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Texto extraído da sensacional obra Reflexões sobre a Torá, de Moshe Grylak. |
Os Dez Mandamentos
Primeiro as mulheres – depois os homens
Deus não se revelou no deserto de forma repentina. A entrega da Torá foi antecedida de muitos preparativos, que estão detalhados nos versículos que antecedem a Revelação (Êxodo, capítulo 19). Foram tentativas de aproximar os corações e de estabelecer uma fraternidade verdadeira entre as diversas facções do povo, pois a união de todas elas – sem exceção – era condição sine qua non para o surgimento de uma interligação entre o Divino e o humano.
Entre os preparativos encontramos conversas e explicações que formam a base conceitual do acontecimento que se aproxima, como por exemplo neste versículo:
“Tendes visto o que fiz no Egito, e vos levei sobre asas
de águias ... e vós sereis para mim um reino de
sacerdotes e um povo santo.”
Êxodo 19:4-6
Nossa atenção é atraída particularmente pelo começo desta fala:
“Assim dirás à casa de Jacob, e anunciará aos filhos de Israel.”
Êxodo 19:3
“À casa de Jacob – estas são as mulheres. A elas falará com linguagem suave. Aos filhos de Israel – estes são os homens. A eles falarás de castigos e de forma meticulosa, palavras duras como os tendões.”
Midrash
Neste comentário, nossos sábios são fiéis à distinção clara feita no texto bíblico entre os verbos “dizer”, que tem uma conotação mais suave, e “falar”, que tem uma conotação mais decisiva.
Vemos, assim, uma atenção especial às mulheres. Deus pede a Moisés que explique antes a elas o que está por ocorrer, utilizando uma linguagem adequada a suas características, já que elas se distinguem dos homens por sua sensibilidade e delicadeza.
Aprendemos então que a entrega da Torá no monte Sinai, assim como a experiência de caráter profético na qual esta foi centrada, foi partilhada também pelas mulheres. Fica demonstrada assim a igualdade entre homens e mulheres outorgada pelo judaísmo – através do direito de aproximação de Deus – apesar de haver funções e deveres distintos.
Esta atenção dedicada às mulheres de forma geral se opõe claramente à usual posição da mulher nas sociedades de então, e até mesmo nas gerações posteriores. Este é outro fato que nos mostra a revolução de conceitos que se iniciou naquele dia.
Os dez mandamentos
Os dez mandamentos foram ouvidos pelo povo quando este se encontrava aos pés da montanha fumegante “como fumo de fornalha” (Êxodo 19:18). Estes dez mandamentos, juntamente com as 620 letras necessárias para escrevê-los, contêm todos os 613 mandamentos da Torá, assim como outros sete mandamentos acrescentados ao longo dos tempos por sábios inspirados na própria Torá.
O primeiro e o último dos mandamentos assemelham-se em sua essência. Tanto o primeiro “Eu sou o Eterno, teu Deus”, como o décimo “não cobiçarás” não têm implicações práticas, nem exigem que algo seja feito. São apenas mandamentos conceituais, direcionados ao coração das pessoas. O primeiro enfoca um relacionamento correto com o mundo, enquanto o último é uma orientação no labirinto das relações humanas. Os outros oito mandamentos que se encontram entre eles, são mandamentos práticos, que exigem que a pessoa faça ou deixe de fazer algum ato concreto.
Os dez mandamentos estavam gravados em dois blocos de pedra. O primeiro bloco incluía os mandamentos que regem as relações entre o homem e Deus, enquanto o segundo continha aqueles que regem as relações entre o homem e seu semelhante. Usando uma terminologia moderna, podemos dizer que foram colocados lado a lado mandamentos “religiosos” e “civis”.
O primeiro bloco começa, conforme já foi dito, com um mandamento conceitual: a fé em Deus. No entanto, o último mandamento deste primeiro bloco é bastante prático e palpável, retirado diretamente da problemática cotidiana: “Honrarás a teu pai e a tua mãe”.
Por outro lado, o bloco dos mandamentos “civis” começa com um mandamento de ordem extremamente prática, “não matarás”, e termina com um apelo aos sentimentos humanos, “não cobiçaras”.
O Midrash aborda estes dois mandamentos no comentário ao texto introdutório aos dez mandamentos:
“A frase ‘E falou Deus todas estas palavras’ vem nos ensinar que elas foram ditas todas ao mesmo tempo, de um modo que a boca não pode dizer e o ouvido não pode escutar.”
Midrash
Por quê? Para nos indicar e ensinar desde o princípio que todos os mandamentos foram ditos juntos e, consequentemente, que não deve-mos separar a vida prática e secular do nosso mundo espiritual interior. Não há como ser “religioso de coração”, nem o judaísmo é algo a ser praticado apenas em sinagogas. Nossa vida deve estar pronta, em todos os aspectos, para ser examinada de acordo com as leis gravadas em ambos os blocos de pedra.
ANALISANDO OS DEZ MANDAMENTOS
“Não terás outros deuses diante de mim”
Não há lugar para dois deuses no universo. É inadmissível a existência de uma força Divina adicional. Todas as forças existentes no mundo provêm do mesmo Ser Supremo e Único. Também não há espaço para a pergunta provocativa “quem criou Deus?”, pois “‘exigir uma causa à primeira causa’, escreveu Frank Ballard, ‘é o mesmo que pedir que o primeiro seja, ao mesmo tempo, também o segundo’. Isto significa exigir que a grande causa de tudo não seja, ao mesmo tempo, a causa de tudo, pois seria ao mesmo tempo uma consequência. Esta suposição contém um ridículo suficiente para justificar por si só sua negação total e imediata” (Herbert S. Box em God and the Modern World).
De fato, todo aquele que aceita o jugo do Reino Divino, e para quem as palavras “Eu sou” preenchem todo o seu ser, está livre de qualquer forma de obediência ou servidão a outras forças existentes no Universo.
Na antiguidade, os objetos eram cultuados como divindades. Hoje, na formulação de Franz Rosenzweig, “apenas os nomes mudaram. A multiplicidade do culto continua existindo. Cultura e civilização, povo e país, nação e raça, arte e ciência, economia e posição social, eis uma resenha curta, e certamente incompleta, do Panteão de divindades modernas. E quem poderá negar a existência destas divindades? Jamais um idólatra adorou com tanto sacrifício e fé como nossos contemporâneos fazem aos deuses acima... e assim continua viva, até os nossos dias, a guerra entre a dedicação ao único e a dedicação aos muitos no coração do homem, e o desfecho desta batalha continua sendo incerto” (Franz Rosenzweig em seu livro sobre Iehuda Halevi, citado por Nechama Leibowitz em uma de suas obras).
A proibição de fazermos figuras ou esculturas inclui a proibição de adorarmos qualquer “fruto de nossas mãos” e de atribuirmos valor absoluto a qualquer obra ou pensamento humano, de toda e qualquer área, de modo a nos tornarmos servos destes.
Leia com atenção as palavras do comentarista Rabi Yits’chac Arama que, apesar de ter vivido séculos atrás, escreve como se fosse nosso contemporâneo:
“E de modo geral, a grande idolatria de nosso mundo é uma realidade vigorosa. Esta idolatria são os esforços e os pensamentos investidos nos negócios e no acúmulo de bens. Tais esforços e pensamentos brandem contra Deus; apoiam-se e sustentam-se nos bens e nos negócios, e por eles negam a existência do Divino, caracterizando a essência da idolatria.”
Rabi Yits’chac Arama
Vemos assim que as coisas não mudaram com o passar do tempo, pois não evoluímos moral ou espiritualmente. Apesar de nosso “progresso”, abandonamos os deuses de ouro e de prata para transformar o próprio ouro e a própria prata em divindades próprias.
“Estejas lembrado do dia do Shabat para santificá-lo”
O Shabat é o testemunho do homem aos seis dias da Criação do Mundo. O Shabat é dia de descanso para todos, em igualdade absoluta. O Shabat cria o equilíbrio entre a vida material e a vida espiritual do homem. O sacrifício concreto que o homem judeu faz neste dia, ao não realizar qualquer obra, cria-lhe uma ilha de liberdade na rotina do tempo, no passar das semanas e dos anos.
O Shabat sempre despertou a inveja dos gentios. Ele faz palpitar, com sua força vital, aqueles que atualmente redescobrem o Shabat e que veem nele “um castelo que construímos no tempo. Suas paredes são feitas de alma, alegria e da virtude do autocontrole, e assim ficamos próximos à eternidade” (Prof. Avraham Iehoshua Heschel em O Shabat e seu Sentido Atual ).
É um “dia durante o qual experimentamos o gosto da vida e da existência, ao invés do gosto da ação e realização”. Há ainda outras expressões que descrevem o Shabat, mas não são mais do que um reflexo do que foi dito no Talmud:
“Um belo presente guardo em meu cofre, ele se chama Shabat.”
Tratado Shabat
Acrescentaremos apenas mais algumas palavras expressas por Harvey Kooks, um americano não judeu, que publicou um artigo intitulado A meditação e o Shabat. Após analisar todas as religiões orientais, especialmente aquelas como Meditação Transcendental, Hare Krishna, Maharaji e Zen-Budismo, as quais têm varrido o ocidente nos últimos anos, ele as comparou à experiência do conhecimento do Shabat! Justo esta experiência “primitiva”, que nos priva de prazeres modernos como eletricidade e automóveis, e que Kooks vivenciou quando estava hospedado na casa de um rabino ortodoxo. E ele concluiu assim:
“O redescobrimento, em nossos dias, do sentido maravilhoso do Shabat pode levar muitos jovens judeus a repensarem se devem continuar no caminho de seus cultos e eruditos pais, os quais abandonaram o Shabat como se fosse um objeto embaraçoso e deprimente.”
Harvey Kooks
“Honrarás a teu pai e a tua mãe”
Este é um mandamento que exige que o selo da verdade Divina seja estampado também nas relações sociais, em sua forma mais concreta possível. Não está se exigindo aqui o respeito à lei, rei, governo ou democracia, mas o respeito e a honra aos nossos pais, que nos deram o que há de mais valioso: a própria vida. Esta é uma exigência fundamental para combatermos o sentimento de nos acharmos merecedores de privilégios ou favores. Este sentimento, tão profundamente gravado em nossas personalidades, é o gerador de todas as desgraças que o homem atrai sobre si mesmo.
Este mandamento foi gravado no primeiro bloco de pedra, na tábua que contém os mandamentos que regem as relações entre os homens e Deus. No entanto, apesar de a honra e o respeito aos pais serem uma obrigação moral e “civil”, o judaísmo interpreta este mandamento como uma obrigação perante Deus, pois apenas desse modo poderemos, talvez, cumprir as exigências severas deste mandamento.
“Até que ponto se estende a honra ao pai e à mãe?” pergunta o Talmud, respondendo a seguir: “Mesmo que estejas sentado à cabeceira da mesa, cercado pelos ministros do rei, e vier tua mãe e rasgar tuas roupas e cuspir em teu rosto – cala-te e não reage”.
Esta abordagem severa já não pertence mais à moral normalmente aceita, mas esta é a abordagem Divina.