A perseguição implacável

A perseguição implacável

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Conheça a história de Gitty Grunwald, moça nova-iorquina que teve um casamento arranjado, se viu obrigada a fugir de uma comunidade religiosa tradicionalíssima, foi vigiada por espiões e, por decisão do ex-marido, é mantida longe de sua única filha. Tudo porque ela ousou se livrar do modo de vida medieval que a obrigava, por exemplo, a exibir a calcinha a um rabino para provar que seu período de “impureza” havia acabado
texto: Mark Jacobson
fotos: Clemence de Limburg
LIBERDADE VIGIADA
Para poder ter momentos como esse, a sós com sua filha, Esther Miriam, Gitty precisa vencer as proibições impostas pelo ex-marido. Superado esse obstáculo, ela é obrigada a despistar os implacáveis e onipresentes espiões de uma comunidade religiosa de Kiryas Joel, cidadezinha no estado de Nova York. Não tem folga nem quando faz uma singela visita ao supermercado

Difícil imaginar uma cena mais tipicamente norte-americana: uma jovem mãe e sua filha no Wal-Mart. Enquanto empurrava o carrinho de compras com Esther Miriam, sua filha de 4 anos, sentada como uma princesinha, Sterna Gittel Grunwald (Gitty) - com sua silhueta bem definida em jeans justos e camiseta de algodão branca - mantinha os olhos abertos para identificar possíveis espiões. Os membros do movimento hasídico Satmar Hassidim de Kiryas Joel - ou KJ, cidadezinha de Catskill, Nova York, onde Gitty, agora com 23 anos, cresceu - vêm ao Wal-Mart apenas para fazer as grandes compras do mês. Não havia nada nas prateleiras lotadas de produtos americanos bregas que pudesse deixar as pessoas da pequena cidade nervosas, pensou Gitty. Mesmo assim, em KJ, você nunca é paranoico o suficiente.
Uma vez, quando Esther Miriam era um bebê, Gitty a levou para dar uma volta. "Um cara olhou para dentro do carrinho", lembra Gitty. "Ele disse que minha bebê era linda e seguiu seu caminho. Foi simpático. Mas então três minivans vieram correndo pela rua, hassids pularam para fora e me cercaram perguntando quem era o cara e o que ele queria."
Eram os Vaad Hatznius, a "polícia moral" de Kiryas Joel, a quem Gitty se refere como os "talibans idiotas". Resumindo, os vaads têm a lista das placas dos carros que circulam durante o Sabá (dia de descanso semanal no judaísmo) e observam quais mulheres entram no supermercado Landau com suas pernas não totalmente cobertas. E, se alguém delatar você, os vaads podem ir para sua casa para ver se você está assistindo a algum filme pornográfico no aparelho de DVD que você tem escondido embaixo da cama. Em Kiryas Joel, conta Gitty, eles acham que não há outra razão para ter um DVD, exceto para assistir a filmes pornográficos.
"Eles chamam o lugar de holy shtetl", ou vila sagrada (chamavam-se de shtetl povoações ou bairros de cidades com uma população predominantemente judaica, principalmente na Europa Oriental), conta Gitty, com seus inigualáveis olhos verdes, enquanto fala sobre sua antiga cidade, onde as ruas têm nomes de rabinos famosos e assentamentos hassídicos da Europa. Quando KJ foi fundada, em 1977, pelo grande satmar e rabino Joel Teitelbaum, Kiryas Joel significava a vila de Joel, em yiddish. O objetivo era a santidade. Como Moisés antes dele, Teitelbaum havia liderado os satmars no caminho das sombras de Auschwitz até a terra prometida de Williamsburg, onde eles tiveram sucesso em construir o maior grupo hassídico do mundo.
Em Kiryas Joel, um judeu podia viver como se estivesse na Europa do século 18, quando o grande filósofo Baal Shem Tov articulou pela primeira vez o caminho místico e empolgado para D-us (grafado assim, sem o "e" entre "D" e "u") e que iria se tornar o hassidismo atual. Aqui um estudante poderia pensar apenas sobre a Torá em meio à generosidade da criação.
Gitty tinha apenas três anos quando sua mãe, Deborah, uma antiga hippie e filha de uma família secular de judeus de Nova York, chegou a KJ como bal tshuva (judeu que retorna ao ortodoxismo). Foi no fim da adolescência que Gitty entendeu que vivia na talvez mais religiosa e conservadora comunidade dos EUA. "Na casa dos meus pais, não tem TV, rádio, internet ou jornais que não sejam escritos em yiddish", diz. "Nós não devemos prestar atenção ao mundo exterior." Mesmo hoje, um ano e meio depois de fugir de KJ, durante uma conversa, Gitty demonstrou falta de familiaridade com Che Guevara, Michael Jordan, Myke Tyson, Dolly Parton e Keith Richards.
Depois de seu casamento arranjado aos 17 anos, com Joel "Yoely" Grunwald, outro adolescente de KJ, que se tornaria pai de Miriam, Gitty tomou uma decisão: "Eu não podia mais viver em KJ, não queria ser uma dessas mulheres que têm um filho a cada 18 meses e pensam só naquilo que os maridos dizem para pensar. Quando Esther Miriam nasceu, o perigo cresceu, porque viramos duas. Duas garotas de Kiryas Joel".
No começo de 2007, Gitty deixou KJ para sempre, levando Esther Miriam com ela. Primeiro, elas viveram em uma comunidade ortodoxa relativamente mais leve, em Monsey, Nova York, depois mudaram para o Brooklyn. Em janeiro deste ano, quando Esther Miriam ia para um parquinho em Flatbush com sua classe, ela foi levada, diz Gitty, que acredita que o marido esteja por trás do sequestro. "Alguns caras de KJ tentaram agarrá-la. Esther Miriam contou que usavam máscaras. Tudo o que ela lembra é de chorar, chorar muito." Gitty diz que foi o pior dia de sua vida. "Quando me contaram o que havia acontecido, fiquei sem respirar. Senti como se estivesse sendo sufocada. E ainda sinto."
Desde então, Esther Miriam está em KJ, algumas vezes na casa dos pais de Yoely, enquanto Gitty trabalha nos tribunais, ambos, o secular e o rabínico, para obter a guarda de sua filha. No momento, conta Gitty, "Yoely é quem manda, quando e onde posso ver minha filha". Por isso, ela ficou nervosa em levar Esther Miriam para o Wal-Mart. Yoely tinha decretado que a loja estava fora dos limites.


RELAÇÃO FRIA
Ex-hippie, a mãe de Gitty, Deborah (no fundo da foto), só deixa a filha entrar em sua casa caso ela concorde em usar saias; o radicalismo religioso da mãe e da comunidade de Kiryas Joel fez com que um irmão de Gitty também fugisse de casa e da cidade
As pernas de fora e o inferno
Passando direto pelo departamento de brinquedos, Gitty parou em frente à torre feita de massinha, colocando três pacotes no carrinho. Os US$ 30 adicionados aos US$ 20 já gastos na boneca Barbie deixariam Gitty sem mais nada para a semana, mas não havia muita escolha. Ela estava desesperada para comprar algo para Miriam. Gitty não tinha visto sua filha por três semanas e, do jeito que as coisas caminhavam, ela não sabia quando a veria novamente. Saindo da seção de brinquedos, Esther Miriam começou a admirar um par de sapatilhas cor-de-rosa. Isso era um problema, já que em KJ calçados assim não são considerados apropriados para garotinhas, que vestem azul-marinho ou preto, cores que cabem na ideia de "tznius", ou modéstia. Em KJ, onde é considerado um desastre para um homem ver o cabelo de uma mulher descoberto, Esther Miriam de sapatilhas cor-de-rosa poderia equivaler a uma "chilul hashem", ou seja, uma afronta a D-us.
"Sabe o que a Miriam me disse?", pergunta Gitty. "Se Deus vir você com as pernas descobertas, você vai para o inferno. Ela tem quatro anos, e está se preocupando com o inferno! Minha própria filha!"
Era assim em KJ, conta Gitty, onde até seus pais podem ficar contra se você não for religioso o suficiente. Gitty lembra o que aconteceu quando foi a "beth din", a corte rabínica Satmar, tentando ganhar a custódia de Esther Miriam. "Que chance eu tinha?", declarou Gitty. "Minha mãe e meu padrasto não me apoiaram. E lá estava eu, a garota, boba e pouco religiosa, sozinha. Eu fui criada para reverenciar esses rabinos. E eles me olham como se eu fosse goy (não-judeu). Pior que goy, porque estava tentando tirar uma garota judia de sua religião. Em KJ eles acham que vou transformar Miriam em uma prostituta. Eles dizem a ela que estou morta."
"Mesmo assim, eu não paguei para dar a Yoely mais munição. Então, não. Esther Miriam não iria ganhar sapatilhas cor-de-rosa." "Tateh não iria gostar", Gitty disse a Esther Miriam usando o termo yiddish para "papai", enquanto colocava as sapatilhas de volta na prateleira. Depois do Wal-Mart, o plano era levar Esther Miriam até a Hershey's Auto, onde Yoely vende muitas das minivans e SVUs de KJ. Gitty tinha marcado às 18h30, mas estava atrasada. Isso era um problema porque era tarde de sexta-feira. Ao pôr-do-sol, que seria em uma hora, uma sirene tocaria pela cidade anunciando o sabá. Nesse momento, todas as atividades rotineiras em KJ são suspensas.
Perto do principal shopping center, a chuva caía forte, a urgência era óbvia. Correndo para se preparar para o feriado, dúzias de vans manobravam em meio à lama do estacionamento. "Porcaria. Eles estão nos atrasando", Gitty disse, fazendo um breve comentário sobre a educação "satmar" no trânsito, a qual, como todas as regras sociais hassídicas, ela acredita ser inexistente.
O fato é que KJ é simplesmente muito cheia para duas vias de mão dupla e estacionamentos minúsculos. Devido à explosão da população haredi (judeus ortodoxos), para todo lugar que você olha, tem um chapéu preto. E há vários grupos com o nome de suas cidades de origem. Os bobovs de Bobowa na antiga Galícia, os belz de Belz na Ucrânia, e os satmars de Satu Mare, em território que hoje pertence à Romênia. Cada grupo com seu rabino determinado dinasticamente.
Ainda assim, Kiryas Joel é única. Nos últimos seis anos, essa vila, onde famílias com dez filhos não são incomuns, tem sido uma das comunidades que mais cresce no estado de Nova York, com uma das menores médias de idade: 15 anos. A visão de Rebbe Teitelbaum de um retiro bucólico se dissolveu no crescimento da cidade e seus condomínios de pequenos prédios com quatro andares, idênticos, do lado norte na saída 208 da estrada 17. Todos os dias, ônibus fazem o caminho para Williamsburg com uma cortina no corredor para separar homens e mulheres.


SEGREGAÇÃO SEXUAL
O ônibus que faz o trajeto entre Kiryas Joel e Williamsburg é dividido por uma cortina. De um lado viajam só as mulheres. E elas jamais devem imitar o que Gitty (de vermelho) faz na foto ao lado: desfilar em ambientes públicos sem que suas cabeças estejam devidamente cobertas
O casamento
Chovia muito na hora que Gitty conseguiu chegar à Hershey's Auto. Yoely, um homem de vinte e poucos anos, barbudo e um pouco barrigudo, estava organizando os carros, com sua camisa branca ensopada e grudada na barriga. Quando viu a ex-mulher, apontou para o relógio. Gitty nunca irá esquecer o momento que viu Yoely Grunwald pela primeira vez. Ela tinha 17 anos quando seus pais disseram que haviam arranjado seu casamento. "Posso vê-lo primeiro?", perguntou Gitty. "Claro", eles disseram, "olhe pela janela." "Ele estava andando pela rua com um rabino. Olhava para baixo. Então, eu não podia ver seu rosto. Ele virou-se e foi embora. Todos disseram 'ok, você já o viu'."
No estacionamento, a passagem da criança da mãe para o pai aconteceu quase sem nenhum comentário. Gitty entregou a massinha. Esther Miriam saiu do carro. Gitty também queria sair para dar em sua filha mais um beijo, mas não podia. Ela estava vestindo calças. Ver uma mulher vestindo calças é uma coisa horrível para um homem de KJ, mais uma violação do tznius. Rapidamente Yoely tinha a garotinha em seus braços e andava para seu carro.
"Eu te amo, Esther Miriam. A mamãe te ama", gritou Gitty, enquanto o pai e a criança dando tchau desapareceram entre a multidão de satmars que corria pela chuva. Gitty sentou e ficou olhando o sobe-e-desce dos limpadores de pára-brisa, "mais ou menos dormente". Ela foi criada para ser uma mulher satmar, e ela ainda é, em boa parte. As mulheres satmars devem ser fortes. Você não pode esperar que uma flor delicada tenha oito ou nove filhos até os 30 anos.
Gitty era forte. Durante as audiências no tribunal ou a cada vez que a mãe de Yoely desligava o telefone na sua cara quando ligava para falar com Esther, Gitty conseguia se manter firme. Mas, como as mulheres de KJ que Gitty dizia estarem silenciosamente ficando loucas tendo todos aqueles filhos, ela descobriu que havia um momento em que a força se transformava em dormência. Era algo contra o qual devia lutar.
"Deixar KJ me custou muito. Custou minha filha", Gitty diz finalmente, a chuva batendo no capô do carro. "Mas vou tê-la de volta." Naquela hora, os olhos de Gitty encontraram uma lata de Pringles no chão do carro. Ela comprara as batatinhas para Miriam no Wal-Mart, sempre com a etiqueta OUD, que quer dizer que a União Ortodoxa havia certificado o produto como "kasher". Durante seu casamento, Gitty e Yoely haviam brigado sobre se OUD era kasher o suficiente. Yoely disse "não" porque o OUD não garantia que o leite usado havia sido obtido por mãos judias. Quando ele viu o OUD na lata de Pringles, Yoely a largou como se estivesse quente.
Se você chamar pelos avós de Gitty, eles não negarão. "Somos judeus. Vivemos em Nova York. O que mais deveríamos ser?", pergunta Carol Feinman, ainda irônica e petulante em seus 80 anos, enquanto senta em seu típico apartamento de Washington Heights.
O pedigree nova-iorquino, secular, inteligente, liberal e de humor sarcástico, é puro, com uma tendência à boemia. Matty, também com mais de 80 anos, foi expulso da faculdade Brooklyn Tech, juntou-se à marinha, voltou a Nova York, conseguiu sua licença como professor e lecionou na escola Music and Art quando ficava no Harlem. Agora oficialmente cego, Matty continua pintando todos os dias em seu estúdio perto de Riverside. Ele tem um interesse especial por imagens abstratas. Durante anos, Carol Feinman fez trabalho de relações públicas para "grandes músicos", incluindo Ella Fitzgerald. Ela mesma uma cantora, Carol ainda se produz para soltar a voz nas noites livres do clube Bleecker Street, onde entoa principalmente sucessos de Billie Holiday e Sarah Vaughan.
Vindo de um lugar similar de Nova York, como judeu, eu reconheço e gosto de pessoas como Matty e Carol Feinman. E, como eles, me lembro que era um evento ver um hassid, mesmo no Brooklyn. De volta ao fim dos anos de 1950, quando meus pais e eu íamos a Eastern Parkway para visitar meus avós e um hassid passava por nós, minha mãe quase nunca deixava de comentar: "O que há com essa roupa, eles não ficam com calor?... Eles não sabem que aqui não é a Polônia?". "O que você tem com isso?", perguntava meu pai. Isso foi apenas uma década após a guerra, antes de a palavra Holocausto, com letra maiúscula, ter ficado comum. Meu pai lutou na batalha de Bulge, ele estava no terceiro batalhão de Patton, que mais tarde liberaria Buchenwald. Ele sabia. Mas não é nada que você queira ficar falando a respeito, especialmente para seu filho de nariz sujo. Seria melhor ele vagar livremente pelos espaços abertos. Quem precisava desses personagens embolorados de Kafka, arrastando as pesadas correntes da história?
Mas também havia um orgulho, um orgulho cívico/étnico/dane-se os nazistas, na presença desses alunos mal vestidos, com seus livros de reza em frente ao teatro Loew's Kameo. Aqui em Nova York, um judeu deveria sempre estar seguro. Então, qual o problema de eles transarem como coelhos usando um buraco no lençol? Não faltavam judeus no mundo? Além do que, alguém deveria pensar em D-us o tempo todo, mesmo aqui, nessa nova terra com casas de garagens para dois carros, beisebol e templos reformistas.
Agora, entretanto, com sua fortuna imobiliária, força política e grande número de negócios, a expansão hassídica coloca uma questão: podem ser os chapéus pretos a nova cara da tribo?


Crianças negras
"Só sobre meu cadáver!", diz Matty Feinman, que divaga se, com toda a sua interminável halachá (conjunto de leis da religião judaica), o povo de KJ é mesmo judeu, muito menos se é de Nova York. "Eles são uma seita! Eles não acreditam na ciência. Odeiam arte e literatura. Não pagam impostos. Para mim, ser judeu significa ser curioso, ter compaixão pelos outros. Esses caras só pensam neles mesmos."
Isso é algo que Matty sabe por "experiência pessoal". Os Feinmans têm três filhos, sendo duas meninas. Seu filho é homossexual, e os Feinmans têm muito orgulho dele. Uma de suas filhas adotou duas crianças negras, e os Feinmans são loucos por elas. Sua outra filha, Deborah, a mãe de Gitty, se juntou ao movimento hassídico. Isso tem sido um problema sem fim.
"Deborah é a última pessoa que eu imaginaria se envolvendo nisso", conta Carol Feinman. "Ela tem um espírito tão artístico, mas também precisa de estrutura. Quando ela começou no hassidismo, pensei que pelo menos eram judeus."
As coisas saíram do planejado quando Deborah apresentou Chaim Kalfa, o lubavitcher (hassídicos vindos da Rússia) que viria a se tornar o pai de Gitty. "Aquele sim era uma peça. Uma vez ele entrou, foi direto na geladeira e começou a tirar as coisas. Eu disse: 'O que você está fazendo? Eu acabei de comprar isso aí'. Ele disse que não eram kasher. Matty tinha pintado esse quadro, de um amigo, um homem negro vestindo camiseta. Eles queriam que virássemos o quadro para a parede, que não era modesto. Matty disse: 'Espera aí, é o meu amigo!'."
Matty continua a história: "Uma noite, Chaim me disse para encontrá-lo no Columbus Circle, para que pudéssemos resolver as coisas de vez. Fui de metrô com uma barra de ferro enfiada nas calças. Os tiras deviam estar lá, o cara era louco, violento, abusivo. A última coisa que soube é que ele estava em Israel montado em um burro gritando que o rabino Schneerson era Jesus Cristo". Depois do término de seu casamento com Chaim, Deborah deixou os lubavitchers, levando com ela Gitty e seus dois irmãos para se juntarem aos austeros satmars, em KJ, onde se casou com Avrum Schwartz e teve mais três filhos.
Apesar de agradecido pelos satmars terem recebido Deborah, Matty viu pouca melhora. "Os lubavitchers têm uma certa alegria. Os satmars são loucos. Eles dizem que Israel não deveria existir porque o Messias ainda não chegou, que o Holocausto foi a maneira de Deus punir os judeus por sionismo. Te deixam enojado."
A situação de Gitty trouxe muito da raiva de Matty de volta. "Eles querem famílias tão grandes, mas a maneira de eles serem judeus acabou com nossa família", ele diz. "Deborah absorveu o que há de pior." Nos últimos anos, o irmão e a irmã de Gitty, os outros filhos de Chaim, também deixaram KJ. "Ela perdeu três filhos por causa disso." Agora a dor se estendeu até outra geração.
Carol e Matty suspiram. Nenhum dos dois quer reviver essas memórias. Carol Feinman ainda tem uma coisa a dizer. "Teve esse Hanuká", ela diz. "Estávamos indo a uma festa e convidamos Deborah. Não achei que iria, mas ela pareceu animada com a ideia. Daí ela ligou fazendo um monte de perguntas sobre quem estaria lá, se haveria não-judeus. Eu disse: 'Provavelmente'. Ela veio, e todos ficaram felizes em vê-la... mas, na hora do jantar, ela não se sentou à mesa. Em vez disso, virou-se para a parede e começou a rezar. Foi isso que o rabino satmar disse que ela deveria fazer se tivesse que sentar com não-judeus: olhe para a parede e reze."


TOMA LÁ
Ao entregar sua filha para Yoeli, seu ex-marido, Gitty sabe que terá início uma via-crúcis de telefonemas não atendidos, proibições e várias outras artimanhas para mantê-la o mais afastada possível da menina. Enquanto não sai a decisão final sobre o seu caso, ela tem de se contentar em receber ligações feitas por ordem judicial
Aquela do Elvis
Deborah Feinman Schwartz fica de pé em sua varanda, segurando a porta da cozinha. Em uma situação diferente, nós dois, Deborah e eu, da mesma geração de judeus de Nova York, poderíamos ter coisas para conversar. "Ela foi uma hippie de verdade", conta Gitty sobre sua mãe. Dava para imaginar através do turbante em sua cabeça, do casaco com cara de cobertor em seus ombros e os olhos vermelhos: a jovem Deborah Feinman saindo do metrô, uma das garotas com um violão e visual improvável. Ela, entretanto, não era uma pessoa que discutiria sua vida. A comunicação veio em fragmentos.
Outra vez, apoiada na janela do carro, pensando o que um homem casado de 60 anos fazia por aí com sua filha de 23, Deborah parou no meio de uma frase. "Elvis Presley", ela disse. Eu não tinha nem percebido, mas "Are You Lonesome Tonight?" tocava baixinho no iPod. Mas bem naquela hora, Avrum, o padrasto de Gitty, apareceu em sua van, interrompendo a conversa. "Viu, minha mãe se cala na hora?", Gitty falou depois.
O convite para entrar na cozinha de Deborah foi fruto de muita negociação. Gitty também queria subir, mas, por causa de sua teimosia e rebelião infinitas, ela estava vestindo calças. Ficou decidido que eu subiria, pegaria uma saia e traria para Gitty, para que ela pudesse modestamente transpor a pouca distância entre o estacionamento e a porta do apartamento.
"Espere aqui", disse Deborah, enquanto deixava a sala de estar. A cozinha da família Schwartz estava em um momento de transição. Comida em todo lugar, colocada em balcões e armários abertos. Três fogões dispostos em ângulos improváveis. Na sala ao lado, um armário em madeira escura abrigava uma vasta seleção de livros de reza.
Enquanto seus irmãos estudavam a Torá na Yeshivá (nome dado às instituições para estudo do livro) quase 15 horas por dia, Gitty muitas vezes fazia suas lições aqui, decorando conceitos como o yichud, ou "isolamento", como quando é apropriado para um satmar solteiro ficar sozinho na presença de uma satmar também solteira.
Foi também na escola, olhando para uma série de livros com grandes partes pintadas de preto, que jovens satmars aprenderam que nunca houve nada como a tal de evolução, que ossos de dinossauro não são nada mais do que uma suposição sobre um mundo antigo inacessível e que as estrelas no céu não são estrelas, mas pontos de luz em um vasto tecido colocado por D-us para os judeus observarem enquanto faziam sua passagem pelo mundo profano. Um mundo com data marcada para o fim com a chegada do sétimo milênio hebreu, agora distante 232 anos. A educação formal de Gitty acabou quando ela ficou noiva de Yoely. Na tradição de KJ, ela agora estava pronta para constituir uma família.
Deborah conta que a decisão de Gitty em falar sobre sua vida em KJ é "a ação de uma criança frustrada, alguém que tentamos ajudar, mas que recusou o apoio". Questionando a maturidade de Gitty, Deborah diz: "Minha filha não é mensch (palavra yiddish para uma pessoa íntegra e honrada). Em vez de sair pisando na cabeça de todo mundo, ela deveria assumir as suas responsabilidades". Haveria um lugar para Gitty em KJ se ela não fosse religiosa? Deborah diz: "Ela deveria parar de culpar a religião e de tentar nos pintar como monstros". Ouvindo, Gitty responde: "Isso só me enfurece". De qualquer forma, ela sempre amará sua mãe, mesmo que esse amor venha misturado com rashmonus, que é a palavra yiddish para pena. "Eu sei o que ela passa", conta Gitty, relembrando quando tinha dez anos e Deborah saiu de KJ carregando a filha e os irmãos. "Ela estava fugindo", diz Gitty. "Ficávamos duas semanas em cada lugar, como refugiados." No fim, acabaram em um abrigo onde permaneceram por várias semanas.


É proibido cantar
Para Gitty, aquele abrigo foi um momento de mudança. "Meu padrasto dizia para não mascar chiclete porque apenas goys e cavalos faziam isso. No abrigo conheci judeus que não eram religiosos, negros, católicos. Eles não pareciam tão maus. No aniversário do meu irmão, eles fizeram uma festa, cantaram 'Parabéns pra Você'." Em KJ, ninguém cantava isso. Gitty conta que por muito tempo tentou fazer a mãe cantar "Somewhere Over the Rainbow", do "Mágico de Oz". Por algum tempo, Gitty achou que sua mãe não cantava porque "nós éramos ensinados que, quando um arco-íris aparecia no céu, era porque D-us estava bravo com os judeus. D-us uma vez destruiu o mundo com uma inundação, mas ele prometeu nunca fazer isso novamente. Agora, em vez de enchentes, ele coloca um arco-íris, como sinal. Quando você vê um arco-íris, deve se arrepender. Eles sempre me deixam ansiosa".
A verdadeira razão de sua mãe ficar relutante em cantar, conta Gitty, é que em KJ um homem não deve ouvir uma mulher cantando, especialmente se ela tiver uma linda voz. Isso o distrai de seus pensamentos em D-us.
Às vezes, enfeitando seu cabelo, passando delineador ou olhando para o nada com uma roda de fumaça de cigarro escapando de sua boca, Gitty lembra a Elizabeth Taylor de "Gata em Teto de Zinco Quente". Gitty - que, claro, não sabe quem é Elizabeth Taylor - pergunta: "Isso é bom?". Disse que sim, então Gitty sorriu como quem sabe que é bonita. Mas diga que ela fica bem nos shorts de cintura alta que ela comprou por US$ 14, e Gitty revela alívio mais do que qualquer coisa. Se a misteriosa dádiva da beleza requer uma pitada de sorte, o pai de Gitty, o maluco do Chaim, depósito de sangue sefárdico, escuro e reflexivo, fez a ela um favor, geneticamente falando. Deu a Gitty um caminho para fora de KJ.
Gitty diz que tinha pouca ideia de que poderia ser bonita antes de se casar. "Você não pensa sobre isso. Algumas casas de KJ nem têm espelhos. Meninos não podem olhar para eles. É vaidade." A beleza de Gitty nunca foi assunto até Yoely contar que seus amigos o estavam parabenizando por conseguir uma garota tão linda. Ela conta que ficou feliz em casar com Yoely. "Eu queria sair da casa dos meus pais. Casamento significa mais liberdade." Além do mais, Yoely parecia relativamente liberal. Ele mantinha a barba aparada e colocava seus peyot (cachos de cabelos) atrás das orelhas. Fazendo uma retrospectiva, Gitty diz que seu casamento estava condenado logo no início. "Em KJ, você deve transar na sua noite de núpcias", conta Gitty. "Se não, seu casamento não terá sido consumado." Uma noite antes, afirma Gitty, "eles oferecem uma kallah [ajudante de noivas], que lhe diz o que você precisa saber sobre sexo, porque não sabemos nada".
Enquanto dispensa aquele velho mito do lençol com um buraco, Gitty explica muitos outros fatos sobre as "abelhas" na vida em KJ. "Como dormir com seu marido nas noites de sexta é duas vezes melhor do que nas outras noites. Mas você não pode olhar para ele. O quarto deve estar completamente escuro. Não tem preliminares. É totalmente sobre reprodução. Você deve pensar em D-us o tempo todo."
"Muitos noivos desmaiam em sua noite de núpcias", continua Gitty. "Veja bem, antes de se unir, o casal fica separado. Você fala com a pessoa uma ou duas vezes. Na sua noite de núpcias, você deve transar com um completo desconhecido. É realmente difícil para os garotos. É dito para os homens hassídicos que, se praticarem a masturbação, irão para o inferno. Desperdiçar sementes é o maior pecado. Na escola, muitos meninos têm seus bolsos costurados para não poderem se cutucar. Aí, de repente, eles estão com uma garota nua e acham que, se não transarem com ela e produzirem mais judeus, D-us ficará muito, mas muito bravo com eles. É muita pressão."


Lingeries e rabinos
Em um momento, Gitty começou a forçar os limites. "Eu realmente acreditava que, se quebrasse as regras, D-us me puniria. Mas vestia meia-calça, depois uma saia de jeans. Em KJ, o que realmente importa é o que as pessoas falam. É como eles mantêm você na linha. Quando Yoely ouviu que alguém tinha visto meu cabelo descoberto, ele disse: 'Você está me envergonhando. Você está envergonhando toda a minha família'."
O ponto crítico na "Guerra dos Grunwalds" provou ser o niddah, ou "separação", quando a mulher que está menstruando é considerada impura e mantida afastada de seu marido. "Não é apenas sua menstruação", diz Gitty. Depois que uma mulher para de sangrar, ela deve vestir roupa íntima branca por sete dias, sempre olhando se houve mais alguma perda de sangue. Se acontecer, a mulher leva para um rabino especial examinar a cor, forma e densidade da mancha. É ele quem revela quando é seguro para a mulher imergir no mikvah (banho ritual) e se juntar a seu marido novamente.
"Beleza, né? Um rabino velho olhar sua calcinha com uma lente de aumento! Em KJ, tudo é sobre sexo ou, melhor, sobre essa ideia de sexo inventada por homens 300 anos atrás. Eu parei de contar os dias, vestia só roupa íntima preta. Andava em volta da casa de shorts, porque, quando você é impura, seu marido não pode tocar, nem mesmo olhar para seu braço. Yoely cobria os olhos e chorava: 'Coloque seu turbante, por favor, coloque'."
Quando perguntei se ela estava torturando Yoely mostrando seu corpo, Gitty respondeu: "Talvez, mas ele me torturava. Ele me viu abraçar meu avô e começou a gritar que aquilo era um abraço sexual. Nos torturávamos um ao outro". Yoely cedeu em algumas coisas. Ele calculou errado quando colocou internet em sua casa. "Ele pensou: 'Eu dou isso a ela, e ela cala a boca e fica feliz'", diz Gitty. "Uma vez, em blogs sobre pessoas, li que, para aqueles que haviam fugido de lugares como KJ, não tinha volta. Isso me animou. Yoely me implorou para ficar. É humilhante para um homem satmar ser abandonado pela mulher, mas era tarde." Já fora de casa, Gitty começou seu próprio blog, o 1 Beautiful Stranger, no qual ela escreve sobre sua vida em KJ.


TOLERÂNCIA 1
Quando resolveu fugir de Kiryas Joel, a primeira parada escolhida por Gitty foi Monsey, no estado de Nova York, onde ela encontrou uma comunidade judaica bem mais tolerante para o seu jeito pouco ortodoxo de ser. Na época, fez amizade com um grupo de jovens judeus conhecidos como "os rebeldes", passou a sair com artistas e teve os seus primeiros contatos com as drogas
Chapéus de US$ 5.000
Em outra tarde de sexta-feira, voltamos a KJ. Gitty foi até lá com a esperança de ver Esther Miriam antes do Sabá. Mas ela deveria ter pedido autorização, por escrito, até quarta-feira. "Ele não pode me dizer isso só hoje, sexta!", Gitty falou raivosamente. Ela ligou para Yoely na loja de carros, mas ele não quis atender. Gitty conhecia o jogo. Yoely iria enrolá-la até que as sirenes do Sabá tocassem, e aí não haveria nada que ela pudesse fazer.
Gitty disse que seria interessante se víssemos os homens irem para os cultos de sexta-feira. Assim, depois de umas horas, estávamos estacionados na área do outro lado da enorme construção com ares de fortaleza e que serve como principal sinagoga de KJ. Sem querer ser vista, Gitty se disfarça sob uma jaqueta sentada no banco do passageiro, dando pequenas espiadas para oferecer um frequente "quem é quem" irreverente na passagem dos fiéis.
Nas tardes de sexta em Jerusalém, os chapéus pretos aparecem dançando em direção ao Muro das Lamentações. Em KJ, a procissão é mais silenciosa, um assunto mais cerimonioso. Com a lua cheia aparecendo por cima do telhado da sinagoga, pais chegam com seus filhos e netos, alguns de apenas 3 ou 4 anos, os peyot balançando nas laterais de suas cabeças. Enquanto observava gerações subindo pelos pesados degraus de pedra da sinagoga, ficava fácil pensar que era isso que o Baal Shem Tov queria dizer quando comparou seus seguidores a uma árvore, frondosa e imortal, com cada judeu sendo "um galho da Presença Divina".
Então, de repente, Gitty colocou sua cabeça embaixo do painel. "Porcaria. É Aaron Teitelbaum." E lá estava ele, não mais do que a seis metros de distância, o rabino e líder espiritual de Kyrias Joel. Metido em um sobretudo de cetim preto e andando com uma bengala de prata, Teitelbaum, de 60 anos, estava acompanhado de uma dúzia de seguidores, vários com shtreimels, o chapéu em forma de bolo com abas de pele frequentemente usado pelos homens satmars. "Sabe quanto custam aqueles shtreimels?", solta Gitty. "Cinco mil dólares, até seis. Algumas famílias vão à falência comprando esses chapéus."
Era presumido que Aaron, filho mais velho do rabino satmar Moses Teitelbaum, se tornasse o líder. Entretanto, em 1999, o velho dividiu o reino entre Aaron e seu irmão mais novo, Zalmen. Na partilha em estilo bíblico que se seguiu - a qual muitos dizem ter sido sobre propriedades e força, mais do que sobre devoção religiosa -, Zalmen acabou com Williamsburg, a jóia da coroa, deixando KJ para Aaron.
Gitty espiou pelo vidro amarelado das janelas da sinagoga. Os homens começavam a rezar, suas cabeças balançando para frente e para trás, parecendo silhuetas em seus trajes negros. "Eu os invejo às vezes", disse Gitty. "Eles nunca mais terão que tomar uma decisão em suas vidas."
Depois de deixar KJ, Gitty caiu no grupo dos "rebeldes e desertores" hassídicos, pessoas que como ela haviam fugido ou sido expulsas de lugares como KJ. "Em KJ, eu era uma aberração", conta Gitty. "Os rebeldes me disseram que eu era legal. Senti como se tivesse saído da prisão. Se tivesse uma festa rolando naquela noite e eu fosse convidada, consideraria muito a ideia de ir."
Esse foi o começo de tempos malucos, dando voltas em Monsey e no Lower East Side, saindo com artistas e pessoas que tentavam fazer algo bonito. Quando levaram Esther Miriam, Gitty se tornou uma celebridade da turma. Todos sabiam da história de Gitty e sua filha.Entretanto, no fim, Gitty decidiu que a turma era um "dano" para ela. Ali estavam pessoas brilhantes, arruinadas, vagando de lugar em lugar, sem casa, chapados até a raiz do cabelo. Na última Festa de Purim, um dos rebeldes teve uma overdose de cocaína e Xanax triturado, uma mistura de drogas típica de um ex-hassídico. Os rebeldes ficam presos entre dois mundos, pensou Gitty, um lugar perigoso de estar.
"Primeiro eu amei. Depois me assustou, agora me deixa triste", contou Gitty, em uma tarde de primavera perto de um lago em South Fallsburg, não muito longe do agora fechado hotel Pines e, anteriormente, Borscht Belt (antigo resort predominantemente judeu). Os rebeldes conseguiram um acampamento no interior, uma casa antiga com telhados em estilo normando e aquecimento apenas com um fogão a lenha. Todo mundo estava em alguma onda, alguns em ácido, outros tocando músicas hassídicas, embrulhando uns aos outros em mantas de reza, gritando louvores de Baal Shem Tov e berrando que eram os "novos hippies". Olhando para os rebeldes chapados remando pelo lago semicongelado, Gitty disse: "Eles não sabem que se caírem vão morrer congelados?".
No caminho de volta naquela noite, Gitty perguntou sobre minhas impressões de KJ. Era uma pergunta irritante por uma razão simples: como você realmente pode saber sobre um lugar sem morar nele? Mesmo assim, estávamos lidando com impressões, e, mesmo que os satmars fossem famosos por sua bondade ou caridade, KJ não atingiu a esse viajante como um lugar muito acolhedor. Era o que eu tinha a dizer.
Na avenida Lee, em Williamsburg, não era tão difícil receber um sorriso e um sincero "zeit gezunt" de um satmar vestindo shtreimel. Eram pessoas civilizadas, norte-americanos, pessoas do mundo. Na região de KJ, entre esses caipiras hebreus e sua ideia fundamentalista de pessoas escolhidas, pergunte a alguém "qual o caminho para a estrada 17" e frequentemente eles lhe virarão a cara. A mensagem era clara: aqui, você é e sempre será o "outro".


SEM CONSOLO
Enquanto espera resolver a pendenga judicial que a mantém afastada de sua filha, Gitty é consolada por amigos, que dizem para ela se acalmar, pois é jovem e pode ter muitos outros filhos. "Minha vontade é dar um soco, quando ouço isso", diz ela
Tava tudo na cabeça
Os resultados da maioria das decisões tomadas pelo tribunal rabínico são aceitos pela corte civil. O que conta, diz um advogado matrimonial, é a "interpretação do termo 'o melhor para a criança'." Foi o caso na audiência de Gitty. "Eles me disseram que, se eu desse a Yoely um get, o divórcio judeu, eles me ajudariam a conseguir a custódia, mas foi tudo mentira. Eles me falaram que Esther Miriam deveria ficar com meu ex-marido até eu ter me estabelecido. Achei que já tivesse conseguido isso. Eu tinha um apartamento e um emprego. Mas, para eles, era preciso que eu voltasse a ser religiosa."
O caso de custódia subsequente não poderia começar de maneira mais promissora. Vestindo uma saia justa, botas de salto alto e cabelo bem escovado, Gitty estava otimista quando entrou no tribunal de Orange County para sua primeira audiência. Essas esperanças foram logo frustradas quando o advogado de Yoely exigiu que Gitty se submetesse imediatamente a um exame de drogas que usasse um "folículo capilar".
Esse tipo de teste pode detectar o uso de drogas após meses. Era o plano de Yoely desde o começo, disse Gitty. Ele sabia sobre os rebeldes e que sua ex havia ficado com eles por um tempo. O advogado de Gitty, Daniel Schwartz, não ofereceu muito conforto. "Se você não passar no teste, pode dizer adeus à custódia", foi o que ele disse. "Você está frita."
"Eu fumei um baseado meses atrás, e isso lhes dá o direito de tirar minha filha?", reclama Gitty. Uma hora depois, ela estava em um cabeleireiro em Nanuet procurando por um xampu que seus amigos rebeldes indicaram para ela poder passar no teste. "Urtiga e sassafrás", Gitty leu pausadamente na lista de ingredientes incomuns. "Isso nunca vai dar certo."
O teste de Gitty deu positivo como ela já previra. Mas, diferentemente do vaticínio do advogado, ela não está frita. Não ainda. Mas as audiências no tribunal levam tempo, algo que Gitty não tem. Ela sabia que Yoely havia casado. Logo começaria uma nova família. Como filha de Chaim e enteada de Avrum, ela sabia o que isso significava. Possivelmente, em breve, Esther Miriam se tornaria nada mais do que um segundo plano, uma lembrança ruim do primeiro e falido casamento de seu ex-marido. Ela seria a enteada mais velha que cuida dos menores e favorecidos irmãos, alguém que deixa tudo limpo para cada Pessach, alguém que viu lindos arco-íris, mas que só sentiu medo. Mas o maior pesadelo: Esther Miriam casar aos 17 anos e ter uma dúzia de filhos com um cara indiferente de KJ, que ela nunca amou. Do ponto de vista de Gitty, não poderia haver um próximo capítulo pior do que esse na saga de gerações de judeus nova-iorquinos que começou com Matty e Carol Feinman.

Barbies com fita isolante
Enquanto isso, Gitty está tentando ser "normal". Na maior parte do tempo, ela procura um emprego, o que é difícil, já que, como a maioria das pessoas que deixou KJ, ela não tem um diploma de segundo grau e é dona de poucas habilidades. "Mesmo em lanchonetes eles querem experiência", ela conta. O fato é que, mesmo que ela comesse dim sum (prato chinês) pela primeira vez e pronunciasse perfeitamente, a falta de conhecimento de Gitty sobre cozinha que não seja kugel (prato típico judeu) é perceptível.
Outro dia ela teve de perguntar o que era lagosta. Sua maior chance para obter um emprego parece ser como acompanhante para idosos, um campo no qual quem tem yiddish fluente pode ser promissor. Gitty não considera uma opção muito excitante, já que se imagina mais na área de moda ou das artes dramáticas.
Mas ela está fazendo de tudo para "se manter positiva". Recentemente, seu amado irmão mais novo, Sruli, veio para Nova York vindo de Toronto, onde recebeu uma bolsa de estudos para uma escola de artes depois de fugir de KJ. Eles ficaram na casa de Matty e Carol e foram ao Museu Metropolitan. Pouco a pouco, Gitty vai preenchendo o que ela chama de "falta de noção". Outro dia, mexendo no iPod, ela disse: "Billie Holiday. Minha avó ama Billie Holiday". Logo depois, quando "What a Little Moonlight Can Do" começou a tocar, Gitty perguntou: "Uau, Billie Holiday é uma mulher?".
Enquanto o caso se arrasta, alguns amigos tentam consolá-la dizendo a ela que terá mais filhos e a dor que ela sente por Esther irá passar. "Eu ouço isso e quero socar a cara dessas pessoas", diz. Ela sabe que nada estará certo sem Esther Miriam. Há duas semanas, depois da briga de sempre, Yoely concordou em deixar Gitty ver Esther na casa de Deborah. Gitty chegou e achou as Barbies que ela tinha comprado para Esther embrulhadas em fita isolante. "Meus pais disseram que eram ídolos", conta Gitty. "Então Esther Miriam começou a cantar, e eles chamaram um rabino para saber se os homens podiam ouvir a voz de uma menina de 4 anos."
Poucos dias depois, Gitty estava de volta a Williamsburg. Boné vermelho na cabeça, bonita em uma camiseta cinza com as mangas cortadas, ela estava em um restaurante brasileiro na ponte que leva o nome da cidade, comendo um ensopado de peixe que ela nunca tinha experimentado. Lembrando sobre os detalhes de seu fim de semana, ela disse: "Eu devo ter uma cabeça de metal para não ficar louca com tudo isso".
Então seu celular tocou. Era Esther Miriam. O telefonema era ordem do tribunal, dada pelo juiz de Orange County, depois de saber que Yoely se recusava a atender o telefone quando Gitty ligava. "Mamãe", veio a vozinha, audível mesmo com o trem passando. "Esther Miriam!", Gitty respondeu. Quando Esther perguntou quando veria a mãe novamente, Gitty secou uma lágrima e disse: "Breve... muito em breve".
Copyright 2008 "New York". Distribuida por Tribune Media Services

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