
(Paula Ferreira e Renato Grandelle, O
Globo)
Todos
os dias, quando chegava à escola, Kayque Ferraz era obrigado a rezar o Pai
Nosso. Adepto do candomblé, o menino de 8 anos se recusava a cumprir a ordem:
dizia que era filho de Xangô e, portanto, permaneceria em silêncio. A professora
e os colegas, no entanto, insistiam. A ponto de o menino, às vezes, voltar para
casa sem ter conversado com ninguém no colégio. Grazielle, mãe de Kayque,
percebeu o comportamento estranho e foi conversar com a diretora. Pediu para
que a fé da criança fosse respeitada, mas nada mudou.
“Os professores e a
diretora diziam que ele devia rezar porque era a regra da escola”, lembra. “A
situação era ainda pior quando passávamos em frente a outro colégio, onde os
alunos o chamavam de macumbeiro e o mandavam ir para a igreja. No início do
ano, mudamos de casa, de Duque de Caxias para a Pavuna (na Zona Norte do Rio),
e no novo colégio ele tem aulas sobre cultura africana e nossa crença é
respeitada. Kayque é um exemplo da visão intolerante de diversas instituições
de ensino, seja em relação a religião ou gênero.
Na edição de hoje, O Globo
aborda a hostilidade imposta a estudantes adeptos de credos oriundos de
matrizes africanas. O combate a casos como esses, que se multiplicam pelos
corredores escolares, caminha a passos lentos. Em 2014, a Conferência Nacional
de Educação (Conae) — encontro organizado pelo governo federal — orientou o
Conselho Nacional de Educação (CNE) a elaborar um documento que limitasse as
manifestações religiosas em instituições educacionais.
A iniciativa, que teria
como finalidade assegurar uma escola laica e proteger alunos de episódios de
intolerância religiosa, no entanto, ainda não foi elaborada. Antropóloga e
integrante do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF, Roseane Rodrigues
atenta que o preconceito religioso visto nas escolas é resultado de um projeto
secular de transformação da população brasileira em brancos e cristãos. “Nós
temos um dos racismos mais perversos do mundo.
Meus alunos negros não se veem
como negros”, diz ela. “A discriminação religiosa é o sinal mais evidente,
porque existe uma negação na tentativa de compreender a mitologia africana,
considerada inferior e sem prestígio em relação à cultura ocidental”. Por que
falamos da deusa da fertilidade grega, mas evitamos um debate sobre Oxum?