"Desculpe, você é judeu?"
A pergunta surge assim, a seco. Está uma pessoa a entrar no seu prédio, vê o correio e encaminha-se assobiando para as escadas, quando um vizinho se lhe dirige: "Você é judeu? É que eu gostava de saber o que é isso. Talvez me pudesse dar umas luzes." O judeu é Miguel Guilherme, o vizinho curioso é Bruno Nogueira e o encontro acontece no átrio de um prédio parisiense instalado, a partir de hoje, no palco do auditório do Casino Estoril.
Mas, na verdade, o encontro aconteceu muito antes. Bruno Nogueira e Miguel Guilherme já tinham trabalhado várias vezes juntos, fizeram, não há muito tempo, o espetáculo É como diz o outro e queriam voltar a subir ao palco os dois. "Como a tragédia, o humor tem muitos registos, não é fácil encontrar parceiros, amigos, artistas empáticos, que sintam o humor da mesma maneira. Eles partilham um tipo de humor, têm as mesmas referências", conta Beatriz Batarda, que foi desafiada pelos atores a encenar este espetáculo.
Nós e os outros
O meu vizinho é judeu é um texto de Jean-Claude Grumberg, dramaturgo judeu e francês, de 76 anos, cuja família viveu o Holocausto. Autor de diversas peças, algumas delas para crianças, argumentista para realizadores como François Truffaut e Costa-Gravas, Grumberg venceu por várias vezes o Prix Molière, entre outros prémios. A peça, que no original se chama L"être ou pas, estreou em janeiro deste ano. "A minha geração acreditou que o ateísmo tinha vencido. Não poderíamos imaginar este regresso à obsessão religiosa", disse o autor, numa entrevista à Paris Match.
Ninguém poderia então imaginar o que entretanto se passou. A peça está neste momento em cena Théâtre Antoine, em Paris. E, uma semana depois dos atentados terroristas na capital francesa, é impossível ver este espetáculo sem pensar no quanto desconhecemos os nossos vizinhos - os que vivem no nosso prédio, na nossa cidade, no nosso mundo - e o quanto esse desconhecimento dá origem a preconceitos, a desentendimentos. E a guerras, claro.
"O preconceito e o medo da diferença não são problemas novos", diz Beatriz Batarda. "A peça aborda um receio intemporal, que é o medo do outro." A encenadora não considera que seja preciso "estar informado sobre o conflito israelo-palestiniano ou sobre o que é a religião judaica para se entender a peça". Afinal, esses temas apenas servem de pretexto para abordar "um outro tema universal que é a necessidade que temos de organizar a sociedade entre nós e os outros - nós somos os judeus? ou nós somos os vizinhos? nós somos os franceses? nós somos os homens e não as mulheres? nós somos os adultos e não as crianças?" Ou, como neste prédio, metáfora perfeita do nosso mundo, nós somos os vizinhos da escada A e contra os da escada B?
Como diz Bruno Nogueira: "A peça está escrita de tal maneira que em vez de judeu podes ouvir muçulmano a peça toda, ou podes ouvir outra coisa qualquer. Porque é uma peça sobre o preconceito, acima de tudo. Perante o desconhecido, perante aquilo que é diferente, a reação que temos, por medo, é o ataque. Esse é o princípio da homofobia ou do racismo."
Miguel Guilherme interpreta o judeu que nasceu em França e que, afinal, até nem é religioso. O vizinho, Bruno Nogueira, não percebe muito bem. A mulher viu uns programas na televisão e fez umas pesquisas na internet e ficou com a ideia "que isso de ser judeu não é uma coisa muito boa". São dois homens que trocam bons dias e boas tardes, como todos os vizinhos, que mal se conhecem mas que, à partida, se odeiam.
Humor contra o fanatismo
O humor acontece, apesar da situação constrangedora. "Este é um assunto sensível mas aqui nós podemos abordar todos os assuntos sensíveis e dizer aquelas coisas que as pessoas pensam mas têm medo de dizer, porque aqui há os dois lados da moeda, o preconceituoso e o que é vítima de preconceito", explica Bruno Nogueira.
E Miguel Guilherme considera que o humor e o riso podem ser ótimos aliados nos momentos que agora vivemos, pois com eles "podemos apelar à inteligência e à solidariedade das pessoas. Se há coisa que não podemos deixar que nos tirem é o humor. Só em sociedades tolerantes, sem fanatismos, é que existe o humor."
Afinal "as fronteiras que nos separam são ténues e facilmente transponíveis, muitas vezes só é necessário criar um vínculo, um entendimento", acrescenta a encenadora. É isso que acontece ao longo da peça. Os vizinhos vão-se encontrando, uma e outra vez, apesar de haver "uma série de equívocos, pois ambos falam a mesma língua mas usam linguagens diferentes, também há momentos de redenção".
Talvez os vizinhos não sejam tão diferentes como pensavam. Como diz Miguel Guilherme: "O autor quer deixar-nos essa esperança, muito ténue, de duas pessoas tão diferentes poderem coabitar".