A jornalista Guila Flint morreu neste domingo aos 62 anos

A jornalista Guila Flint morreu neste domingo aos 62 anos

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A jornalista Guila Flint morreu neste domingo aos 62 anos
Correspondente Guila Flint em uma de suas Ćŗltimas viagens ao Brasil


Guila Flint (*) | Tel Aviv - 28/03/2014 - 15h31

Correspondente de Opera Mundi conta como sua histĆ³ria foi alterada pela ditadura civil.
Expatriada para Israel aos 14 anos depois do AI-5.

A jornalista Guila Flint morreu neste domingo (26/03/17), aos 62 anos. No texto abaixo, ela conta como a ditadura brasileira afetou sua vida aos 14 anos:
Em fevereiro de 1969, meus pais me levaram ao porto de Santos e me colocaram no navio Theodor Herzl, para Israel.
Eles sempre me disseram que a razĆ£o dessa decisĆ£o drĆ”stica, de enviar uma menina de 14 anos para o Oriente MĆ©dio, foi o medo de que algo de ruim me acontecesse, por causa da ditadura.

Tive a sorte de fazer o ginĆ”sio no ColĆ©gio de AplicaĆ§Ć£o, em SĆ£o Paulo. Entrei na escola em 1965 e saĆ­ no fim de 1968, logo depois do AI-5, quando o nome da instituiĆ§Ć£o mudou para Fidelino de Figueiredo e vĆ”rios professores foram exilados.
O AplicaĆ§Ć£o liderava, em SĆ£o Paulo, o movimento dos estudantes secundĆ”rios contra a ditadura. Diretamente ligado Ć  USP (a escola tinha um nome muito longo que sabĆ­amos de cor – ColĆ©gio de AplicaĆ§Ć£o da Faculdade de Filosofia, CiĆŖncias e Letras da Universidade de SĆ£o Paulo), o colĆ©gio era dirigido por pedagogos de esquerda com uma visĆ£o crĆ­tica da sociedade.
Alunos e professores da nossa escola participaram das manifestaƧƵes estudantis durante o ano de 1968.
Eu, que na Ć©poca tinha 13 anos, tambĆ©m participei, tanto de manifestaƧƵes como de algumas assembleias na Rua Maria AntĆ“nia, apesar das advertĆŖncias de meus pais.
Acho que uma daquelas manifestaƧƵes foi a gota d'Ć”gua que os levou a decidir me enviar para Israel. Lembro-me de estar junto com um grupo da escola na Avenida SĆ£o JoĆ£o. Lembro-me de policiais a cavalo, de bombas de gĆ”s lacrimogĆŖneo, das palavras de ordem gritadas pela multidĆ£o – "o povo unido jamais serĆ” vencido".

E, de repente, me perdi dos meus amigos e fiquei sozinha, correndo em meio a uma nuvem de gĆ”s lacrimogĆŖneo.

Ouvi a voz de uma mulher me chamando – "menina, vem pra cĆ”!". Era a dona de uma loja de calcinhas em uma das esquinas, perto do Banespa. Me arrastei no chĆ£o, com a blusa branca e a saia azul marinho da escola, embaixo da porta de ferro, pois minha protetora jĆ” estava quase fechando a loja quando me viu correndo.

Aquela senhora nĆ£o me deixou sair da loja atĆ© bem tarde. Disse :"vocĆŖ nĆ£o sai enquanto nĆ£o estiver tudo tranquilo lĆ” fora". JĆ” estava escuro quando ela finalmente abriu a porta e me deixou sair.

Fui atĆ© o AnhangabaĆŗ e tomei um Ć“nibus para o Bom Retiro. Toquei a campainha e meu pai abriu a porta de casa.

"Onde vocĆŖ estava?!", perguntou gritando.

Menti que tinha ido visitar uma amiga.

Minha camisa branca da escola que estava preta depois que me arrastei no chĆ£o da loja de calcinhas e meus olhos vermelhos do gĆ”s lacrimogĆŖneo desmascaravam a ridĆ­cula mentira.
Meus pais estavam histĆ©ricos. Tinham me procurado em todos os lugares e suspeitavam que eu havia desobedecido a ordem explicita deles de nĆ£o ir Ć  manifestaĆ§Ć£o.

Poucos meses depois eu estava no navio.

Em 1974, quando jĆ” tinha 19 anos, decidi voltar para o Brasil.

Tive, entĆ£o, minha segunda experiĆŖncia de expatriaĆ§Ć£o. Fui ao consulado brasileiro em Tel Aviv para renovar o passaporte. LĆ” alguĆ©m me advertiu: "Nem pense em voltar para o Brasil, teu nome estĆ” em uma das listas aqui".
Leia mais: Castello Branco rompeu relaĆ§Ć£o com Cuba apĆ³s perder queda de braƧo em conselho de ministros

Naquela Ć©poca muitos dos que lutavam contra a ditadura estavam sendo presos, torturados, assassinados.

Pode ser que aquela pessoa da embaixada, que me alertou para nĆ£o voltar, tenha me poupado de muito sofrimento.
NĆ£o voltei atĆ© 1979, quando comecei a fazer visitas esporĆ”dicas ao paĆ­s.
Nesses 45 anos que se passaram desde que eu fui embora, mantive vĆ­nculos muito fortes com o Brasil.

Vale lembrar que, nos anos 1970, vivĆ­amos em outra era – ainda nĆ£o existia Skype, nem internet, nem TV a cabo. Uma carta de SĆ£o Paulo a Tel Aviv demorava duas semanas para chegar e um telefonema internacional podia custar um salĆ”rio mensal. Nessas circunstĆ¢ncias, meu contato com a lĆ­ngua portuguesa foi muito afetado.

No fim dos anos 1980 comecei a trabalhar em traduĆ§Ć£o e, por intermĆ©dio do trabalho, consegui recuperar o portuguĆŖs.

Durante os anos 1990 passei a trabalhar em jornalismo, no inĆ­cio escrevendo sobre o Brasil no jornal israelense Davar, que nĆ£o existe mais.
Depois inverti a direĆ§Ć£o do meu trabalho e passei a escrever sobre o Oriente MĆ©dio para veĆ­culos de comunicaĆ§Ć£o brasileiros.

A traduĆ§Ć£o e o jornalismo me ajudaram a estabelecer pontes com o Brasil e, assim, parcialmente, consegui reparar a sensaĆ§Ć£o de expatriaĆ§Ć£o.

(*) Guila Flint cobriu o Oriente MĆ©dio para a imprensa brasileira hĆ” 20 anos e Ć© autora do livro 'Miragem de Paz', da editora CivilizaĆ§Ć£o Brasileira.

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