Sean Purdy, professor de HistĆ³ria da USP
NĆ£o fui surpreendido quando eu vi o e-mail de um Antonio Isoldi Caleari na minha caixa de entrada com o assunto “DoaĆ§Ć£o de obra para vosso acervo pessoal”. Recebo e-mails como esse regularmente de alunos, editoras, empresas, etc. Quando abri a mensagem, porĆ©m, duas coisas chamaram minha atenĆ§Ć£o: o tĆtulo estranho do livro que estava em anexo: “Malleus Holoficarum: o estatuto jurĆdico-penal da RevisĆ£o HistĆ³rica na forma do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado Editora: Lisboa, 2012) e o fato que o autor, Antonio Caleari, era aluno do curso de graduaĆ§Ć£o em Direito da Universidade de SĆ£o Paulo. Na mensagem, o autor escreve que o livro teve por base sua Tese de LĆ”urea de 2011, recebeu nota mĆ”xima de 10 e foi indicado ao “PrĆŖmio Jovem Jurista” do Banco Santander. Ele destaca o fato que a tese foi defendida “na mais tradicional Faculdade de Direito do paĆs, o Largo de SĆ£o Francisco”.
Normalmente, eu apagaria um e-mail como esse, mas o tĆtulo “Malles Holoficarum” me interessou e decidi dar uma olhada. Lendo a dedicaĆ§Ć£o na pĆ”gina 5 jĆ” entendi do que trata o livro: uma defesa do negacionismo do Holocausto. A dedicaĆ§Ć£o diz na integra: “Dedico esta obra, na qual se efetiva um ato de resistĆŖncia civil contra a tirania representada pelo Malleus Holoficarum, a todos os inspiradores mĆ”rtires da RevisĆ£o HistĆ³rica, cuja luta hĆ” de transcender em idealĆstico e perene legado”. Confirmei atravĆ©s de pesquisas que realmente a Tese de LĆ”urea desse aluno Antonio Caleari recebeu a nota mĆ”xima de 10 e foi indicado ao prĆŖmio de Santander pelo orientador, Professor Doutor Pierpaulo Cruz Bottini, mas nĆ£o ganhou. Fiz mais pesquisas sobre Antonio Caleari e descobri que ele tambĆ©m Ć© moderador e um dos principais autores do blog www.inacreditavel.com.br. No lado do tĆtulo do blog, hĆ” citaƧƵes destacadas que mudam periodicamente. Nos Ćŗltimos dias jĆ” vi duas citaƧƵes de Adolf Hitler, uma de Mussolini e uma da BĆblia. O primeiro post no blog no dia 13 de novembro, postado no dia anterior, Ć© intitulado “A Luta de S.E. Castan contra a Mentira do SĆ©culo”, ou seja, o Holocausto, e consiste de uma transcriĆ§Ć£o de uma conferĆŖncia ministrada em Porto Alegre em 1991 pelo Seigfried Ellwanger Castan, editor e distribuidor na Ć©poca de livros negacionistas. Em 2001, Castan foi condenado para atos contra a “dignidade humana” pelo Superior Tribunal de JustiƧa do Estado do Rio Grande do Sul, uma decisĆ£o confirmada pelo STF em 2003.
Outros artigos recentes no blog versam sobre as ameaƧas ao direito de liberdade de expressĆ£o, as habilidades teĆ³ricas no pensamento econĆ“mico de Adolf Hitler, clipes de Youtube do compositor Wagner e numerosos artigos de negacionistas brasileiros e internacionais questionando a existĆŖncia do Holocausto como fato histĆ³rico. AtĆ© tem um artigo dos moderadores sobre uma reclamaĆ§Ć£o de racismo contra o blog que foi arquivado pelo MinistĆ©rio PĆŗblico de SĆ£o Paulo em 2009. No post de 29 de fevereiro de 2012 divulgando a publicaĆ§Ć£o de “Malleus Holoficarum...” entre os mais de 70 comentĆ”rios elogiando o autor, Caleari comentou que ele teve que apagar vĆ”rios comentĆ”rios crĆticos, adicionando que ”Aos talmudistas de plantĆ£o: seus dias aqui acabaram”. Conforme com uma ampla literatura sobre negacionismo, os negacionistas desse blog sĆ£o cuidadosos na sua linguagem, nĆ£o ferindo as leis diretamente, mas, intelectualmente e politicamente alimentando racismo, antissemitismo e Ć³dio. O MinistĆ©rio PĆŗblico pode nĆ£o achar que o blog incita preconceito de raƧa ou credo, mas qualquer pessoa compromissada com a luta contra racismo sabe muito bem do que se trata nesse blog de alguĆ©m que se apresenta orgulhosamente como aluno da Universidade de SĆ£o Paulo.
No livro, Caleari nunca enfrenta a exaustiva evidĆŖncia do Holocausto. A estratĆ©gia dele Ć© argumentar que as opiniƵes dos negacionistas sĆ£o igualmente legĆtimas quanto Ć s dos historiadores profissionais que nĆ£o negam o Holocausto: “Revisionismo do Holocausto Ć© tĆ£o legĆtimo como o revisionismo de qualquer outro perĆodo da HistĆ³ria. Trata- se de um debate que ocupa tĆ£o somente o plano intelectual e que nĆ£o preenche os requisitos para pautar a polĆtica criminal do estado” (p.129). Ele faz esse “argumento” na seguinte maneira:
Normalmente, eu apagaria um e-mail como esse, mas o tĆtulo “Malles Holoficarum” me interessou e decidi dar uma olhada. Lendo a dedicaĆ§Ć£o na pĆ”gina 5 jĆ” entendi do que trata o livro: uma defesa do negacionismo do Holocausto. A dedicaĆ§Ć£o diz na integra: “Dedico esta obra, na qual se efetiva um ato de resistĆŖncia civil contra a tirania representada pelo Malleus Holoficarum, a todos os inspiradores mĆ”rtires da RevisĆ£o HistĆ³rica, cuja luta hĆ” de transcender em idealĆstico e perene legado”. Confirmei atravĆ©s de pesquisas que realmente a Tese de LĆ”urea desse aluno Antonio Caleari recebeu a nota mĆ”xima de 10 e foi indicado ao prĆŖmio de Santander pelo orientador, Professor Doutor Pierpaulo Cruz Bottini, mas nĆ£o ganhou. Fiz mais pesquisas sobre Antonio Caleari e descobri que ele tambĆ©m Ć© moderador e um dos principais autores do blog www.inacreditavel.com.br. No lado do tĆtulo do blog, hĆ” citaƧƵes destacadas que mudam periodicamente. Nos Ćŗltimos dias jĆ” vi duas citaƧƵes de Adolf Hitler, uma de Mussolini e uma da BĆblia. O primeiro post no blog no dia 13 de novembro, postado no dia anterior, Ć© intitulado “A Luta de S.E. Castan contra a Mentira do SĆ©culo”, ou seja, o Holocausto, e consiste de uma transcriĆ§Ć£o de uma conferĆŖncia ministrada em Porto Alegre em 1991 pelo Seigfried Ellwanger Castan, editor e distribuidor na Ć©poca de livros negacionistas. Em 2001, Castan foi condenado para atos contra a “dignidade humana” pelo Superior Tribunal de JustiƧa do Estado do Rio Grande do Sul, uma decisĆ£o confirmada pelo STF em 2003.
Outros artigos recentes no blog versam sobre as ameaƧas ao direito de liberdade de expressĆ£o, as habilidades teĆ³ricas no pensamento econĆ“mico de Adolf Hitler, clipes de Youtube do compositor Wagner e numerosos artigos de negacionistas brasileiros e internacionais questionando a existĆŖncia do Holocausto como fato histĆ³rico. AtĆ© tem um artigo dos moderadores sobre uma reclamaĆ§Ć£o de racismo contra o blog que foi arquivado pelo MinistĆ©rio PĆŗblico de SĆ£o Paulo em 2009. No post de 29 de fevereiro de 2012 divulgando a publicaĆ§Ć£o de “Malleus Holoficarum...” entre os mais de 70 comentĆ”rios elogiando o autor, Caleari comentou que ele teve que apagar vĆ”rios comentĆ”rios crĆticos, adicionando que ”Aos talmudistas de plantĆ£o: seus dias aqui acabaram”. Conforme com uma ampla literatura sobre negacionismo, os negacionistas desse blog sĆ£o cuidadosos na sua linguagem, nĆ£o ferindo as leis diretamente, mas, intelectualmente e politicamente alimentando racismo, antissemitismo e Ć³dio. O MinistĆ©rio PĆŗblico pode nĆ£o achar que o blog incita preconceito de raƧa ou credo, mas qualquer pessoa compromissada com a luta contra racismo sabe muito bem do que se trata nesse blog de alguĆ©m que se apresenta orgulhosamente como aluno da Universidade de SĆ£o Paulo.
No livro, Caleari nunca enfrenta a exaustiva evidĆŖncia do Holocausto. A estratĆ©gia dele Ć© argumentar que as opiniƵes dos negacionistas sĆ£o igualmente legĆtimas quanto Ć s dos historiadores profissionais que nĆ£o negam o Holocausto: “Revisionismo do Holocausto Ć© tĆ£o legĆtimo como o revisionismo de qualquer outro perĆodo da HistĆ³ria. Trata- se de um debate que ocupa tĆ£o somente o plano intelectual e que nĆ£o preenche os requisitos para pautar a polĆtica criminal do estado” (p.129). Ele faz esse “argumento” na seguinte maneira:
1) Por uma breve anĆ”lise da historiografia contemporĆ¢nea (pp.117-132) enfatizando que a prĆ³pria profissĆ£o aceita que existem versƵes diferentes sobre histĆ³ria.
2) AtravĆ©s de uma anĆ”lise de historiadores crĆticos (na maioria brasileiros e alguns estrangeiros traduzidos para o portuguĆŖs) de negacionismo e dos apoiadores do Projeto de Lei Federal nĀŗ 987 que criminalizaria negacionismo do Holocausto (pp.133-173). Aqui ele nĆ£o confronta a evidĆŖncia do Holocausto, mas acusa os crĆticos de negacionismo de terem opiniƵes diferentes sobre as causas, natureza, consequĆŖncias, importĆ¢ncia e simbolismo do Holocausto, concluindo que se existem tantas divergĆŖncias entre historiadores, portanto negacionismo Ć© tambĆ©m intelectualmente legĆtimo.
3) Caleari junta autores diversos (da esquerda, direita, sionistas, antissionistas, judeus, religiosos cristĆ£os, etc.) sobre assuntos diversos como liberdade de expressĆ£o, racismo e sionismo, argumentando novamente que a diversidade de opiniƵes sobre vĆ”rios aspectos “relacionados” ao Holocausto significa que negacionismo Ć© somente mais uma opiniĆ£o legĆtima dentro de um debate intelectual amplo. A “lĆ³gica” dele aqui Ć© a seguinte: se um judeu pode criticar o estado de Israel por suas polĆticas em relaĆ§Ć£o aos palestinos, uma pessoa pode negar que o Holocausto aconteceu. EntĆ£o, autores como Rosa Luxemburgo sobre direito de liberdade de expressĆ£o e Norman Finkelstein e outros judeus da esquerda sobre a “indĆŗstria de Holocausto”, sĆ£o juntados para mostrar que negacionismo Ć© somente mais um argumento autĆŖntico (pp.208-211). Caleari chama negacionismo, o termo usado por historiadores profissionais, de RevisĆ£o HistĆ³rica e seus proponentes, revisionistas. Suas crĆticas, historiadores legĆtimos, ele chama de afirmacionistas ou antirevisionistas. A escolha dessas palavras nĆ£o Ć© por acaso: os negacionistas nĆ£o gostam da palavra negacionismo, preferindo usar RevisĆ£o HistĆ³rica pois eles defendem negacionismo como a legĆtima prĆ”tica de revisionismo histĆ³rico.
Dentro de historiografia, existe uma legĆtima prĆ”tica de revisĆ£o histĆ³rica. Basta mencionar novas interpretaƧƵes de Canudos ou da decisĆ£o de lanƧar a bomba atĆ“mica contra JapĆ£o em 1945. Que historiadores estĆ£o constantemente envolvidos em revisĆ£o histĆ³rica Ć© correto. Mas a revisĆ£o histĆ³rica legĆtima nĆ£o Ć© preocupada com a existĆŖncia de fatos e eventos, mas sim com suas causas, natureza e consequĆŖncias. O prĆ³prio Holocausto pode ser legitimamente reinterpretado por novas geraƧƵes em relaĆ§Ć£o Ć s suas causas, natureza e consequĆŖncias. Historiadores legĆtimos debatem, por exemplo, o papel individual de Hitler no Holocausto, as responsas da comunidade judaica e outras comunidades Ć persecuĆ§Ć£o e a relaĆ§Ć£o entre racismo e capitalismo. O que historiadores legĆtimos do Holocausto nĆ£o fazem Ć© negar os fatos do Holocausto, um dos eventos mais documentados e comprovados na histĆ³ria do sĆ©culo XX. Negacionismo se baseia na ideia de que o Holocausto nĆ£o aconteceu, de que nĆ£o houve um plano sistemĆ”tico de exterminar os judeus de Europa e de que muito menos de seis milhƵes de judeus (alĆ©m de milhƵes de outros) foram mortos pelos nazistas nos anos 1930-1940.
Caleari fere claramente os padrƵes de uso de evidĆŖncia e argumentaĆ§Ć£o da anĆ”lise racional acadĆŖmica nĆ£o sĆ³ da profissĆ£o de histĆ³ria, mas tambĆ©m de anĆ”lise social cientĆfica e jurĆdica. Apesar de todas as fontes utilizadas de “todos os lados”, ele nunca confronta os erros, contradiƧƵes, afirmaƧƵes inconsistentes e mentiras de negacionismo do Holocausto, distorcendo fatos e argumentos para conformar com uma ideologia e agenda polĆtica que ele mais abertamente mostra no seu blog nĆ£o- acadĆŖmico. E negar o Holocausto Ć© justificar o extermĆnio em massa de judeus durante o Holocausto, alimentando racismo hoje em dia. Como o historiador Pierre Vidal-Naquet escreve, negacionistas sĆ£o “assassinos de memĆ³ria”. Mesmo que Caleari nĆ£o esteja sujeito Ć s leis contra racismo ou as normas Ć©ticas da USP, seu livro constitui uma forma de fraude acadĆŖmica e intelectual que nunca deveria ter sido aprovada como Tese de LĆ”urea sem falar de ganhar nota de 10 e ser indicado a um prĆŖmio. NĆ£o adere aos padrƵes bĆ”sicos e honestos de investigaĆ§Ć£o racional e usa o prestĆgio e a legitimidade da Faculdade de Direito da USP para avanƧar uma agenda disfarƧada de Ć³dio e racismo.
Dentro de historiografia, existe uma legĆtima prĆ”tica de revisĆ£o histĆ³rica. Basta mencionar novas interpretaƧƵes de Canudos ou da decisĆ£o de lanƧar a bomba atĆ“mica contra JapĆ£o em 1945. Que historiadores estĆ£o constantemente envolvidos em revisĆ£o histĆ³rica Ć© correto. Mas a revisĆ£o histĆ³rica legĆtima nĆ£o Ć© preocupada com a existĆŖncia de fatos e eventos, mas sim com suas causas, natureza e consequĆŖncias. O prĆ³prio Holocausto pode ser legitimamente reinterpretado por novas geraƧƵes em relaĆ§Ć£o Ć s suas causas, natureza e consequĆŖncias. Historiadores legĆtimos debatem, por exemplo, o papel individual de Hitler no Holocausto, as responsas da comunidade judaica e outras comunidades Ć persecuĆ§Ć£o e a relaĆ§Ć£o entre racismo e capitalismo. O que historiadores legĆtimos do Holocausto nĆ£o fazem Ć© negar os fatos do Holocausto, um dos eventos mais documentados e comprovados na histĆ³ria do sĆ©culo XX. Negacionismo se baseia na ideia de que o Holocausto nĆ£o aconteceu, de que nĆ£o houve um plano sistemĆ”tico de exterminar os judeus de Europa e de que muito menos de seis milhƵes de judeus (alĆ©m de milhƵes de outros) foram mortos pelos nazistas nos anos 1930-1940.
Caleari fere claramente os padrƵes de uso de evidĆŖncia e argumentaĆ§Ć£o da anĆ”lise racional acadĆŖmica nĆ£o sĆ³ da profissĆ£o de histĆ³ria, mas tambĆ©m de anĆ”lise social cientĆfica e jurĆdica. Apesar de todas as fontes utilizadas de “todos os lados”, ele nunca confronta os erros, contradiƧƵes, afirmaƧƵes inconsistentes e mentiras de negacionismo do Holocausto, distorcendo fatos e argumentos para conformar com uma ideologia e agenda polĆtica que ele mais abertamente mostra no seu blog nĆ£o- acadĆŖmico. E negar o Holocausto Ć© justificar o extermĆnio em massa de judeus durante o Holocausto, alimentando racismo hoje em dia. Como o historiador Pierre Vidal-Naquet escreve, negacionistas sĆ£o “assassinos de memĆ³ria”. Mesmo que Caleari nĆ£o esteja sujeito Ć s leis contra racismo ou as normas Ć©ticas da USP, seu livro constitui uma forma de fraude acadĆŖmica e intelectual que nunca deveria ter sido aprovada como Tese de LĆ”urea sem falar de ganhar nota de 10 e ser indicado a um prĆŖmio. NĆ£o adere aos padrƵes bĆ”sicos e honestos de investigaĆ§Ć£o racional e usa o prestĆgio e a legitimidade da Faculdade de Direito da USP para avanƧar uma agenda disfarƧada de Ć³dio e racismo.
Publicado na Carta Maior
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