por Angelo Adriano Faria de Assis*
ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.
Resumo: Em 1497, os judeus portugueses foram convertidos à força e
transformados em cristãos-novos. Apesar disto, uma considerável leva
destes antigos judeus continuou a praticar o judaísmo e a repassar seus
ensinamentos às novas gerações, adotando comportamentos e práticas
marranas. A partir de 1536, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição,
perseguiria hereges, principalmente os cristãos-novos, suspeitos de
manter práticas judaicas. Hoje, não pode ser desconsiderado o número de
indivíduos que afirmam ter laços de parentesco com os antigos
cristãos-novos e que procuram retornar à religião dos antepassados
distantes. Este trabalho tem por objetivo analisar o fenômeno marrano no
Brasil desde o período colonial até os nossos dias, buscando perceber
sua influência em nossa religiosidade, tanto entre os cristãos-novos,
quanto na atualidade, onde a ascendência marrana ganhou ares de
prestígio.
Palavras-chave: marranos, criptojudaísmo, Inquisição no Brasil.
Résumé: A 1497, les juifs portugais ont été convertis à la force et
transformés dans des nouveaux-chrétiens. Malgré ça, une considérable
partie de ces anciens juifs a continué à pratiquer le judaïsme et à
repasser leurs enseignements aux nouvelles générations, en adoptant
comportements et pratiques marranes. A partir de 1536, le Tribunal du
Saint Office de l'Inquisition, poursuivrait des hérétiques,
principalement les nouveaux-chrétiens, suspects de maintenir des
pratiques judaïques. Aujourd'hui, ne peut pas être déconsidéré le nombre
de personnes lesquelles affirment avoir des lacets de parentèle avec
les anciennes nouveaux-chrétiens et que cherchent retourner à la
religion des ancêtres. Ce travail a l’objectif d’analyser le phénomène
marrane au Brésil depuis la période coloniale jusqu'à nos jours, en
cherchant percevoir son influence dans notre religiosité, de telle façon
entre les nouveaux-chrétiens, combien dans l'actualité, où l'ascendance
marrane a gagné des airs de prestige.
Mots-clé: marranes, criptojudaísmo, Inquisition au Brésil.
Marrano é a palavra utilizada, em seu sentido original, para designar os
suínos na língua hispânica. Também serve para identificar o é sujo,
porcalhão, baixo, vil. No Gran Diccionario da la lengua española (1995:
1269), encontramos a seguinte definição:
ma.rra.no, (-a) [marráno, a] I.
s/m,f 1. Cerdo. 2. Se aplicaba antiguamente al judío converso que
practicaba secretamente su religión. II. adj. y s/m,f COL 1. Se aplica a
las personas sucias. 2. Persona que se porta vil o innoblemente. (...)
SIN I. 1. Puerco, cochino, cerdo. II. 1. Sucio, desaseado, puerco, cochino, cerdo. 2. Vil, indecente, despreciable.
ANT II. 1. Limpio. 2. Noble, Bueno.
* Professor Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa; Doutor em
História pela Universidade Federal Fluminense. Agradeço À FAPEMIG pelo
auxílio para a apresentação do trabalho.
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Na língua portuguesa, encontramos definições semelhantes nos dois mais
importantes dicionários brasileiros, Aurélio e Houaiss. O Dicionário
Aurélio Século XXI (1999: 1290) assim define o termo:
marrano. [Do esp. marrano] Adj. S.m. 1. Diz-se de, ou designação
injuriosa dada outrora aos mouros e judeus. 2. Diz-se de indivíduo
excomungado, sujo, imundo, porco. 3. Bras. RS Diz-se de ou gado ruim.
marrão1. [Do ár. muharram, ‘proibido’, alusão à interdição da carne de porco no islamismo: cf. etim. de harém.]
Pelo Dicionário Houaiss (HOUAISS, 2001: 1858), encontramos definição
semelhante: “na Espanha e em Portugal, designação injuriosa que se dava
outrora aos mouros e esp. aos judeus batizados, suspeitos de se
conservarem leais ao judaísmo”. E ainda: “porco de engorda, já
crescido”, “cristão novo”, “designação pejorativa dada, na Espanha, aos
judeus e mouros convertidos, suspeitos de se conservarem fiéis às suas
antigas religiões por causa da repugnância em relação à carne do porco,
alimento não permitido pelo judaísmo e pelo islamismo”. A expressão
encontra suas origens no árabe “muharram ‘coisa proibida’”. Já Elias
Lipiner (LIPINER, 1999: 166-167), dá explicação mais específica:
“não são os que sinceramente adoptaram o catolicismo, comportando-se
como os ‘cristãos lindos’, mas unicamente os que, embora baptizados,
continuavam amarrados à sua lei e a seus rabinos, marrando (dando
marradas, cornadas) na lei nova”.
Como se vê, o termo está ligado a conjunturas específicas do mundo
hispano-lusitano, reflexo das raízes históricas em comum existentes
entre os dois lados da fronteira ibérica. Apresenta, desde o princípio,
quando aplicado a seres humanos, sentido fortemente pejorativo e de
repugnância social, atuando como um dos elementos lingüísticos que
marcam o limite entre o que é igual, e por isso aceitável, e o que é
diferente, e consequentemente desprezível. De forma mais específica, o
termo marrano serviu, durante a modernidade, para definir os antigos
judeus convertidos ao cristianismo e seus descendentes, também
denominados cristãos-novos, batizados em pé, gente da nação,
neoconversos, conversos. É bem provável que o termo tenha origens na
desordem popular, incentivada ao massacres de judeus nos tempos
anteriores à Reconquista de Espanha. Mas, antes da conversão em fins do
século XV nos dois lados da Ibéria, os judeus construíram um longo
histórico de convivência na região.
A presença dos hebreus na Península Ibérica encontra seus primórdios na
Antigüidade. Data do século III d.C. o mais antigo documento escrito
conhecido sobre a presença dos 2
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judeus na região: uma lápide, adornada com caracteres hebraicos,
encontrada na cidade espanhola de Adra, localizada na região da
Andaluzia, às margens do Mediterrâneo. Já para Portugal, o documento
escrito mais antigo de que se tem notícia é do século VI - uma lápide
funerária, encontrada na região de Espiche, perto de Lagos, no Algarve.
Com a chegada dos mouros, a Ibéria ficaria conhecida como Sepharad, a
Espanha das três religiões (Portugal aí incluído, bem antes da criação
do reino no século XII sob a espada de Afonso Henriques), que conviviam
em harmonia não encontrada na mesma intensidade em outros espaços da
Europa. Embora algumas cidades tanto hispânicas quanto portuguesas
estabelecessem leis e comportamentos para a permanência dos judeus em
seus limites, como a criação de judiarias, limitações de circulação fora
dos horários definidos, cobrança especial de taxas e impedimento à
realização de trabalhos e ocupação de cargos, em linhas gerais, o
convívio entre judeus e cristãos dava-se sem maiores problemas, nem
sempre obedecendo aos rigores cobrados pela lei. Em Portugal, por
exemplo, era comum judeus morando fora das judiarias e cristãos que
residiam em espaços destinados aos judeus, sem que isso gerasse maiores
escândalos. Convívio harmônico ao ponto de alguns monarcas denominarem
os judeus portugueses como “meus judeus”, prova da sujeição do grupo
perante a Coroa e, ao mesmo tempo, da proteção real de que desfrutam
(FERRO TAVARES, 2000: 11-19), posto constituírem importante fonte de
riqueza tributária, recebendo, em conseqüência, “favores, proteção e
amparo”.
O fenômeno marrano no mundo ibérico tem origem com os processos de
conversão ao catolicismo dos antigos judeus que, até fins do século XV,
conviveram durante séculos em condições de liberdade religiosa e
aceitação social tanto na Espanha quando em Portugal. Nestes dois
reinos, porém, apesar do longo histórico de presença judaica veríamos,
de acordo com especificidades próprias, processos que levariam à
expulsão dos judeus e à implementação do monopólio católico, levando
milhares de indivíduos que não concordavam em abraçar o cristianismo e
abandonar a religião em que acreditavam ao exílio forçado.
Na Espanha, a deterioração sofrida no processo de aceitação do judeu na
sociedade hispânica, refletida nas crescentes ondas de violência, daria
sinais evidentes das mudanças em vigor: no ano de 1328, ocorreriam
seguidos assaltos às judiarias na região de Navarra. Vinte anos mais
tarde, seriam atacadas várias sinagogas na região da Catalunha, momento
em que os carrascos aproveitavam para justificar a barbárie praticada
acusando os judeus pela Peste Negra que então grassava. Cerca de duas
décadas depois, novos incidentes ocorreriam: em 1367, uma leva de
ataques atingiria as aljamas de Villadiego e Aguilar de Campos e, no ano
de 1369, a destruição da aljama de Toledo (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994: 56).
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Mais graves ainda seriam os conflitos e perseguições aos descendentes de
Israel iniciadas em 1391, incentivadas por mais de uma década pelo
fanatismo de alguns setores do clero, principalmente na figura de Fernán
Martínez, Arquidiácono em Sevilha, homem de destaque junto ao clero e a
Corte, e que não pouparia argumentos que incentivassem os cristãos em
direção ao massacre, afirmando que “um cristão que fizesse mal ou
matasse um judeu não iria causar nenhum desprazer ao rei e à rainha,
pelo contrário” (POLIAKOV, 1996: 132). Apesar de desautorizado pelo rei,
sua pregação estimularia perseguições sangrentas que durariam de 1391 a
1414, aproximadamente. Os violentos ataques colaborariam diretamente
para a diminuição do número de judeus na Espanha, levando os
sobreviventes a emigrar à procura de condições mais seguras de vida ou
incentivar as conversões, que ocorreram em massa e que eram incentivadas
pelas pressões oficiais, que reservavam aos que insistissem na
manutenção judaica a reclusão em bairros especiais e a utilização de
distintivos de identificação, enquanto os que aceitassem a conversão
ganhavam vantagens especiais, como o direito a receber de imediato a
parte que lhe cabia da herança dos pais judaicos.
A convivência com aqueles que perseveravam em manterem-se fiéis ao
judaísmo tornava os conversos espanhóis vítimas generalizadas de
acusações sobre a falsidade de sua aceitação cristã, vista como ameaça à
pureza católica por aqueles que não concordavam com a sinceridade das
conversões em massa dos antigos judeus, gerando conflitos entre os
grupos. A instauração do Tribunal da Inquisição na Espanha, a partir de
1478, tornaria o quadro ainda mais conflituoso: até 1492, quando se
daria a expulsão dos judeus do reino, conviveriam em território
hispânico mouros, judeus, cristãos e judeus e mouros convertidos ao
cristianismo.
Em 1492, os reis católicos Isabel e Fernando complementariam o processo
de conquista e unificação do reino com a retomada de Granada, servindo a
fé cristã como elemento de união nacional. Expulsos da Espanha,
partiriam, de acordo com suas possibilidades pessoais, para regiões em
que ainda eram aceitos - França, Inglaterra, Alemanha, Países Baixos,
Constantinopla, Norte da África. Para muitos, a proximidade com Portugal
funcionaria como atrativo para os judeus que resolveram recomeçar a
vida no território vizinho, onde encontrariam proteção sob o reinado de
D. João II (1481-1495).
A situação outrora favorável aos judeus em Portugal começaria a
agravar-se em conseqüência dos acontecimentos na outra borda da
fronteira ibérica. A entrada dos fugitivos, todavia, seria negociada, de
modo a garantir lucros e vantagens para Portugal. O monarca português
aceitaria a entrada dos judeus, mas limitando a residência a 600
famílias, mediante pagamento de taxa per capita, e a garantia de que
deixariam o país no prazo de oito meses,
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sob pena de escravização para os relutantes. Vencido o prazo, muitos
partiram, e outros permaneceram no reino e foram escravizados, vendidos
ou doados pelo rei.
Com a chegada ao trono de D. Manuel, o novo monarca suspenderia os
decretos de escravização, ciente da importância do grupo para seus
interesses expansionistas do reino. As alianças políticas com a Espanha,
contudo, tornar-se-iam decisivas na mudança da atitude real com os
judeus. Os acordos com os Reis Católicos que levariam D. Manuel a
contratar núpcias com a infanta hispânica impunham a expulsão dos
hebreus de Portugal do modo como ocorrera poucos anos antes no lado
espanhol, fixando em dez meses o prazo para a partida. No período de
tempo entre as decretações e o prazo máximo estipulado para a partida,
algumas medidas seriam tomadas no ensejo de convencer à adoção
voluntária do cristianismo por uma considerável parcela de judeus,
garantindo-lhes determinadas vantagens, segurança e a oportunidade de
permanecer no reino. Entre os dramáticos atos governamentais contra os
judeus estaria o decreto obrigando a retirada das crianças judias até a
idade de catorze anos da posse dos pais, para que fossem batizadas e
confiadas a famílias cristãs, encarregadas doravante pela educação e
catequização dos pequeninos.
Apontado o porto de Lisboa como local da partida, uma imensa leva
calculada em mais de vinte mil pessoas se amontoaria esperando
transporte. Ao invés de embarcarem para deixar o reino, seriam batizados
à força e transformados em cristãos - cristãos-novos -, concedendo
sucessivos prazos de adaptação à nova fé, deixando-lhes livres de
qualquer inquirição sobre o comportamento religioso que mantinham,
coibindo qualquer tipo de discriminação pública contra o novo grupo.
Inegável, porém, que considerada parcela de neoconversos mantinha
práticas judaicas, sendo então denominados judeus ocultos ou
criptojudeus, e apontados como principais ameaças ao catolicismo em
Portugal. Contudo, cabe lembrar que a existência do criptojudaísmo segue
especificidades e características que variam no tempo e no espaço. Em
primeiro lugar, salientemos que nem todo cristão-novo era de fato
criptojudeu: muitos, de fato, buscaram aceitar a nova religião e
adaptarem-se à nova realidade que lhes permitiria a presença em
território luso. Há exemplos de neoconversos que se transformaram em
fervorosos defensores do catolicismo, procurando convencer os que não
aceitavam a conversão forçada a abandonarem a lembrança da antiga
crença. Outros, por sua vez, seguiam o caminho contrário, insistindo em
manter a antiga crença de maneira particular: leituras de textos
sagrados que mantinham ocultamente, orações; jejuns; memórias passadas
oralmente de pais para filhos práticas alimentares; desprezo aos
símbolos cristãos; bênçãos especiais; uso de nomes e signos
compreensíveis apenas aos conhecedores dos costumes hebraicos;
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hábitos mortuários ao modo dos judeus; ensinamento da língua hebraica
ou, pelo menos, de orações na língua dos antepassados; guarda dos
sábados, enfim, um sem-número de práticas e costumes que cada um, ao seu
modo, de acordo com o interesse e as possibilidades de manter as
antigas tradições que possuíam. Com o passar dos anos e com as novas
gerações, já nascidas e criadas publicamente em monopólio católico,
estas práticas continuavam a sofrer alterações e mudanças, por um lado,
diminuindo sua intensidade e, por outro, buscando encontrar meios de
ocultar sua ocorrência, fazendo com que a prática marrana ganhasse
variações que, no limite, chegavam ao infinito, visto que cada marrano
mantinha uma fé particular, comportando-se do modo que construíam sua
crença individualmente e das particularidades que seu caso permitia. Em
comum, mantinham o fato de serem vítimas da desconfiança geral, temendo,
a qualquer momento, uma denúncia de conhecidos ou anônimos, ou mesmo a
infelicidade de ser observado em alguma prática que julgavam realizar em
segredo, ou cair em contradição perante cristãos mais observadores das
práticas religiosas de cada um. Carregavam a pecha de ser o outro numa
sociedade que, apesar de tê-los obrigados a aceitar o cristianismo, não
os aceitava como cristãos.
A manutenção de comportamentos atrelados ao judaísmo não passaria em
branco para os representantes da Igreja, e implantação da Inquisição a
partir de 1536 teria como principal justificativa a ameaça que os
cristãos-novos judaizantes representavam para a pureza católica.
Principal justificativa e principais vítimas. Foram os casos de suspeita
de criptojudaísmo que mais encheram as páginas de documentos da
Inquisição portuguesa, formando a maior parte dos processados e vítimas
fatais do tribunal durante seus duzentos e oitenta e cinco anos de
funcionamento. Tanto é que a extinção da diferença entre cristãos velhos
e novos durante o período pombalino, na segunda metade do século XVIII –
além de outras medidas igualmente importantes -, mergulharia a
Inquisição num período de estagnação que culminaria, em 1821, com a
extinção, em meio à leva liberalista da Revolução do Porto.
No Brasil, o fenômeno marrano é desvelado, com mais força, a partir da
primeira visitação inquisitorial ao Brasil, entre 1591 e 1595. As
denúncias de criptojudaísmo formaram o mais extenso rol das acusações
feitas à mesa do visitador: encontram-se, dentre os comportamentos
denunciados, a ocorrência de práticas diversas: manutenção de sinagoga
clandestina, ou esnoga; posse de livros e textos sagrados dos judeus,
permitindo a continuidade até certo ponto do letramento religioso, assim
como a transmissão dos costumes aos descendentes oralmente; a
existência de uma série de tradições domésticas; a esperança messiânica
da salvação para os judeus; os jejuns; as refeições próprias; as orações
com guaias; circuncisões; realização do shabat e tantos outros costumes
que moldam a identidade judaica.
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Destaque especial para o papel de frente na propagação da fé dos
antepassados exercido pelas mulheres, grandes responsáveis pela
continuidade e ensinamento do judaísmo aos filhos a partir do lar, onde
exerciam a função de mães, educadoras, rabinas. Não foram pouca aquelas
acusadas de transmitirem os costumes dos antepassados aos filhos,
fazendo questão de preservar em família a fé que fora arrancada por
decreto. Como Ana Rodrigues, matriarca dos Antunes que vivia em Matoim,
no Recôncavo da Bahia, das mais denunciadas na primeira visitação e que,
apesar de seus mais de oitenta anos, não ficaria livre de ser presa e
enviada para os cárceres do Santo Ofício, onde faleceria cerca de dois
meses depois. Apesar de morta, o processo continuaria, sendo considerada
após uma década culpada, tendo os seus ossos desenterrados e feitos em
pó pelo fogo. Tornava-se – miserável glória - a primeira vítima
condenada à fogueira dos casos oriundos do Brasil (ASSIS, 2004).
Também na segunda visitação, que percorreria a mesma Bahia entre 1618 e
1621, vários outros casos de mulheres, homens e até crianças acusadas de
judaizar em segredo chegariam ao conhecimento do visitador, sinal de
que o judaísmo mantinha sua sobrevida entre os que não aceitavam a fé
imposta.
E o que pensar do que ocorreu em Pernambuco, algumas décadas depois,
durante o período da presença holandesa, em meados do Seiscentos, quando
foi tolerada a prática do judaísmo? Alguns cristãos-novos, com a
chegada de judeus de Amsterdam, abandonariam publicamente o catolicismo,
fariam circuncisões, freqüentariam as sinagogas do Recife,
assumir-se-iam como judeus. E depois da expulsão dos holandeses, os que
não puderam migrar para os Países Baixos, voltavam à rotina de
proibições, novamente amordaçados pelos grilhões do catolicismo, temendo
a punição – que de fato ocorreu para alguns – da Inquisição. Embora
alguns dos que foram para a Holanda em busca de retornar à antiga fé e
de serem aceitos na comunidade, tenham se integrado ao judaísmo, houve
casos de indivíduos que acabariam por não se identificarem com os
costumes judaicos, fazendo um segundo retorno, agora ao cristianismo:
era o retorno do retorno (VAINFAS, 2008).
Entre os estudiosos brasileiros da Inquisição e de suas vítimas no mundo
ibérico e seus domínios, muitos já foram os que procuraram analisar o
marranismo e suas dimensões. Destaque inicialmente para os estudos de
Anita Novinsky, que tem em seu clássico Cristãos novos na Bahia
(NOVINSKY, 1972) um dos trabalhos inaugurais sobre o assunto. Ao longo
de sua produtiva carreira, a Professora Anita tem-se mostrado incansável
na recuperação da história dos marranos que enfrentaram as agruras das
perseguições levadas a cabo pela Inquisição, e incentivado levas de
pesquisadores a procurarem histórias esquecidas na documentação
depositadas nos arquivos da Inquisição portuguesa. A ela, juntaram-se, a
partir
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nas décadas de 1960-70, pesquisadores que usavam as fontes
inquisitoriais em suas análises, como, Elias Lipiner (LIPINER, 1969),
José Gonçalves de Salvador (SALVADOR, 1976), e José Antônio Gonsalves de
Mello (MELLO, 1996). Nos anos 1980, estudos mais afinados com os novos
rumos da historiografia utilizaram as fontes do Santo Ofício para lançar
um olhar diferenciado sobre a cultura e o cotidiano coloniais. É o caso
de pesquisadores como Laura de Mello e Souza (SOUZA, 1986), Ronaldo
Vainfas (VAINFAS, 1989, 1995 e 1997), Luiz Mott (MOTT, 1993), entre
outros.
A partir da década de 1990, novos estudiosos têm defendido dissertações e
teses nas universidades brasileiras. E não são poucas. Vide, a título
de exemplo, os trabalhos defendidos por Lina Gorenstein da Silva
(GORENSTEIN DA SILVA 1999), Carlos Eduardo Calaça (CALAÇA, 1999),
Daniela Calainho (CALAINHO, 2000), Suzana Santos (SANTOS, 2002), Célia
Tavares (TAVARES, 2002), Angelo Adriano Faria de Assis (ASSIS, 2004),
Fernando Vieira (VIEIRA, 2007), Janaína Guimarães Silva (SILVA, 2007) e
Reginaldo Heller (HELLER, 2008). Em comum, o interesse em compreender a
mentalidade inquisitorial, a sociedade luso-brasílica, a questão dos
cristãos-novos e suas especificidades a partir de documentação
riquíssima e indispensável aos estudiosos do assunto.
Atualmente, o fenômeno marrano no Brasil ganha outros contornos. O
crescente número de trabalhos e pesquisas acadêmicas, além de estudos e
livros escritos por não historiadores faz com que o tema se torne
presença constante entre os estudiosos de religião e do Brasil colonial.
Não raro, encontra-se, principalmente no Nordeste do país, onde a
presença criptojudaica se fez mais forte durante os primeiros séculos de
ocupação portuguesa, indivíduos que se dizem descendentes de
denunciados e/ou processados pelo Santo Ofício. Não são poucos os que
afirmam ser parentes distantes, por exemplo, de Branca Dias, célebre
senhora judaizante que mantinha escola para preparar moçoilas para
conseguirem bons casamentos na segunda metade do século XVI em
Pernambuco, personagem histórica que já foi retratada em romances, peças
de teatro, lendas e outras formas de representação popular.
Identificados com o parentesco judaico do passado, muitos procuram o
retorno, mas nem sempre são aceitos como esperavam na comunidade judaica
tradicional. É o que se pode ver no filme A estrela oculta do sertão,
que conta, dentre outras histórias de resistência marrana, o esforço de
um jovem que procura afirmar sua identidade judaica realizando seu
retorno ao judaísmo, mas não recebe a aceitação que pretendia na
tradicional comunidade judaica paulista, onde não era visto como igual
pelos judeus deste grupo. Assim como os antepassados, vivenciam o drama
do homem dividido retrata por Novinsky, agora ao avesso: judeus não
aceitos na comunidade por não ser considerado como um deles.
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O certo é que, recolhendo a experiência marrana para tentar entender sua
própria relação com a religião que um dia pertenceu à sua família,
colaboram para manter viva a memória das práticas judaicas. Recuperando
suas histórias e de suas famílias, acabam por desbravar a história do
Brasil, que teve cristãos-novos batizados de pé em suas origens, desde
as viagens inaugurais de 1500. Como os criptojudeus, embora não precisem
mais do manto do segredo, são também responsáveis pela sobrevivência da
crença dos antepassados.
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nas letras: as apropriações da cristã-nova Branca Dias na literatura”.
Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2007.
O mais triste e até patético, é vermos hoje em dia, criaturas que possuem sangue judeu em suas veias, se comportando como antissemitas ferrenhos. Seus sobre nomes, -com raríssimas exceções- podem ser iguais aos de católicos natos, que foram adotados por esses novos cristãos. Mas, se esses mesmos cristãos novos pesquisarem os costumes de seus antepassados (Por duas ou três gerações) e notarem que praticavam costumes estranhos, como o acender velas na sexta feira a noite, que pronunciavam algumas palavras que lhe soam estranhas num idioma desconhecido, beijar o umbral da porta como se lá houvesse uma "Mezuzá" invisível ou não comer carne de porco ou de peixes sem escamas, realizar algum tipo de ritual de purificação das mãos antes das refeições, etc.. Isto será um sinal inequívoco de sua descendência judaica; Portuguesa ou Espanhola.
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