
Durante décadas alimentou-se a lenda no mundo do futebol que o Ajax é um clube com DNA judeu. O gigante de Amesterdam é o reflexo da Holanda do pós-II Guerra Mundial, um país marcado pelo trauma humano do Holocausto.
O clube dos sobreviventes
Durante um jogo na Arena de Amesterdam é habitual ouvirem-se gritos da torcida oficial do Ajax, a F-Side, incitando os jogadores ao som de “Judeus, Judeus, Somos Super Judeus”. Olhando para o relvado é dificil entender o que querem dizer. A esmagadora maioria dos jogadores é de origem caribenha ou africana. E os restantes, parecem-se muito mais ao que entendemos como holandês típico. Dificilmente há um jogador de ascendência judaica no plantel do clube nos dias que correm. Uma realidade que dura há largos anos. Mas o cântico, esse, continua igual.
A lenda do Ajax como um clube judeu remonta aos anos sessenta. A chegada ao clube de vários orfãos do Holocausto deu-lhe um sopro inesperado de vida. O clube de Amsterdam sempre foi um dos grandes do futebol holandês. Ganhava títulos nos anos vinte e conseguia encher o estádio Olímpico, construído para os Jogos de 1928, com mais de sessenta mil adeptos antes da II Guerra Mundial. Muitos eram judeus. Mas a maioria não. Em campo só meia dúzia de futebolistas tinham ascendência judaica. A maioria dos jovens filhos da imensa comunidade judia na cidade jogavam em outros clubes, mais modestos. O Ajax era a equipa da burguesia comercial, das grandes fortunas. E os judeus da cidade, os que habitavam o bairro típico construído aquando da inesperada chegada de milhares de judeus portugueses expulsos por D. João III à cidade. Desde então a comunidade hebraica na cidade tornou-se parte do seu DNA. Muitos dos que chegaram nos barcos que saíram do Porto e de Lisboa eram os antepassados daqueles que viviam na cidade quando a II Guerra Mundial começou. Poucos sobreviveram ao drama do Holocausto. Os poucos que voltaram com vida ou os que se conseguiram esconder das purgas e deportações encontraram no único clube sobrevivente da cidade uma nova família.
Caransa, o judeu que patrocinou a idade de ouro do Ajax
Maup Caransa era um desses órfãos da guerra. Perdeu toda a família – dezenas de pessoas – nos campos de concentração na Polônia. Ele foi resgatado antes de entrar num dos malditos comboios rumo aos campos e sobreviveu só durante os anos da guerra, escondido. Ainda não era um adolescente. Quando a guerra terminou, começou a trabalhar como comerciante de óleo. Aos vinte e cinco anos já era um dos homens mais ricos da cidade. Investiu em propriedades, muitas das quais pertenciam a famílias judias que tinham sido completamente exterminadas durante a guerra. Era um de muitos homens de negócios da nova Holanda saídos do pesadelo do Holocausto sem nada nem ninguém. Era também um apaixonado pelo futebol e rapidamente decidiu investir parte da sua fortuna no Ajax. Tinham passado quinze anos desde o final da guerra e nesse período de tempo o Ajax tinha ganho alguns campeonatos com o inglês Vic Buckingham ao leme. Mas o clube era ainda semiprofissional e dificilmente podia ambicionar dar o salto a outro nível sem dinheiro. Era o que Caransa tinha de sobra.
O empresário judeu – que como muitos outros tinha rejeitado a ideia de mudar-se para Israel no fim da II Guerra Mundial – associou-se com os irmãos van der Meijdens (que não eram judeus), para dinamizar a vida do clube. Graças à sua influência, conseguiram eleger a Jaap van Praag, o primeiro presidente judeu da história do clube. Mais de sessenta anos depois da sua fundação. A lenda do DNA judeu chocava com a realidade. Mas graças ao dinheiro de Caransa, à influência de Freek e Wilk van der Meijdens e à liderança d evan Praag, o Ajax transformou-se na superpotência do futebol holandês. O dinheiro injetado permitiu a Rinus Michels, o novo treinador, garantir que a talentosa geração que tinha nas mãos se podia dedicar exclusivamente ao futebol. O fisioterapeuta da equipe, o também hebreu Salo Muller, recebeu finalmente o equipamento médico que pedia há vários anos. E as obras de melhora no estádio permitiram recuperar grande parte dos números de assistências da equipe.
Em dez anos o Ajax ganhou tudo o que havia para ganhar. Mais de uma vez. A época do Futebol Total, de Johan Cruyff (que muitos julgavam ser judeu tal era a sua identificação com Caransa e a comunidade) tornou-se para os adeptos dos clubes rivais a época da “judaização“ do clube. E assim nasceu o mito holandês do Caransajax, um clube que só triunfava graças à influência econômica e politica dos sobreviventes judeus do Holocausto.
O mito perpetuado
A Holanda do pós-guerra era um país traumatizado. Tinha perdido quase a totalidade da sua imensa comunidade judia. Nenhum outro país europeu, salvo a Polônia, perdeu tantos cidadãos judeus como os Países Baixos. Muitos deles foram capturados com a ajuda de colaboradores holandeses do exército nazi. O sentimento de culpa permaneceu. Durante os anos seguintes o país fez de tudo para reconciliar-se emocionalmente com a causa judaica. Tornou-se o maior apoiante europeu ao estado de Israel, mesmo quando todos os restantes países começaram a mudar a sua orientação politica de apoio à causa palestina. Transformou-se no paraíso de férias e no destino de estudos universitários por excelência para os judeus europeus. E em instituições como o Ajax, aumentou a conexão emocional que unia o país com a sua comunidade judaica. O “Caransajax” foi também um fenômeno do seu tempo.
Leo Horn, célebre árbitro dos anos 40 e 50, outro sobrevivente do Holocausto, era um dos principais apoiantes financeiros do clube a par de Caransa. Quando arbitrava o clube, os rivais já sabiam que a vitória estava garantida. Quando se retirou de uma longa e bem sucedida carreira arbitral, tornou-se no relações públicas do Ajax nas visitas dos árbitros escolhidos pela UEFA em vésperas de jogos das competições europeus. Fazia parte de uma geração de judeus sobreviventes que encontraram no clube uma razão para viver e para se esquecer do drama que tinha ficado para trás. A sua mentalidade contagiou o clube durante décadas e os adeptos – a esmagadora maioria deles sem nenhuma conexão com a comunidade judaica – aceitaram essa ligação. Passaram a levar para o estádio bandeiras com a estrela de David e a cantar temas com a palavra “Super Judeus” repetida nos refrões. Um fenômeno que permanece até hoje mas que tem perdido fulgor à medida que os grandes homens do Ajax dos anos dourados deixaram os seus lugares a jovens sucessores sem nenhuma ligação familiar ou emocional à causa judaica.
Hoje o Ajax é, nas entranhas, um clube tão judeu como qualquer outro da Europa. Mas emocionalmente, na Holanda, em Israel e um pouco por toda a Europa, a alma judaica do Ajax permanece. O mito do Caransajax pode não ter sido mais do que isso, um mito sufragado pelas circunstâncias do momento. Mas encontrou o seu caminho no coração dos adeptos. E de aí será praticamente impossível sair.