com os povos dessas terras; e até os príncipes e magistrados
foram os primeiros nesta transgressão. E, ouvindo eu tal coisa, rasguei as
minhas vestes e o meu manto, e arranquei os cabelos da minha cabeça e da minha
barba, e sentei-me atônito…” (`Ezra/Esdras 9:3,4)
Na ocasião, o que deliberou a Corte
de `Ezra (Esdras) e os homens da Grande Assembléia? O Tanakh (Bíblia Hebraica)
assim registra:
“Agora,
pois, façamos aliança com o nosso Elohim de que despediremos todas as mulheres,
e os que delas são nascidos, conforme ao conselho do meu senhor, e dos que
tremem ao mandado do nosso Elohim; e faça-se conforme a Torá… E no primeiro dia
do primeiro mês acabaram de tratar com todos os homens que casaram com mulheres
estrangeiras… e deram as suas mãos prometendo que despediriam suas mulheres; e,
achando-se culpados, ofereceram um carneiro do rebanho pelo seu delito.”
(`Ezra/Esdras 10:3,17,19)
Aqui se pode observar a decisão em
vigor. Consideraram que os filhos que foram nascidos de estrangeiras que não
haviam se unido ao Eterno em aliança não seriam contados entre os filhos de
Israel.
Tanto que essas crianças, juntamente
com suas mães, foram despedidas pelos judeus, e retornaram para seus lares na
Babilônia.
VI
– A Verdadeira Razão
A razão da Corte Mosaica é simples de
entender. É sempre possível ter certeza da mãe de uma criança. Já o pai, mesmo
com os recursos de hoje, é muito difícil determinar em caso de dúvida.
Além disso, Israel estava em situação
desfavorável no exílio, como uma nação em servidão. Não é razoável imaginar que
os israelitas teriam tido fácil acesso, por exemplo, a virgens babilônias,
jamais tocadas por homens.
Ademais, as situações de estupros de
mulheres eram muito frequentes naquelas sociedades. Isso tornava ainda mais
problemática a identificação da criança.
Em sendo assim, a Corte Mosaica optou
pelo óbvio, a saber, a decisão pela matrilinearidade, a única solução possível
na qual se asseguraria que a criança era, de fato, israelita.
VII
– A Fundamentação na Torá
Como já visto, a matrilinearidade,
enquanto identificação positiva de identidade, pode ser fundamentada na Torá de
diversos ângulos. E foi o que a Corte Mosaica decidiu fazer, para sustentar sua
deliberação.
A fundamentação ocorre em cima do
versículo abaixo indicado:
“Tua
filha não darás ao filho dele, e a filha dele não tomarás para teu filho; Pois
ele faria desviar teu filho de Mim, para que servissem a outros deuses; e a ira
de ADONAY se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria.”
(Debharim/Deuteronômio 7:3,4)
Para esclarecer a fundamentação, um
texto de Avraham B. Shimon:
“O
versículo 4 fica mais difícil. Deveria dizer: ‘Porque ELA desviará o teu
filho.’ A jovem não-judia que o seu filho casou (‘seu’ significando judeu)
deveria ser aquela que desviaria seu filho. Mas quem é ‘ele’? Você poderia
responder que ‘ELE’ se refere ao pai da menina. Contudo, é bem conhecido que,
no geral, as mulheres deixariam a casa de seu pai e morariam na casa de seu
marido. Eles não estariam morando com o pai dela. Portanto, não faria sentido
que o pai da menina desviaria o filho se o filho não mora com ele.
Os
rabinos concluíram que ‘ELE’ é o homem com quem a mulher se casou, e que ‘teu
filho’ mencionado no versículo 4 é o teu neto, significando o neto judeu… Isso
mostra que o filho de uma jovem judia e um jovem não-judeu será judeu.
Não
é incomum para a Torá se referir a um neto como um filho de fato. Por exemplo,
1 Reis 15:11 diz: ‘E Asa fez tudo o que era reto aos olhos do Eterno tal como
Davi seu pai.’ Davi não era o pai de Asa. Ele era seu tataravô.” (Matrilineal
Descent – Avraham B. Shimon)
VIII
– O Presente e o Futuro
A questão que muitos indagam é: A
halakhá deu conta de uma realidade importante até alguns séculos atrás. Hoje,
contudo, o povo judeu encontra outras realidades, e outras necessidades surgem.
E isso gera a pergunta: É possível a halakhá ser modificada?
A resposta é afirmativa. A halakhá
pode mudar, e não há nada que impeça que, num futuro, os filhos por ascendência
patrilinear venham a ser reconhecidos se a ciência evoluir ao ponto de nos dar
identificação com 100% de precisão, como ocorre no caso matrilinear.
No entanto, a halakhá não pode ser
modificada ao bel prazer de uma comunidade. Somente a Corte Mosaica (Sanhedrin)
poderia reavaliar a questão, e optar por uma mudança na halakhá, ou pela sua
manutenção.
E o restabelecimento da Corte Mosaica
é um dos elementos necessários no que diz respeito à restauração de todas as
coisas, o que inclui o Templo e a Dinastia Davídica.
Até lá, o que se costuma fazer na
atualidade é tratar a questão do filho de um pai judeu de maneira especial,
considerando-o zeraH Israel, isto é, semente de Israel, e procurando fazer sua
naturalização (guiur) para regularizar a situação mediante a comunidade.
Havendo disposição, a questão pode ser resolvida facilmente.