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Estado Islâmico leiloa meninas cristãs como “escravas sexuais |
Noah Feldman
A abolição dessa prática só ocorreu em período relativamente recente nos Estados Unidos, apesar do repúdio hoje ser consenso.
Passaram-se 150 anos desde que as leis promulgadas nos Estados Unidos permitiam que os senhores abusassem de mulheres e meninas escravas. E praticamente todas as sociedades muçulmanas modernas proibiram a escravidão no século passado. Então, por que o Estado Islâmico recua no tempo, adotando e promovendo a escravidão de mulheres da etnia yazidi, permitindo que sejam violentadas com base numa interpretação da lei islâmica clássica?
O objetivo do EI não está relacionado a dinheiro ou sexo, a finalidade é enviar uma mensagem de que vem criando uma utopia islâmica seguindo as práticas da era do profeta Maomé. Seu desejo é voltar à época dos primeiros muçulmanos e companheiros de Maomé. Quanto mais medieval a prática, mais a apreciam. Nosso horror desse novo medievalismo deveria servir como uma lição sobre a evolução de nossas crenças e o que significa ser moderno. Para começar, reconhecendo que não estamos anos-luz na frente do EI - precisamente um século e meio.
A escravidão nos Estados Unidos não está tão distante. Ainda nos defrontamos com suas sequelas na forma de uma persistente desigualdade racial e antigos símbolos da Confederação.
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Leilão e meninas |
E não devemos esquecer que a escravidão americana, particularmente meio século antes de sua abolição, foi um dos sistemas escravagistas mais brutais da história da humanidade. Comparativamente, a história da escravidão islâmica é relativamente branda.
Os escravos de ascendência africana não eram só torturados para aumentar a colheita do algodão, mas as mulheres eram submetidas a estupros sistemáticos e legais. Minha colega na faculdade de Direito de Harvard, Annette Gordon-Reed mostrou em seu trabalho sobre Sally Hemings e Thomas Jefferson exemplos ocasionais de relações mais complicadas, em parte recíprocas, entre escravas e seus senhores. Mas essas foram exceções e não a regra - cada vez mais raras na medida em que a escravidão no sul dos EUA chegava a seu clímax de brutalidade antes da abolição da escravatura.
O que, nos Estados Unidos, sancionamos em época recente, hoje consideramos repugnante. E, é claro, do ponto de vista moral agimos corretamente quando rejeitamos a escravidão e o estupro nos termos morais mais absolutos e severos. Essas ações humanas - e instituições - são totalmente erradas. Elas e suas sequelas têm de ser extirpadas na raiz, se necessário pela força.
O processo que nos leva à rejeição de nossas próprias tradições moralmente repulsivas nos torna modernos. Promovemos novas ideias que nossos ancestrais dificilmente reconheceriam - e acreditamos que nossos velhos conceitos não eram apenas errados, mas horripilantemente perversos. As pessoas modernas estão dispostas a afirmar que nós, nossos pais, e os pais dos nossos pais, pecamos. O fato de alguma coisa ser antiga e venerada não é razão suficiente para que ela seja mantida quando sua imoralidade se torna evidente.
O projeto moderno é nos purificarmos das coisas ruins do passado e ao mesmo tempo mantermos as boas. Essa tentativa de purificação e aprimoramento é que nos define como pessoas modernas.
Ao mesmo tempo, não rejeitamos tudo que está relacionado com nosso passado. A Constituição dos Estados Unidos reconheceu e ratificou as leis estaduais que criaram o regime de escravidão. Mas os americanos modernos não rejeitam a Constituição. Pelo contrário, reconhecemos que nossa Constituição é boa, em parte porque evoluiu e extrapolou suas origens.
Por isso a ideia de uma Constituição viva é tão importante para uma sociedade moderna que atua como tal. Se a Constituição fosse imutável ela abrangeria e consagraria o racismo e o sexismo da geração que a criou. Não é uma coincidência o fato de o magistrado da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, o mais eloquente defensor de uma Constituição viva, dinâmica e passível de mudanças, ter sido um veterano da Guerra Civil que foi ferido em batalha e perdeu seu maior amigo. Ele viu o país renegar elementos de seu passado constitucional; viu o preço da rejeição; e se comprometeu em sustentar o conceito de uma Constituição viva, purificada daqueles erros incluídos na sua versão original.
O casamento gay é um bom exemplo. A Suprema Corte reinterpretou a Constituição para mudar a instituição do casamento. Os juízes lutaram com esse processo de mudança, como também o país, e a luta não terminou completamente. Mas as probabilidades são muito boas no sentido de que o processo será um sucesso e a nossa Constituição mais moderna continuará a se aprimorar com o tempo.
Como pessoas modernas, sempre apostamos que as coisas melhoram quando as mudamos. Às vezes cometemos erros. Seria ingênuo achar que a história, incluindo a história moderna, é uma série de avanços gradativos. Dos excessos das revoluções francesa e russa aos horrores do fascismo e do totalitarismo, a idade moderna nos oferece inúmeros exemplos de um modernismo que não deu certo. O fato de que algo é novo e parece bom não é garantia de que é moral, como também é verdade que antiguidade não é prova de moralidade.
Mas ser moderno é também reconhecer um consenso emergente sobre a injustiça de práticas passadas como a escravidão. O Estado Islâmico está escravizando mulheres para proclamar para o mundo que rejeita aceitar a ideia do progresso contemporâneo, ideia que na verdade foi aceita pela vasta maioria dos muçulmanos. A única resposta moderna apropriada é a repugnância e o compromisso de fazer alguma coisa a respeito.
/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Noah Feldman é colunista e professor de Direito Constitucional e Internacional em Harvard
Fonte:O ESTADO DE S.PAULO