Jacques Gruman/Especial para ASA
Sem muita sutileza, somos convidados a desistir de pensar.
Faz falta um censo da comunidade judaica do Rio de Janeiro. Passam-se as gestões da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro e nenhuma se compromete com esse levantamento sócio-demográfico, ferramenta essencial para facilitar o planejamento das entidades judaicas.
A alegação de escassez de recursos não se sustenta. Quando há necessidade e empenho, surgem doadores e os objetivos se viabilizam.
Na realidade, o que falta é vontade política.
Pesquisas de opinião também estão fora do horizonte comunitário. Quem sabe o que pensam os judeus cariocas? Ninguém, honestamente, sabe responder a isto.
Carentes de um conhecimento objetivo sobre seu público-alvo, as lideranças judaicas falam no vazio, baseadas em especulações e/ou interesses paroquiais.
Também sou vítima da falta de informação qualificada sobre a cartografia opinativa dos judeus cariocas. No entanto, tenho percebido algumas tendências que me preocupam, e, sem qualquer pretensão de rigor conceitual ou científico, gostaria de compartilhar essas observações.
Começo pelo que chamo de abraço conservador. Faz tempo que meios de comunicação judaicos, ao lado de instituições comunitárias, estendem tapete vermelho para o que há de mais reacionário na intelectualidade brasileira. A direita mais estridente, mais alérgica ao diálogo, tem amplo acesso a esses espaços, onde é recebida com entusiasmo. Em muitos casos, apenas porque se coloca, salivando raivosamente, ao lado de Israel. Ao mesmo tempo, os setores que ousam discordar dessa corrente são colocados num index prohibitorum e imediatamente rotulados como antissemitas ou judeus traidores. O deputado Jair Bolsonaro, um dos mais abomináveis quadros políticos da direita, caloroso advogado da ditadura militar brasileira, provocador barato e tribuno obscurantista contra os homossexuais, chegou a ser convidado para uma mesa de debate no clube Monte Sinai. Motivo? Um discurso pró-Israel que havia feito no Congresso. O fato de ter sido desconvidado após pressões de gente constrangida (felizmente, parece haver um limite para o adernamento à direita) não muda a essência: Bolsonaro tem pedigree aceitável para frequentar um ambiente judaico. Como judeu e brasileiro, isto me envergonha.
Comportamento falangista
A adesão incondicional a Israel virou um mantra, amplamente repetido com muitas variantes. O atual presidente do clube Monte Sinai, por exemplo, divulgou uma Carta Aberta onde, a propósito dos acontecimentos recentes em Gaza, lamenta a existência de posições dissonantes na comunidade judaica do Rio (!) e defende um alinhamento incondicional com o Estado judeu. Sem muita sutileza, somos convidados a desistir de pensar. Esta linha também se aplica a matérias reproduzidas por jornais comunitários virtuais. Comportam-se como correias de transmissão dos governos israelenses, quaisquer governos, não raro defendendo o militarismo puro e duro. Criam uma imagem mistificada de Israel, apresentado como agente incorruptível de todas as virtudes. Nesta cruzada de jornalismo chapa branca, filtram o que parece desconfortável e agridem o mais elementar direito de informação. No dia 16 de agosto, cerca de 10 mil manifestantes se reuniram na Praça Rabin, em Tel Aviv, protestando contra a operação militar israelense em Gaza e defendendo a retomada do diálogo com os palestinos. Promovido por partidos e movimentos sociais de esquerda, o ato teve a presença do escritor David Grossman, muito popular dentro e fora de Israel. Grossman perdeu um filho em 2006, na guerra contra o Hezbolá. Tornou-se um ativo pacifista. Jornais comunitários ignoraram esta importante manifestação de massa. Tal como continuam ignorando as notícias sobre crescentes agressões contra árabes e militantes de esquerda, repercutidas em posts odiosos na internet e denunciadas pelo escritor A. B. Yehoshua. É a síndrome de Ricúpero: o que é bom a gente fala, o que é ruim a gente esconde.
Esse clima ufanista e desinformado gera filhotes monstruosos. O pior dos monstrengos é uma visível intolerância ao dissenso. No início de agosto, aconteceu uma passeata em Copacabana “em defesa de Israel”. Um jovem judeu levava um cartaz pedindo o fim da ocupação dos territórios palestinos, quando foi agredido pelo vereador Marcelo Arar (PT/RJ). O cartaz foi rasgado. Havia um clima de hostilidade contra outros jovens que não se limitavam a reproduzir as palavras de ordem dos organizadores. É o comportamento falangista que transborda as redes sociais e invade a vida real. Lembram o clima de ofensas e instigação que antecedeu ao assassinato de Itzhak Rabin, em 1995? O primeiro-ministro era retratado, em manifestações da direita, como traidor do judaísmo, e aparecia em cartazes com uniforme nazista. Muitos analistas concordam que aquela atmosfera ajudou a armar o braço de Yigal Amir, o assassino. Guardadas as devidas proporções, pode-se ver, em nossa vizinhança, como a intolerância nutre sentimentos de ódio e, no limite, flerta com a violência. Vade retro.
O setor progressista é alvo da fúria deste conservadorismo exacerbado. Às vezes, usam a mentira. Como aconteceu quando a ASA foi levianamente “acusada”, num jornal virtual, de ter defendido Sadam Hussein em passeata contra a iminente invasão do Iraque, em 2003. Chegaram a publicar uma foto como “prova” da acusação. O que aparecia na foto? Uma faixa, carregada por manifestantes ligados à ASA, onde se lia “Judeus progressistas contra a guerra”. Distribuímos um panfleto criticando a ditadura de Hussein, mas repudiando a aventura militar que se avizinhava, baseada numa rede de mentiras. Às vezes, usam a ofensa. Gente perturbada, impermeável às diferenças, usou a internet para agredir a ASA com xingamentos quando divulgamos um comunicado sobre os últimos acontecimentos em Gaza. São pessoas despreparadas para a democracia, nostálgicas dos guetos. Que influência têm sobre a chamada rua judaica? Ninguém tem a resposta, mas seria bom começar a procurá-la. Quem sabe uma boa oportunidade para reflexão seja o Rosh Hashaná que se aproxima. Embora ateu, aprecio alguns símbolos que vêm da tradição religiosa. Um deles é a parada para balanço sugerida para o intervalo do Rosh Hashaná ao Iom Kipur. Tira-se o pé do acelerador e abre-se espaço para avaliações. Eu convido você, caro leitor, a utilizá-lo para um dedo de prosa com esses ruídos pouco alentadores que apontei.
Jacques Gruman é diretor da ASA e colaborador deste Boletim.