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[Em reprodução do livro-reportagem 'Into that darkness', de Gitta Sereny, Stangl aparece posando para fotógrafo em Düsseldorf] |
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Sistema da Volkswagen para vigiar funcionários na ditadura foi criado por criminoso nazista.
Em constante contato com o Dops paulista, aparelho de segurança interna da multinacional foi montado por Franz Paul Stangl, chefe do campo de extermínio de Treblinka durante o nazismo, diz relatório final da comissão.
Franz Paul Stangl, conhecido criminoso nazista que havia fugido para o Brasil após o fim da Segunda Guerra, foi o responsável pela montagem do sistema de segurança interna da Volkswagen, usado pela multinacional para vigiar e monitorar os funcionários da fábrica de São Bernardo do Campo durante o período da ditadura militar. A revelação está no relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade), entregue nesta quarta-feira (10/12) à presidente Dilma Rousseff após mais de dois anos de investigação.
No capítulo dedicado à repressão aos operários, intitulado ‘Violações de direitos humanos dos trabalhadores’, a CNV escreve que Stangl, preso no Brasil em 1967 e extraditado para a Alemanha, foi o “funcionário da Volkswagen do Brasil responsável pela montagem do setor de vigilância e monitoramento” da unidade do ABC paulista. O aparato acompanhava de perto o dia a dia da fábrica e, especialmente atento às atividades sindicalistas consideradas “subversivas”, estava em constante contato com órgãos da repressão do governo brasileiro na ditadura.
Stangl, chefe de Treblinka
Austríaco de nascimento, Franz Paul Stangl foi o comandante nazista da SS responsável por chefiar os campos de extermínio de Sobibór e Treblinka, na Polônia ocupada pelo III Reich alemão. Depois do fim da Segunda Guerra, Stangl chegou a ser preso na Áustria, mas conseguiu escapar para Roma com sua família. Ali, como tantos outros oficiais católicos da SS, obteve apoio do bispo Alois Hudal no Vaticano.
Segundo o livro Nazis on the run (“nazistas em fuga”, sem edição no Brasil), do historiador austríaco Gerald Steinacher, Stangl recebeu das mãos do bispo católico um documento de viagem como “refugiado” da Cruz Vermelha [na foto abaixo, à direita]. Com o certificado, o nazista chegou a passar pela Síria antes de desembarcar no Brasil, em definitivo, em 1951. No consulado austríaco em São Paulo, o fugitivo, embora fosse criminoso mundialmente procurado, registrou-se com seu nome original e passou a viver legalmente no país, sem alterar a identidade, a partir de 1954.
A historiadora austríaca Gitta Sereny, no livro-reportagem No meio das trevas (Editora Otto Pierre, 1981), que conta a história de Stangl, diz que, embora a Volkswagen seja geralmente citada como uma das
empresas que “fornecia ‘cobertura’ a fugitivos nazistas”, não há como provar que a montadora agiu de má fé ao empregar Stangl — o nazista só conseguiu o trabalho em outubro de 1959, após oito anos de uma vida modesta no Brasil, ela argumenta. Para Sereny, é mais provável que Stangl tenha sido indicado para o cargo por sua esposa Theresa, que batia ponto na Mercedes-Benz.
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[Imagem do documento da Cruz Vermelha, em italiano, entregue pelo bispo Hudal de Roma a Franz Paul Stangl] |
Por outro lado, a historiadora aponta que não houve movimentos, nem por parte das autoridades, nem por parte da multinacional alemã, para investigar o caso, no mínimo, suspeito. “Parece que a ‘Lista dos Procurados’ nunca foi checada pelo consulado austríaco em São Paulo, embora seu nome figurasse por lá desde 1964. E aparentemente nem uma pessoa sequer na Volkswagen procurou fazer qualquer pergunta, muito embora tanto seus colegas de trabalho quanto seus chefes pelo menos sabiam o nome de Stangl e presumivelmente liam os jornais”, afirma Gitta Sereny.
Stangl foi preso na noite de 28 de fevereiro de 1967 em uma operação do Dops comandada pelo delegado José Paulo Bonchristiano, ex-chefe da Divisão de Ordem Política do órgão. A polícia política paulista — que posteriormente usou a operação para se defender das acusações de que “só prendia comunistas” — foi informada do paradeiro do criminoso internacional por Simon Wiesenthal, conhecido “caçador de nazistas”. “Se eu fosse entregue aos judeus estava perdido”, ainda teria dito após a captura Stangl ao delegado do Dops, referindo-se ao serviço secreto de Israel, segundo reportagem de Marcelo Godoy no Estadão.
Após ser extraditado para a Alemanha, Stangl foi julgado pelo assassinato em massa de 900 mil pessoas e condenado à prisão perpétua em dezembro de 1970. No fim da vida, admitiu os crimes, mas ressalvou: “Minha consciência está limpa. Estava apenas cumprindo meu dever”. Franz Paul Stangl morreu na prisão em 28 de junho de 1971 enquanto ainda apelava da sentença.
*Felipe Amorim e Rodolfo Machado