Em meio a milhares de registros de estrangeiros que entraram no Brasil há décadas, um passaporte do Comitê Internacional da Cruz Vermelha costuma deixar o alemão Uwe Steinz em alerta.
Após a Segunda Guerra Mundial, devido à destruição causada pelo conflito, era comum que organização humanitária emitisse documentos a refugiados que estivessem sem identificação, para que pudessem viajar. O recurso, porém, foi utilizado tanto por vítimas, quanto por criminosos; e diferenciar um do outro é um dos desafios por que passou Steinz nos últimos dez dias, enquanto esteve debruçado sobre prontuários do Arquivo Nacional, no Rio, com um único objetivo: caçar nazistas.
Após a Segunda Guerra Mundial, devido à destruição causada pelo conflito, era comum que organização humanitária emitisse documentos a refugiados que estivessem sem identificação, para que pudessem viajar. O recurso, porém, foi utilizado tanto por vítimas, quanto por criminosos; e diferenciar um do outro é um dos desafios por que passou Steinz nos últimos dez dias, enquanto esteve debruçado sobre prontuários do Arquivo Nacional, no Rio, com um único objetivo: caçar nazistas.
É assim desde 2009, ano em que o departamento em que trabalha Steinz começou a atuar no Brasil. O órgão se chama Escritório Central da Administração da Justiça do Estado para a Investigação de Crimes do Nacional Socialismo, um nome tão longo quanto a extensão de sua investigação. Hoje, o escritório busca pessoas nascidas entre 1916 e 1931, um escopo que possibilitaria um criminoso de guerra ter até 14 anos de idade em 1945, no fim da guerra. Já a data inicial se deve à legislação alemã que impede que idosos com mais de 100 anos sejam presos.
— No Brasil, nosso grupo já identificou de 40 a 50 pessoas, mas ninguém vivo. O trabalho só continua se acharmos alguém vivo e com menos de 100 anos. Nesse caso, encaminhamos o nome para a polícia local, para que a pessoa seja processada. Por outro lado, se ela já tiver morrido, não fazemos nada. Somos investigadores, não historiadores. E os parentes não têm culpa, então a gente nem se aproxima da família — explica Steinz, chefe de investigação criminal do Escritório Central.
Steinz tem uma aparência séria que lembra a do marinheiro Popeye dos desenhos infantis, com direito a uma cabeça careca e a uma tatuagem em formato de âncora no antebraço. Antes de caçar nazistas, ele era policial e atuava na repressão ao crime organizado e à prostituição. Hoje, divide seu tempo entre a sede do Escritório Central, em Ludwigsburg, no Sul da Alemanha, e as viagens ao redor do mundo atrás de remanescentes do Partido Nacional Socialista. Na América do Sul, além do Brasil, o investigador já passou por Uruguai e Chile, mas seu grupo também atua em Peru e Argentina.
Ex-militar morreu no Paraná
O continente, lembra Steinz, foi um dos destinos preferidos dos nazistas e fez parte do que os historiadores alemães batizaram de “caminhos de ratos”: para fugir das condenações pelos crimes de guerra, os militares utilizavam uma rota da Alemanha até a Itália e dali atravessavam o Atlântico. Ficava na cidade de Gênova o porto mais acessado para a viagem, e o uso dos passaportes da Cruz Vermelha era habitual.
Foi assim, por exemplo, que Adolf Eichmann, um dos mais conhecidos líderes nazistas e mentor do Holocausto, deixou a Europa em 1950, para morar na Argentina — ele só foi capturado em 1960, por agentes secretos de Israel, e executado dois anos depois, na cidade israelense de Ramla. Outro que fez o mesmo percurso, também utilizando um passaporte da Cruz Vermelha, foi Josef Mengele, médico que fazia experimentos em judeus presos em campos de concentração. Mengele chegou à Argentina em 1949, nunca foi preso e acabou morrendo numa praia de Bertioga, no litoral de São Paulo, em 1979.
— O Mengele é o caso mais conhecido de oficial nazista que veio ao Brasil — diz Steinz. — Hoje é difícil encontrarmos nomes de sua relevância. Quem tinha posto de comando já morreu. Em geral o que procuramos atualmente são aqueles que eram mais jovens na época da guerra e que foram cúmplices. Eram contadores, escrivães ou guardas. Recentemente descobrimos, por exemplo, um homem que veio ao Brasil para viver no Paraná. Ele não era alemão, era da Lituânia, mas serviu numa unidade de extermínio. Só que morreu em 1996.
Da mesma forma que é mais raro encontrar nazistas vivos do tempo da guerra, é natural que haja menos agentes destacados para procurá-los. Entre os anos 1960 e 1980, o Escritório Central para a Investigação de Crimes do Nacional Socialismo tinha 141 funcionários. Hoje são apenas 18 para identificar histórias como a de Reinhold Hanning, ex-guarda do campo de concentração de Auschwitz, cujo julgamento teve início há cerca de um mês, na cidade de Detmold. Ele tem 94 anos.
— Muitos jovens se ocupam do tema dos crimes de guerra e vão lutar sempre para que não sejam esquecidos. Mesmo que hoje haja poucas culpas individuais, ainda há a certeza de que coletivamente precisamos encarar o que aconteceu — afirma Steinz.
Pesquisa ainda deve levar anos
O investigador alemão foi embora do Rio ontem e deve voltar em outubro. No período de dez dias, ele ocupou uma sala do Arquivo Nacional, acompanhado de Manuela Scholl, outra agente do Escritório Central, e da tradutora Monica Marraccini. A pesquisa foi acompanhada por Mauro Lerner, coordenador de Documentos Escritos do Arquivo. Na etapa atual do trabalho, o grupo vem percorrendo os prontuários de entrada de imigrantes no estado do Rio. Depois, faltarão “apenas” os registros de São Paulo e Minas Gerais, trabalho que ainda deve durar anos.
— Provavelmente não estarei aqui quando eles acabarem, me aposento em dois anos — afirma Steinz. — Mas, comparando com Chile e Uruguai onde já estive, faço questão de ressaltar que o Arquivo Nacional é bastante organizado e facilita nossa pesquisa. Eles nos deram acesso aos prontuários e não apenas às fichas de identificação. Isso agiliza bastante o processo.
Fonte: André Miranda - O Globo