No dia 11 de Maio de 1960, uma equipe de agentes da Mossad capturou Adolf Eichmann (1906-1962) quando este, no final de um dia de trabalho, se dirigia à sua modesta casa nos subúrbios de Buenos Aires. A operação, que se revestiu de alguns aspectos rocambolescos, foi já objeto de obras de ficção e mesmo adaptações cinematográficas.
Desde há muito que esta personalidade-chave da “Solução Final” (Endlösung) era um dos principais alvos dos “caçadores de nazistas”. Simon Wiesenthal recorda o júbilo com que, em 23 de Maio de 1960, ouviu a rádio noticiar que o Primeiro-Ministro Ben Gurion anunciara ao Knesset que o célebre criminoso de guerra fora capturado na Argentina e se encontrava detido em Israel .

2. “Ich bin Adolf Eichmann”. Mas quem era este indivíduo “banal”, que se vangloriava da morte de cinco milhões de seres humanos? Nascido em Solingen, na Alemanha, em 19 de Março de 1906, Adolf Eichmann muda-se com a família para Linz, na Áustria, durante a I Guerra. A família, protestante, frequentava a igreja todos os domingos. O pai era gerente comercial de uma firma de material elétrico de Linz e casou uma segunda vez após a morte de Maria Eichmann, que ocorreu quando Adolf tinha dez anos. Adolf Eichmann foi um estudante medíocre, que confessou mais tarde, numa entrevista a um jornalista holandês, que o seu melhor amigo de infância era um judeu. Tendo abandonado a escola, emprega-se como caixeiro-viajante da empresa Socony Vacuum.
Em 1932, Eichmann e o seu pai assistem, a convite de um amigo da família, Ernst Kaltenbrunner, a uma reunião do Partido Nazista austríaco. Em 1 de Abril, adere ao Partido Nazista e, em Novembro desse ano, passa a integrar as SS; por essa altura, trabalha numa companhia petrolífera norte-americana, a Vacuum Oil Company A.G., de onde é despedido em 1933. Atribui o dispensa a uma vingança do novo diretor, um judeu, devido ao seu envolvimento com o nazismo. Este envolvimento levou-o, aliás, a ser procurado pela polícia, tendo de fugir da Áustria e refugiar-se em Berlim, onde integrou a divisão austríaca das SS no exílio. Pouco depois, em Agosto de 1933, inicia treinos militares na chamada “Legião Austríaca” (batalhão Deutschland), sendo promovido a SS-Scharführer. Em 1934, serve como cabo das SS no campo de concentração de Dachau. No seio do Partido, começa a ganhar fama como especialista em assuntos judaicos, já que, entre o mais, tinha aprendido pelos seus próprios meios hebreu e iídiche. Voluntaria-se para trabalhar nos Serviços Centrais do SD (Sicherheitsdienst), em Berlim, onde é destacado para o Departamento de Investigação sobre a Maçonaria.
Em 1935, é colocado, então, na área da sua especialidade: o Departamento Judaico. Em 1936, casa com Vera Liebl, natural da Boêmia, e, no ano seguinte, depois de ver recusada a sua candidatura para dirigir o Museu dos Assuntos Judaicos, é enviado à Palestina com vista a indagar da possibilidade de uma deportação dos judeus para esse território. Antes de partir, é promovido a SS-Hauptführer. O relatório que entrega a Heydrich é francamente negativo quanto à possibilidade de deportação dos judeus para a Palestina. A partir daí, a sua carreira é fulgurante: em Março de 1938, é nomeado assessor para os assuntos judaicos e enviado à Áustria para evacuar todos os judeus do país; em Agosto, é promovido a Untersturmführer (2º tenente). Esse é o ano da Kristallnacht, recorde-se.
Em Janeiro de 1939, Göring dá instruções a Reinhard Heydrich para se resolver o problema da emigração dos judeus. No Departamento Central de Emigração Judaica (Zentralstelle für jüdiesche Auswanderung), em Viena, Eichmann passa a ocupar-se da gestão das questões administrativas e logísticas, ascendendo, em Fevereiro de 1939, ao posto de Obersturmführer(tenente); no mês seguinte, encontra-se com os dirigentes judaicos em Berlim. No final do ano, dá-se uma importante evolução na sua carreira: é transferido para Berlim para chefiar o departamento judaico da Gestapo. A sua trajetória prossegue no interior do Reich: em 21 de Dezembro de 1939, Heydrich cria o Departamento IV-B4 da RSHA (Reichssicherheitshauptamt), com vista a centralizar o trabalho de deportação dos judeus do Leste. Eichmann é escolhido para dirigir este organismo. Em Junho do ano seguinte, pondera-se a evacuação do povo judaico para Madagáscar e Eichmann começa a trabalhar na concretização deste projeto. Em Agosto, é promovido a Hauptsturmführer(capitão). Entretanto, as deportações massa começam a ser postas em prática, registando-se já um apreciável número de vítimas. 1941 é o ano em que Auschwitz, Majdanek e Chelmno começam a laborar como campos de extermínio; Eichmann recomenda aos respectivos comandantes o uso de Zyklon-B e toma providências para assegurar o fornecimento deste gás. No Verão desse ano, atinge uma posição de grande relevo: é o responsável pelo tratamento da população judaica em toda a Alemanha. Em Junho desse ano, após o início dos extermínios em massa na Romênia, Göring encarrega Heydrich de organizar a “solução final” do problema judaico. Heydrich e Eichmann participam num encontro em Praga onde se definem as linhas do programa da Endlösung da questão dos judeus.
Pouco antes, Eichmann assiste a uma execução em massa nas proximidades de Minsk e, quando questionado sobre o destino a dar a oito mil judeus da Sérvia, propôs que fossem mortos a tiro. Não admira, pois, que no final do ano alcançasse o posto de Obersturmbannführer (tenente-coronel). E é nessa qualidade que assiste em Chelmno a um massacre de judeus e participa naquele que será um dos acontecimentos mais importantes da sua carreira: a Conferência de Wannsee.
Pouco antes, Eichmann assiste a uma execução em massa nas proximidades de Minsk e, quando questionado sobre o destino a dar a oito mil judeus da Sérvia, propôs que fossem mortos a tiro. Não admira, pois, que no final do ano alcançasse o posto de Obersturmbannführer (tenente-coronel). E é nessa qualidade que assiste em Chelmno a um massacre de judeus e participa naquele que será um dos acontecimentos mais importantes da sua carreira: a Conferência de Wannsee.
Neste encontro de altos funcionários, realizado em 20 de Janeiro de 1942 nas imediações de Berlim, discutem-se os aspectos logísticos da “solução final”. Ele é o organizador da conferência. No final do encontro, Eichmann é designado como responsável máximo pela organização da “solução final”. Pouco depois, os campos de Belzec e Sobibor entram em funcionamento, ao mesmo tempo que o gabinete de Eichmann começa a preparar a deportação de judeus eslovacos e decide iniciar a evacuação de quinze mil judeus da Holanda. Por essa altura, entra em funcionamento o campo de Treblinka, que Eichmann visita e onde assiste ao processo de extermínio. Em Julho de 1942, recebe um pedido de orientação sobre o destino a dar a quatro mil crianças internadas no campo de Drancy; no final, o seu gabinete ordena a deportação das crianças para Auschwitz. Metodicamente, iniciam-se os preparativos para novas deportações, desta feita da Bulgária, da Noruega e da Grécia. O seu empenho no extermínio dos judeus é imparável; significativamente, envida esforços para impedir que seja autorizada a emigração de judeus romenos para a Palestina.
Ao mesmo tempo, continua a liderar a burocracia do Holocausto: em Outubro de 1943, assume o controle de todas as operações relacionadas com o confisco de bens pertencentes aos judeus; nesse mesmo mês, iniciam-se os trabalhos de “limpeza” da Dinamarca e, um pouco mais tarde, da Itália e da Hungria. O ano de 1944 é justamente dedicado à resolução da “questão húngara”, onde Eichmann atinge os seus objectivos: entre Maio e Julho, realizam-se deportações em massa de judeus da Hungria para Auschwitz. Adolf Eichmann converte-se, em definitivo, num autêntico Schreibtischmörder, um “assassino de secretaria”.
Os ventos, todavia, começavam a mudar. Em 6 de Junho de 1944, o “Dia-D”, inicia-se a libertação da Europa pelos Aliados. É nessa altura que se intensifica a tentativa de quebrar as resistências existentes na Hungria à deportação de judeus. Pressente-se, contudo, que o regime estava prestes a terminar; em 1945, Eichmann faz uma visita de despedida à família, na Áustria, e dá veneno à mulher e aos filhos, ordenando-lhes que o usem se estiverem na iminência de ser capturados pelos russos. Em 7 de Maio desse ano, dá-se a rendição da Alemanha. Eichmann é capturado pelos norte-americanos nas cercanias de Ulm. Adota o nome de Adolf Karl Barth e enverga um uniforme de um cabo da Luftwaffe. Foge do campo ao ter conhecimento de que os americanos iriam começar a procurar as tatuagens das SS marcadas nos corpos dos prisioneiros. Em Agosto de 1945, é preso novamente, recorrendo a uma outra identidade: Otto Eckmann. É nessa qualidade que é mantido em cativeiro no campo de Oberdachstetten, de onde escapa em Janeiro de 1946.
O resto da sua vida é passado em fuga. Apenas na Argentina encontra algum descanso, sobretudo quando recebe a família em 1952. Acaba, porém, por ser detectado. E, às dez e meia da noite do dia 11 de Maio de 1960, ao descer do ônibus que o levava a casa, é interceptado por um comando judaico, a quem responde, ao lhe perguntarem a identidade: “Ich bin Adolf Eichmann”; acrescentará ainda saber que se encontrava “nas mãos de judeus”.
O resto da sua vida é passado em fuga. Apenas na Argentina encontra algum descanso, sobretudo quando recebe a família em 1952. Acaba, porém, por ser detectado. E, às dez e meia da noite do dia 11 de Maio de 1960, ao descer do ônibus que o levava a casa, é interceptado por um comando judaico, a quem responde, ao lhe perguntarem a identidade: “Ich bin Adolf Eichmann”; acrescentará ainda saber que se encontrava “nas mãos de judeus”.
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3. A caça ao homem. Ao que parece, a localização de Eichmann deveu-se, em larga medida à ação de um cego. Lothar Hermann, que esteve internado em Dachau em 1938 devido às suas atividades socialistas, fugiu para a Argentina em 1938, na sequência da famosa Kristallnacht. Alguns anos depois de chegar à Argentina, perderia a visão, ainda em resultado da tortura que a Gestapo lhe infligiu em Dachau. Por um acaso do destino, a sua filha tornou-se amiga dos filhos de Eichmann e Lothar Hermann, ao escutar o nome de Eichmann a partir dos relatos jornalísticos de um julgamento que tinha lugar em Frankfurt, apressou-se a enviar uma carta às autoridades alemãs. A carta foi recebida pelo ativo Procurador-Geral (Generalstaatsanwalt) do Estado de Hesse, Fritz Bauer, que, depois de concluir que seria muito difícil obter a extradição de Eichmann e julgá-lo na Alemanha, decidiu informar secretamente as autoridades israelenses do paradeiro do antigo colaborador de Himmler, indo ao ponto de fornecer a morada exata: nº 4261 da Calle Chacabuco, no bairro Olivos. O Mossad, no entanto, não deu grande importância ao assunto, limitando-se a enviar um agente a Buenos Aires, em Janeiro de 1958, que, ao perscrutar o bairro de Olivos, informou os seus superiores que era impossível um nazista tão importante viver num lugar tão modesto. Uma segunda missão foi enviada a Buenos Aires, por insistência de Fritz Bauer. Desta feita, os agentes encontraram-se com Lothar Hermann e acabaram por confiar a tarefa de localizar o fugitivo de guerra a um cego que vivia a dez horas de comboio de Buenos Aires...
A tenacidade deste homem - a que não era alheia a vontade de obter uma recompensa no valor de dez mil dólares, oferecidos, ao que parece, pelo Congresso Mundial Judaico - acabou por vencer a letargia dos serviços secretos israelenses. O resto da história é conhecido: uma equipe da Mossad capturou Eichmann quando este se deslocava a casa, no nº 6061 da Calle Garibaldi, e manteve-o em cativeiro durante dez dias, antes de o enviar para Israel sob o efeito de drogas e disfarçado de comissário de bordo da companhia aérea El Al.
Menos conhecidos são outros pormenores: em Março de 1961, Lothar Hermann, o homem que localizara Eichmann, foi preso e acusado de ser Josef Mengele! Tudo indicia que este grotesco episódio foi uma forma de os elementos anti-semitas das forças policiais argentinas se vingarem do papel que Hermann tivera na captura de um dos principais arquitetos do Holocausto. Não por acaso, no dia seguinte ao da execução de Eichmann, uma jovem judia, Graciela Narcisa Sirota, a filha do dono da casa onde se suspeitava que os agentes da Mossad guardaram o seu prisioneiro, foi raptada, torturada, violada e queimada no peito com uma cruz suástica; outra moça judia, Mirta Penjerek, acusada de ter fornecido alimentos aos agentes da Mossad, foi morta. Um conhecido acadêmico judeu, Maximo Handel, foi gravemente agredido por simpatizantes nazistas argentinos, que marcaram à navalha o seu corpo com cruzes suásticas. Bombas artesanais explodiram nas representações diplomáticas e consulares israelitas por toda a América do Sul, o mesmo sucedendo em escolas judaicas, centros cívicos e culturais ou sinagogas. Muitos cemitérios judaicos foram profanados. A organização extremista Tacuara, a quem os filhos de Eichmann pediram auxílio, chegou a planejar o rapto do embaixador de Israel em Buenos Aires e a colocação de engenhos explosivos na embaixada.
O rapto de Eichmann provocou, naturalmente, um conflito nas relações entre Israel e a Argentina, tendo o embaixador nas Nações Unidas apresentado um protesto formal ao Conselho de Segurança . Este, por unanimidade, condena o Estado de Israel por ter violado a soberania argentina e as regras de Direito Internacional. O embaixador israelense em Buenos Aires, Arieh Levavi, é chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde lhe exigem explicações sobre o rapto de Eichmann. A nota verbal que mais tarde entregará ao ministro Diogenes Taboada negava qualquer responsabilidade do Governo israelense no caso, atribuindo-o a uma ação dos serviços secretos e de voluntários, de que o Executivo de Ben Gurion não fora informado. Obviamente, os argentinos não ficaram satisfeitos com a explicação fornecida – numa declaração extremamente dura, exigiram o imediato retorno de Eichmann a Buenos Aires e a punição dos “voluntários” que auxiliaram a sua descoberta. Nem uma mensagem pessoal de Ben Gurion, dirigida ao Presidente argentino Arturo Frondizi, conseguiu sanar o incidente diplomático . Pelo contrário, a Argentina promoveu, como se disse, a condenação do Estado de Israel pelas Nações Unidas e rejeitou com veemência a “expressão de sinceras desculpas” apresentada pelas autoridades israelenses. O embaixador Arieh Levavi foi considerado persona non grata e teve de regressar a Israel. Ao mesmo tempo, as autoridades policiais argentinas decidiram iniciar uma investigação sobre as condições em que Eichmann tinha sido capturado. E o cardeal argentino Antonio Caggiano foi ao ponto de dizer à imprensa: “Ele veio para a nossa pátria em busca de perdão e esquecimento. Não interessa se o seu nome é Ricardo Klement ou Adolf Eichmann, pois a nossa obrigação enquanto cristãos é perdoar-lhe pelo que fez”.
Os israelenses não partilhavam esta opinião. Decidiram julgá-lo e com isso abriram um dos mais famosos processos do século XX, que foi tema de diversos livros e, pelo menos, dois documentários .
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4. Estado de Israel vs. Adolf Eichmann. Dois meses após ser interrogado pela polícia israelita [14], Adolf Eichmann é levado a julgamento. Este decorreu perante o Tribunal de Jerusalém com a designação Processo-crime 40/61 (Procurador-Geral vs. Adolf Eichmann). Além, naturalmente, do próprio Adolf Eichmann – que, para sua própria segurança, foi mantido numa cela de vidro durante todo o julgamento –, outras personalidades se destacaram neste processo. O colectivo de juízes era composto pelo magistrado do Supremo Tribunal de Israel, Moshe Landau, que presidiu, Benjamin Halevi e Yitzchak Raveh, assessorados por Joseph Bodenheimer. Refira-se que os três juízes eram fluentes em língua alemã e decidiram ouvir o acusado sem recurso a tradutores, de modo a não serem induzidos em erro por qualquer lapso que estes eventualmente cometessem. Hannah Arendt não deixa, no entanto, de reprovar o uso do hebraico durante o julgamento, falando mesmo numa “comédia com o hebraico, já que todos sabem alemão e pensam em alemão” .
A acusação esteve a cargo do Procurador-Geral, Gideon Hausner, que liderava uma equipa composta por Gabriel Bach, Jacob Bar-Or, Zvi Terlo e Jacob Robinson (este último seria um dos principais críticos da obra de Arendt ). Ao longo do julgamento, o gabinete do Ministério Público foi literalmente inundado com correspondência: a acusação recebeu mais de dez mil cartas, metade das quais de cidadãos israelenses, muitos deles crianças ou adolescentes que simplesmente não compreendiam o motivo pelo qual os seus compatriotas não resistiram às deportações.
A defesa, por seu turno, foi confiada a Robert Servatius, assessorado por Dieter Wechtenbruch, um jovem advogado de Munique. Saliente-se que muitas sociedades de advogados norte-americanas de prestígio se voluntariaram para defender Eichmann, mas este, ao que parece a conselho da família, decidiu escolher Robert Servatius, um advogado de Colônia que se notabilizara nos processos de Nuremberg. Existia, no entanto, um problema: Eichmann não tinha meios para pagar os honorários deste famoso causídico. O Estado de Israel aceitou pagar os custos da defesa, no valor de trinta mil dólares.
O julgamento iniciou-se em 11 de Abril de 1961. Uma cadeia de televisão norte-americana, a Capital Cities Broadcasting Corporation, requereu a gravação de todas as sessões. O requerimento foi deferido, pelo que, apesar das objeções do advogado de Adolf Eichmann, este foi o primeiro julgamento da História a ser objeto de gravações televisivas. Muitas estações cobriram o julgamento, e a ABC (American Broadcasting Company) transmitiu um programa semanal de uma hora sobre o processo nas sessenta estações emissoras que possuía. Diz-se, aliás, que Ben Gurion se regozijou por tão intensa cobertura televisiva, porquanto desejava mostrar as atrocidades do Holocausto às gerações nascidas no pós-guerra. Centenas de jornalistas – entre os quais Hannah Arendt – afluíram a Jerusalém. Certamente por isso, o julgamento foi transferido para um teatro, que foi transformado numa sala de audiências com cerca de setecentos e cinquenta lugares.
Eichmann foi acusado ao abrigo de uma lei israelense de 1950, especialmente destinada a punir os criminosos de guerra nazistas. Teve de enfrentar nada menos do que quinze acusações, prevendo as doze primeiras como pena máxima a morte: (1) era responsável pela morte de milhões de judeus; (2) era responsável por ter colocado esses judeus, antes de os matar, em condições que visavam a sua morte; (3) era responsável por graves danos físicos e psicológicos aos judeus; (4) era responsável por medidas que resultaram na esterilização de judeus; (5) era responsável pela escravatura, fome e deportação de milhões de judeus; (6) era responsável por perseguir judeus com base em motivos nacionais, raciais, religiosos e políticos; (7) era responsável por confiscar bens de judeus através de medidas que envolviam a extorsão, o roubo, o terrorismo e a violência; (8) era responsável por crimes de guerra; (9) era responsável pela deportação de meio milhão de cidadãos polacos; (10) era responsável pela deportação de catorze mil eslovenos; (11) era responsável pela deportação de dezenas de milhar de ciganos; (12) era responsável pela deportação e morte de cem crianças checas da aldeia de Lidícia. As três últimas acusações – não puníveis com a pena de morte – relacionavam-se com a pertença a organizações consideradas criminosas pelo Tribunal de Nuremberg: SD, Gestapo e SS .
O julgamento desenrolou-se ao longo de quatro meses, com cerca de cento e quarenta e quatro sessões que terminaram em 14 de Agosto de 1961; depois, em 11 de Dezembro, os juízes iniciaram a leitura dos duzentos e quarenta e quatro parágrafos da sentença. Adolf Eichmann foi julgado culpado de todas as acusações de que era alvo – e, em consequência, condenado à morte. O veredicto determinava que fosse enforcado. Foi a primeira – e única – condenação à morte na história do Estado de Israel .
Vale a pena transcrever a declaração final Eichmann em Jerusalém, proferida no dia 13 de Dezembro de 1961:
“- Ouvi a pesada condenação pronunciada pelo tribunal e perdi todas as esperanças de encontrar aqui justiça, não posso reconhecer esta condenação.
- Compreendo muito bem que se exija que os crimes cometidos contra os Judeus sejam expiados. Os depoimentos das testemunhas que foram apresentados na barra do tribunal gelaram-me, novamente, o sangue, assim como quando fui obrigado a assistir a estes horrores, devido às ordens que tinha recebido.
- Tive a infelicidade de me ver envolvido nestes horrores, o que não foi fruto da minha vontade, não tive a intenção de matar homens. São os próprios dirigentes políticos os únicos responsáveis deste assassinato colectivo.
- Tentei abandonar as minhas funções e ser transferido, para combater honradamente, mas retiveram-me para continuar esta pesada tarefa. Neste momento ainda, sublinho uma vez mais:
- A minha culpa reside na minha obediência, no meu respeito pela disciplina e nas minhas obrigações militares em tempo de guerra, no meu juramento de fidelidade que prestei tanto como soldado, como funcionário.
- Além disso, estava submetido às leis de guerra.
- Esta obediência não era fácil. Aquele que já esteve sob ordens ou a mandar sabe o que se pode exigir de um ser humano.
- Não persegui os Judeus por paixão nem por prazer, como foi o caso do governo. Só para um governo é que uma perseguição destas é possível, eu próprio seria incapaz.
- Acuso os governantes de terem abusado da minha obediência, que era exigida naqueles tempos, como também será exigida, no futuro, a qualquer subordinado.
- A obediência encontra-se entre os virtuosos. É por isso que eu peço para terem em conta o facto de eu ter obedecido, e não a quem eu obedeci.
- Como já disse, a classe dirigente, da qual eu não fazia parte, ditava as ordens. Penso que esta é quem merecia ser punida pelos horrores cometidos às suas ordens.
- Mas os subordinados são agora vítimas. Eu sou uma dessas vítimas, não podemos deixar de ter isso em conta.
- Pretende-se alegar que eu deveria ter desobedecido. É um ponto de vista eminentemente retrospectivo. Naquelas circunstâncias, uma atitude destas era impossível, ninguém tinha a coragem de se comportar desta maneira.
- Sei por experiência própria que esta possibilidade de desobedecer a uma ordem, a qual nunca foi questionada a não ser depois da guerra, é uma fábula inventada por aqueles que tinham necessidade disso. Foram raros os que puderam esquivar-se e eu não estava entre aqueles que aprovavam uma atitude destas.
- É um grande erro acreditar que eu fazia parte dos fanáticos da perseguição dos Judeus.
- Depois do final da guerra, fiquei indignado ao constatar que todos os meus superiores me atribuíam todas as culpas. Com efeito, nunca disse nada que testemunhasse qualquer fanatismo da minha parte e a minha coragem não transcende a minha consciência.
- As testemunhas indicaram, a este propósito, grandes contradições.
- O tribunal relacionou estes testemunhos com certos documentos e expressões de uma maneira que, à primeira vista, é muito convincente, mas é também enganadora.
- Tentarei trazer luz sobre estes erros junto do tribunal de recurso.
- Ninguém se dirigiu a mim para censurar as minhas actividades, no âmbito das minhas funções. Até mesmo o pastor Grüber, no que lhe dizia respeito, não o pretendia. Veio ver-me apenas para me pedir clemência, e nunca disse o que quer que fosse sobre a maneira como eu cumpria as minhas funções. Este confirmou aqui perante o tribunal que nunca me neguei a recebê-lo, mas que lhe disse que devia recorrer aos meus superiores, visto que eu não estava habilitado para decidir por mim mesmo.
- O Dr. Lösener, já falecido, que tem sido mencionado ao longo deste processo, era a “Autoridade” para as questões judaicas no Ministério do Interior do Reich. Num relatório que redigiu mais tarde para se justificar, e que foi recentemente publicado, afirmava que tinha tomado conhecimento de atrocidades e que tinha participado aos seus superiores. Podemos pois supor que todas as personalidades do Ministério do Interior foram postas ao corrente do facto. Sem dizer uma palavra, o Dr. Lösener refugiou-se na oposição muda continuando a servir o seu Führer, enquanto juiz generosamente remunerado do Tribunal Administrativo do Reich. Eis ao que se assemelha a coragem cívica de uma alta personalidade.
- No seu relatório de 1950, Lösener formula pareceres, acerca da minha pessoa, nos quais afirma eu ter sido uma das figuras centrais da campanha de perseguição dos Judeus, mas isto não é mais do que uma explosão emocional, que não é sustentada por qualquer facto.
- Acontece o mesmo com outras testemunhas.
- Os juízes perguntaram-me se eu queria declarar reconhecer a minha culpabilidade, como fez Hoess, o comandante de Auschwitz, e Frank, o governador-geral da Polónia. Estes dois tinham todas as razões para reconhecerem a sua culpabilidade:
- Frank, que ditava as ordens, reconheceu a sua culpabilidade por causa dessas mesmas ordens e absteve-se de atribuir culpas aos seus subordinados.
- Hoess era quem, de facto, tinha executado as exterminações em massa.
- Encontro-me numa posição diferente. Nunca tive o poder nem a responsabilidade de um personagem que ditava ordens. Nunca executei as exterminações como o fez Hoess.
- Se tivesse sido eu que recebi as ordens de execução, não me teria refugiado por detrás de falsos pretextos. Já referi ao longo do meu interrogatório: como não havia meio de fugir à obrigação de obediência, ter-me ia dado um tiro na cabeça a fim de resolver o conflito entre a consciência e o dever.
- O tribunal considera que a minha atitude é determinada pelo processo e é falsa. Uma amálgama de factos seguiu-se e parece confirmá-lo. Ora, as contradições que se puderam verificar nas minhas declarações provinham do facto de, no início quando a polícia me interrogou, era naturalmente impossível lembrar-me de todos os detalhes. Já vivi demasiado, nos tempos de antigamente.
- Não me esquivei, as três mil e quinhentas páginas do auto do meu interrogatório provam-no. Aquilo que lá disse constituía, de certa forma, uma primeira tentativa de contribuir sem reservas ao esclarecimento dos factos. Cometi erros, mas deveriam dar-me a possibilidade de os rectificar. Depois de um período de dezasseis a vinte anos, não podem atirar todos os erros para cima de mim, e não podem chamar à minha boa vontade "manha e mentira".
- O princípio segundo o qual procurei orientar a minha vida, e que me foi inculcado muito cedo, era a vontade e a aspiração de realizar valores éticos.
- A partir de um certo momento, o Estado impediu-me de viver de acordo com esses princípios éticos e tive de ignorar inúmeras manifestações da moral. Tive de me curvar a valores que eram ditados pelo Estado, contrários àqueles que eu queria servir.
- Apenas posso fazer um exame de consciência no meu foro íntimo. Procedendo a este exame, devo ignorar o facto de me sentir inocente, do ponto de vista jurídico.
- Se dependesse de mim, pediria já perdão, por iniciativa própria, ao povo Judeu e reconheceria a vergonha que me persegue quando penso na injustiça de que os Judeus foram vítimas e nos actos cometidos contra estes. No entanto, é provável que isto seja considerado como uma hipocrisia da minha parte, à luz do tribunal.
- Eu não sou o monstro que querem fazer de mim.
- Em Buenos Aires, atiraram-se a mim, acorrentaram-me a uma cama durante uma semana e, inconsciente com injecções, fui conduzido ao aeroporto de Buenos Aires. De lá, fizeram-me sair da Argentina de avião. Manifestamente, não se pode atribuir tal fato apenas ao fato de me considerarem responsável por tudo.
- A explicação reside no facto de que certos nacional-socialistas da época e outras pessoas espalharam mentiras acerca da minha pessoa. Tentaram desculpar-se às minhas custas ou tentaram lançar a confusão, por razões que desconheço.
- É assombroso que uma parte dos órgãos de imprensa e de outras publicações tenham difundido estes relatos falsos durante quinze anos, exagerando-os propositadamente. É esta a causa das conclusões erróneas, é esta a causa da minha presença aqui.
- Agradeço ao meu advogado, que defendeu os meus direitos.
- Estou profundamente convencido que vou ter de prestar contas de atos que outros cometeram.
Em Dezembro de 1961, a defesa recorreu para o Supremo Tribunal de Israel (recurso nº 336/61). Presidido por Yitzchak Olshan, o colectivo era ainda integrado pelo Vice-Presidente, Shim'on Agranat, e pelos juízes Moshe Silberg, Yoel Sussmann, Alfred Witkon, tendo como assessores J. Bodenheimer e A. Walfisch. Como se esperava, em 29 de Maio de 1962, o recurso foi indeferido, confirmando-se o julgamento da primeira instância .
Nesse mesmo dia – 29 de Maio de 1962 –, o Presidente de Israel, Itzhak Ben-Zvi, recebe um pedido de clemência de Adolf Eichmann, um manuscrito de quatro páginas, e, bem assim, cartas da mulher e da família do condenado. Numerosos pedidos de clemência chegam de todo o mundo. O Presidente, no entanto, rejeita tais apelos, em 31 de Maio. Nesse mesmo dia, algumas horas mais tarde, pouco antes da meia-noite, Adolf Eichmann é enforcado na prisão de Ramleh. As suas últimas palavras são: “Em breve, meus senhores, voltaremos a ver-nos. É esse o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Jamais as esquecerei!”. O corpo é cremado e as cinzas lançadas nas águas do Mediterrâneo.
Poucos dias depois, Hannah Arendt escrevia à sua amiga Mary McCarthy: “Estou satisfeita por terem enforcado Eichmann. Não porque isso fosse importante. Mas eles cobrir-se-iam de ridículo, creio, se não levassem a coisa até ao único resultado lógico” .
Poucos dias depois, Hannah Arendt escrevia à sua amiga Mary McCarthy: “Estou satisfeita por terem enforcado Eichmann. Não porque isso fosse importante. Mas eles cobrir-se-iam de ridículo, creio, se não levassem a coisa até ao único resultado lógico” .