Sentado diante de meu computador, para escrever este relato, a primeira memória que me vem são os lamentos: o som grave e contínuo, como um triste zumbido.
Então a imagem: centenas de milhares de judeus ao meu redor, rezando a meia voz. Por fim, o gosto: o ar com sabor de poeira, depois de uma violenta tempestade de areia que cobriu o Sol e deixou o céu amarelado.
Foi um dia notável, em Jerusalém. A cidade fechou, hoje, seus acessos e algumas de suas principais vias para permitir a realização de uma manifestação maciça dos ultra-ortodoxos conhecidos, aqui, pelo nome “haredim“. O transporte público teve interrupções.
Os ultra-ortodoxos protestavam durante a tarde, nos arredores da estação central de ônibus, contra a proposta de lei que prevê seu alistamento no Exército. A organização do evento, realizado pelos principais grupos religiosos do país, falava em 500 mil nas ruas. A Polícia estimava 350 mil, em um país de população de 8 milhões.
A manifestação, em um dia inutilizado pela tempestade de areia, deu sinais dacapacidade de mobilização –e da força de sua fé– desse importante setor da sociedade israelense que, em outras décadas, esteve protegida por coalizões de governo em que fora mais bem representado.
O protesto de ontem também dá conta de mudanças políticas em Israel, conforme a população secular passa a exigir maior participação dos ultra-religiosos, que são eximidos do serviço militar e, segundo seus detratores, sustentados pelos impostos pagos pela população produtiva.
Os haredim afirmam que já contribuem à sociedade israelense ao dedicar-se ao estudo dos livros sagrados do judaísmo, em vez de a empregos remunerados ou ao serviço militar.
Eu conversei, entre a multidão, com o jovem Shlomo Kwuk, 27. “A leitura da Torá [livro sagrado] é a coisa mais importante do mundo. É o que nos protege neste lugar, em que precisamos de milagres diários para sobreviver. O Exército não é o suficiente.”
“Essa injustiça histórica, que durou 65 anos, foi consertada”, afirmou recentemente o ministro das Finanças Yair Lapid, cuja plataforma eleitoral incluía forçar o alistamento dos setores religiosos.
Os haredim presentes na manifestação discordam, porém. “Nós contribuímos de outras maneiras. Temos cuidado de nosso povo há milhares de anos”, me diz Gidon Katz, porta-voz do protesto. Enquanto conversávamos, ouvíamos ao fundo a leitura em massa dos salmos religiosos do judaísmo. “Estamos implorando a Deus para que nos ajude.”
“O futuro da nação judaica depende do yeshivot [espécie de escolas religiosas]“, me afirmou Yitzhak Pindrus, que foi vice-prefeito de Jerusalém. “Na maior parte da nossa história, nós não tivemos um Estado. O que nos manteve juntos, nesses milhares de anos, foi a Bíblia. Nos tire o livro sagrado e vamos desaparecer.”