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Comida Judaica |
Giovana Sanchez
Século 15, época da Inquisição. Em Portugal, os judeus
convertidos tentavam fugir das constantes perseguições. Mas rezar o
Pai-Nosso e molhar a cabeça com as águas do batismo não era o
suficiente. Para não serem mortos, os cristãos-novos, como eram
chamados, tinham de trabalhar aos sábados e, mais importante, comer o
que os católicos comiam. Foi então que eles inventaram a alheira, uma
espécie de lingüiça sem porco – alimento proibido para os judeus. A
técnica consistia em rechear o chouriço com diferentes carnes como
vitela, coelho, peru, pato e galinha, e envolvê-lo em um pão de centeio.
Como condimentos, a massa levava pimenta branca, sal, salsa, louro,
cebola e – indispensável – muito alho, que deu nome ao prato.
Não se sabe ao certo até que ponto os judeus alteraram os hábitos
alimentares de portugueses e de outros povos com os quais conviveram. O
fato é que, em suas constantes migrações, eles interagiam com as
populações locais, enriquecendo ambas as culinárias. Muitas vezes, pela
falta de ingredientes disponíveis ou em épocas de pobreza e dificuldade,
era preciso modificar o cardápio tradicional. Para o gourmet Breno
Lerner, “não existe uma culinária judaica, e sim uma forma judaica de
fazer a culinária dos outros”. Mas, além de adaptar pratos alheios a
suas leis gastronômicas, os judeus construíram ao longo dos tempos uma
relação mais profunda com a gastronomia. Para eles, o ato de sentar-se à
mesa simboliza a permanência da tradição, o elo com os antepassados e a
união da família.
É como explica Marcia Algranti, autora de Cozinha Judaica – 5 000
anos de História: “por tratar-se de um povo que desde tempos imemoriais
foi sempre banido de seus países de origem, conservar os hábitos
alimentares, em um novo país, era como se sentir menos apátrida”. E,
ainda hoje, mesmo com um país para chamar de seu, muito do cotidiano da
maioria das famílias judaicas é compartilhado em volta da mesa. É ao
redor dela que são comemorados os dias sagrados, as festas, os
casamentos e os nascimentos.
As receitas do que se pode chamar de “culinária judaica” variam
principalmente entre dois grandes grupos de judeus: os ashkenazim – que
em sua maioria foram levados pela Diáspora para a Europa Central e
Oriental – e os sefaradim – que seguiram para países árabes e da
Península Ibérica. Por terem condições de vida distintas e lidarem com
diferentes alimentos, essas comunidades desenvolveram hábitos
gastronômicos particulares, que hoje se encontraram na nova culinária de
Israel.
Às voltas com o clima gelado da Europa Oriental, os ashkenazim tinham
poucos ingredientes para variar seu cardápio. Batata, beterraba,
cebola, repolho, trigo sarraceno (ou kasha), gordura de galinha, carne
de segunda e peixe eram praticamente todos os insumos de que dispunham.
Uma canção popular iídiche revela a escassez da variedade dos pratos:
“Domingo, batatas; segunda, batatas; terça, batatas; quarta, batatas;
quinta, batatas; sexta, batatas; e sábado, um tchulent (cozido) com
batatas!”
Mesmo com poucos alimentos disponíveis, os habitantes do Leste
Europeu criaram pratos típicos hoje famosos, como os latkes, bolinhos de
batata ralada servidos em muitas delicatessen americanas, e o fígado
batido, quase obrigatório nas mesas de sábado, dia de descanso judaico.
Há também um prato consumido por todos os judeus, mas que tem especial
significado para os ashkenazim: o gefilte fish. Originalmente, a pele do
peixe, principalmente a carpa, era retirada, cozida e colocada
novamente para servir como se fosse um peixe inteiro. Mas como eram
pobres e não podiam comprar muito do peixe fresco, os judeus ashkenazim
maquiavam o prato. A carne era retirada e incrementada com cebola, ovos e
pão, para aumentar a quantidade.
Cores e aromas
Ao contrário dos ashkenazim, os judeus sefaradim desenvolveram uma
gastronomia colorida e aromática. Por terem permanecido mais tempo nos
lugares para onde migraram e se adaptado melhor, eles puderam
influenciar e serem mais influenciados. Foi durante os 200 anos de
cativeiro do Egito (1700 a.C.), por exemplo, que os judeus conheceram a
galinha, o alho e a cebola.
Mais tarde, expulsos da Espanha durante a Inquisição, eles se
dispersaram por todo o Mediterrâneo. Em terra fértil, cozinhavam com
abundância de frutas, ervas, grãos e especiarias. No cardápio sefaradi,
há ingredientes como alcachofras, aspargos, espinafre, berinjela,
azeitonas e feijões variados, além de amêndoas, tamarindos, abricós e
uvas – alimentos com os quais os judeus do Leste Europeu jamais
sonharam.
A cozinha sefaradi difere de um país para outro e, às vezes, de uma
cidade para outra. Há, no entanto, uma unidade na preparação dos pratos.
Um dos mais comuns é o couscous, tradicional do norte da África, feito
com semolina. Há também os mustatchudos, docinhos de nozes para ocasiões
especiais, e a sopa de moloheia, vegetal de sabor forte, semelhante ao
espinafre.
A lei dos alimentos
Os hábitos alimentares dos judeus permanecem apoiados na religião. O
modo de preparação dos alimentos e as definições do que é ou não
permitido comer seguem regras milenares. São as leis do Kosher, o código
de conduta que rege a alimentação judaica e que, segundo a tradição,
foi revelado por Deus a Moisés no Monte Sinai.
As regras estão na Torá, o livro sagrado dos judeus. Eles são
proibidos, por exemplo, é proibido ingerir sangue – porque a vida está
no sangue – e comer a carne de um animal que sofreu para morrer. Também
não é permitido misturar carne e leite em um mesmo prato, conforme o
mandamento que não admite cozinhar “o cabrito no leite de sua mãe”.
Grande parte das regras do Kosher diz respeito à carne e à forma de
abate. O animal transformado em alimento precisa ser ruminante e ter o
casco fendido – daí a proibição ao porco. A origem dessa tradição está
na idéia de que todo animal vive constantemente ligado ao mundo material
pelas patas. O casco, porém, separa-o do chão. Animais de casco
fendido, portanto, têm uma ligação menor com mundo material. Vale o
mesmo para os peixes: só é permitido comer aqueles que têm escamas –
elas separam o animal do mundo exterior.
As limitações da culinária Kosher fazem com que, hoje em dia, apenas
os judeus ortodoxos sigam à risca as restrições alimentares. De acordo
com a chef Simone Chevis, “além de difícil, a cozinha Kosher é muito
cara”. Em seu buffet tipicamente judaico, ela não segue muitas dessas
regras alimentares. Também não pretende inovar nas receitas. “O que eu
faço é um resgate, não a criação de novos pratos”. Chevis finaliza todos
os pratos sozinha. Seu objetivo é chegar ao sabor tradicional, trazendo
de volta temperos e modos de preparo. “O mais gratificante para mim é
quando alguém me diz que a comida estava parecida com a que sua avó
preparava. Aí sim, eu sei que consegui fazer algo pela manutenção de uma
cultura.”
Comida de festa
O que se come - e o que é proibido comer - nas comemorações religiosas do calendário judaico
SHABAT
É a comemoração do dia do repouso – do pôr-do-sol da sexta-feira ao
pôr-do-sol do sábado. Considerado símbolo de louvor e de evocação ao
descanso do Senhor, neste dia o judeu não trabalha – e nem cozinha.
Sendo assim, grande parte dos pratos é preparada no dia anterior ou são
comidos frios. A festividade inclui vinho, challot (pães trançados),
peixe ou carne. Entre os judeus marroquinos, o prato principal é o hamin
ou adafina, um cozido de ovos, grão de bico e carne. Os judeus
ashkenazim têm um prato semelhante para o shabat. Trata-se do tchulent,
um cozido preparado com feijão branco, galinha e carne de peito.
PURIM
Celebrado anualmente no 14º dia do mês hebraico de Adar, o Purim – ou
Festa dos Sorteios – comemora a vitória da sobrevivência judaica sob
domínio persa. O costume judaico nessa época é beber muito vinho, comer
fritura e dar e receber mishloach manot – docinhos. Dois pratos entre os
mais típicos na celebracão do Purim são as latkes (bolinhos de batatas
raladas) e os sufganiot (sonhos).
YOM KIPPUR
É a data mais sagrada do ano judaico. Ocorre exatamente dez dias
depois do Ano Novo, começando e terminando com uma refeição festiva. A
que precede o jejum de 24 horas é leve, com frango, e sem temperos
fortes, como pimenta e canela. Bebidas alcoólicas ficam de fora, para
não dar sede. Já o jantar que encerra a celebração é farto e traz muito
peixe salgado ou curtido para que sejam repostos os sais minerais
perdidos durante o dia anterior.
SUCOT
Também conhecida como Festa das Tendas, começa cinco dias depois do
Yom Kippur e comemora duas passagens importantes da religião: a forma
como os judeus viveram por 40 anos no deserto e o início das colheitas,
principalmente das frutas. Nessa época, as crianças vão para as
sinagogas carregando um maço com folhas de palmeira, mirta e salgueiro.
As refeições são à base de frutas e há arranjos nas sobremesas e no
entorno das mesas.
PESSACH
Durante os dias da Páscoa judaica, quando é celebrado o Seder (“ordem”
em hebraico), os judeus são proibidos de comer qualquer alimento
fermentado. As casas são limpas de tudo o que possa ter fermento para
relembrar os dias iniciais da peregrinação, nos quais não havia tempo
para fermentar a massa. O primeiro jantar do feriado tem caráter
didático. Os pais devem fazê-lo para ensinar os filhos sobre a saída dos
judeus do Egito e o valor da liberdade. Tudo o que é servido tem um
símbolo. No centro da mesa fica um prato redondo com seis alimentos: um
pedaço de osso assado (representando o cordeiro pascal), um ovo cozido
(que lembra o ciclo da vida), uma erva amarga e uma alface (ambos
simbolizando o sofrimento da escravidão), uma massa de nozes e maçãs
picadas, com gengibre e vinho (referência aos tijolos que os escravos
judeus faziam) e salsão ou aipo (que representam o trabalho árido do
povo escravo). Também nessa data, são preparados os famosos matzot, pães
sem fermento, separados em três fileiras principais, tipificando a
geração de Abraão, Isaac e Jacó e as famílias Cohen, Levi e Israel. No
Seder, todo judeu deve beber quatro copos de vinho, que correspondem às
quatro expressões de liberdade mencionadas na Torá.
gostei. obrigada!!! a colunária sefaradita me explica muita coisa sobre os meus costumes repassados pelas gerações passadas.
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