"É cobra. Pode jogar no
bicho que dá cobra", diz, com um sorriso largo, o taxista aposentado
Alexander Liberman sobre o número marcado em seu antebraço esquerdo:
A18.534.
O bom humor certamente o ajudou a chegar aos 80 anos e não dá
pistas do que a vida lhe reservou até aqui. Aos 9 anos, levou um tiro e
passou por sete campos de concentração na Polônia, Alemanha, Áustria e
Bósnia. Perdeu pai, mãe e três irmãos, mortos pelos nazistas.
Com o fim
da II Guerra Mundial, foi levado para a Rússia e conheceu Josef Stalin.
Soldados soviéticos ficaram tão impressionados com seu precário estado
de saúde que decidiram mostrá-lo ao ditador. Em 1947, embarcou no navio
“Exodus” para Israel, que levava ilegalmente refugiados judeus, mas
acabou preso na ilha de Chipre após
confrontar tropas inglesas que interceptaram o navio. Mais tarde, já
sargento do Exército israelense, foi atingido por estilhaços de duas
granadas durante a Guerra de Independência do país. Uma delas o deixou
surdo de um ouvido. Tudo isso até os 21 anos.
Aos 25 anos, ele veio para o Brasil, onde foi motorista de
táxi até cerca de dois anos atrás nas ruas do Rio de Janeiro. E só
recentemente ganhou coragem para contar sua história: "Antes eu me
revoltava... Agora conto porque já estou no final... É lógico que me
emociono lembrando, já tive muito pesadelo com isso. Mas não tenho mais.
O que tinha que passar, passei. Perdi tanta coisa na minha vida... Mas
agora estou tranquilo".
Como era sua vida antes da guerra?
Tive uma infância tranquila até os 9 anos. Meu pai era
comerciante de material de sapateiro, com meu tio. Nasci na Polônia, em
1930. Eu tinha três irmãos: um de 7 anos, uma de 3 e uma bebê de 6
meses.
O que houve com sua família após a invasão da Polônia, em 1939?
Os alemães logo caíram em cima dos judeus. Primeiro, foram
à loja e levaram meu pai e meu tio para Treblinka. Soubemos que os dois
foram mortos na guilhotina lá. A gente se escondeu no forro de casa por
dois meses, vivendo do que havia na cozinha. Fomos descobertos, nos
levaram para um polígono da cidade e botaram a gente na fila para
morrer. Vi pessoas sendo fuziladas. Aí pegaram minha irmãzinha de 6
meses, jogaram para o alto e atiraram, como se fosse uma brincadeirinha.
Gritei na hora para minha mãe: "Vou fugir. Não vou dar minha cabeça!"
Fugi, me desviando das balas, mas uma pegou aqui (mostra uma cicatriz no
abdômen). Consegui sumir na floresta que havia ali perto.
Alguém da sua família sobreviveu?
Não sei quando morreram. Não achei nada. Mas morreram, ou
eu teria achado. Procurei, mas nunca tive notícia. Descobri um tio em
Israel. Depois, achei uma tia na Argentina e um tio no Uruguai.
E o tiro no abdômen?
Essa bala não caiu num lugar para me matar, né? Encontrei
seis ou sete pessoas escondidas na floresta. Tinha que entrar naquele
grupo que estava lutando com os alemães. Eu era o mais novo, mas era bem
desenvolvido e acharam que eu podia ajudar em alguma coisa. Arrumamos
gaze e iodo para o ferimento. E não inflamou.
Como era a vida na floresta?
Vivíamos em cima das árvores para não sermos vistos. Os
outros tinham fuzis. Me arranjaram um revólver pequeno e me ensinaram a
atirar. Fiquei uns dois meses com esse grupo. Éramos partisans. Íamos às
casas próximas pegar comida, mas não tinha muito. Uma vez me mandaram à
cidade comprar comida, achando que, porque eu era criança, não
desconfiariam de mim. Quando eu estava saindo da loja, dois soldados me
viram e perguntaram: "Você é judeu?" Eu disse que não, mas me levaram
para um quarto e abaixaram minha calça. Fui levado para um campo de
trabalho em Budzyn, onde plantávamos batatas. Fui escolhido várias vezes
para morrer, mas me escondia nos barracões lotados. No dia seguinte,
saía para trabalhar normalmente. Alguns meninos conseguiram se esconder,
outros foram achados e morreram. Passei por sete campos de
concentração. Em alguns, fiquei só um período de quarentena antes de ser
mandado para o que deveria ficar mesmo. Com a guerra já braba, os
russos se aproximaram e os alemães levaram a gente para o campo de
Majdanek, com sete câmaras de gás. Os nazistas me escolheram para
arrancar os dentes de ouro dos judeus mortos usando alicates. Tinha
gente que sobrevivia e pedia: "Arranca os dentes, mas não conta que
estou vivo!" Tirei dentes de ouro de pessoas vivas. Não doía, não
gritavam. Depois, fomos levados embora, a pé.
Quando?
Eu não sabia mais do tempo. Sabia que estava no galinheiro
com as outras galinhas e que precisava arranjar um jeito de sobreviver.
A guerra é uma confusão danada.
Como o senhor lidava com tudo isso?
Só pensava em viver. Vi um tio morrer e não chorei.
Encontrei o irmão do meu pai num dos campos - morreu de tifo. Não dava
tempo de chorar. Chorei uma só vez, quando fui pego, aos 9 anos. Achava
que ia morrer, mas nunca pensei em entregar os pontos.
Mas o senhor não sentia revolta?
Claro! Quando pedi ajuda a Deus, não fui atendido. Eu
disse então: "Sou ateu!" E eu me revoltava comigo mesmo por ter nascido
judeu. Se eu não fosse judeu, não estaria passando por tudo aquilo. Era o
que eu pensava. Perdi tanta coisa na vida... e era uma criança. Eu não
entendia.
E depois de Majdanek?
Fui levado para Birkenau, em Auschwitz. Foi lá que me
marcaram, botaram o número no meu braço: A18.534. Pode jogar no bicho
que dá cobra! Foi um dos campos em que estive de passagem. Lá me
ensinaram a ser ferramenteiro. Para não morrer, tinha vontade de
aprender tudo. Me levaram para trabalhar numa fábrica de aviões e
canhões. Fui para um lugar chamado Laurahütte (um subcampo do complexo
Auschwitz-Birkenau). O engenheiro de lá gostava do meu serviço, tinha
pena de mim e me dava, escondido, uns sanduíches. Mas os americanos se
aproximaram e tive de me mudar de novo. Fomos para vagões de trem
superlotados. Levaram a gente para Mauthausen-Gusen (Áustria) e depois
para Dachau (Alemanha). Ficamos também pouco tempo. De lá, fomos para o
campo de Gradiska (Bósnia). Quando cheguei, em 1945, eu já estava tão
magro que parecia um esqueleto
vivo. Estava com 14 anos e com tifo, mas eu ainda não sabia.
Como foi sua libertação?
Os russos chegaram e libertaram o campo (em 23 de abril de
1945). Eles me viram daquele jeito, ficaram impressionados por eu estar
vivo e disseram: "Temos de mostrar esse aqui para alguém!" Então me
limparam e me botaram num avião para Moscou. Me levaram ao Kremlin.
Encontrei Stalin e ele me perguntou se eu sabia falar russo. Eu falava
um pouquinho. Stalin me disse que eu seria bem tratado e mandou me
botarem num internato em Moscou. Eu estava muito fraco e tinha um grupo
de garotos vagabundos. Eu estava com uma roupa boa, que os russos me
deram. Quando dormi, veio um mais forte e levou minha roupa. O que eu ia
fazer? Roubei a roupa de um menino ainda mais fraco e fui embora. Achei
a Cruz Vermelha e pedi para ir para a Polônia.
O senhor conseguiu?
Voltei, mas estava muito fraco. Estava bem doente, com
febre e manchas no corpo: era tifo. Fiquei meses no hospital. Quando saí
da cama, não conseguia andar. Chegou um avião dos Estados Unidos para
levar uma turma para lá, mas eu não quis ir.
Por que não?
Tinha medo de que me matassem. Queria ir para Israel, mas
acabei indo para a Alemanha. Me levaram para um internato para
sobreviventes de guerra em Landsberg am Lech, onde fiquei dois anos. Já
tinha um grupo de Israel lá, o Haganah Palmach (uma milícia). Aprendi
hebraico - antes, falava polonês, alemão, ídish e um pouco de russo.
Fizemos treinamento de táticas de guerra. Em 1947, eu estava com 16
anos, chegou o “Exodus” (navio que levava refugiados para Israel). Eu
queria ficar com os que sofreram como eu. Não queria me afastar dos
judeus. Sabíamos que iríamos lutar lá e já tínhamos aprendido a lutar na
Alemanha. Já tivemos que lutar no navio, com os ingleses (em 1947, a
Inglaterra proibiu a imigração clandestina para Israel. O Exodus, com
4515 sobreviventes do Holocausto, foi o primeiro navio a receber a ordem
marítima policial, em 18 de
julho. Houve combate a bordo e três pessoas morreram). Fui mandado para
uma prisão no Chipre, onde fiquei uns dois meses. Primeiro tentei fugir
dentro de um caminhão de lixo, mas me pegaram. Com 17 anos, fui solto e
consegui ir para Israel. Fui direto para um kibutz trabalhar na terra e
aprender coisas do Exército. No Exército, fui treinador de recrutas e
paraquedista. Lutamos contra os árabes, participei da Batalha do Egito.
Isso foi em 1948, por aí. A gente libertou Israel. Fiquei nas Forças
Armadas até 1951.
Como foi sua participação na guerra?
Saltei de paraquedas em lugares perigosos. Uma vez, nosso
helicóptero desceu no deserto de Negev. Teve tiroteio e fui atingido,
atrás da orelha esquerda, por estilhaços de uma granada. Fiquei três
meses no hospital e sou surdo desse ouvido. Também tenho uma cicatriz na
perna direita por causa de outra granada. Em Israel, me casei. Tenho
duas filhas lá, seis netos e sete bisnetos. Trabalhei em construção, em
muita coisa.
Por que o senhor veio para o Brasil?
Eu achava que tinha direito a alguma coisa lá (uma
indenização), mas eu não tinha pistolão. Pensei: "Depois de tudo o que
eu fiz, ainda preciso de pistolão?" Aí me aborreci, quis ir embora, em
1958. Vim com uns amigos. Depois, minha mulher veio com minhas filhas,
uma com 3 anos e a outra com uns 9 meses. Moramos em Ramos (no Rio de
Janeiro), mas ela não aguentou a umidade. Tinha bronquite, quis voltar
para Israel. Mas eu não podia, né? Trabalhava como vendedor.
O que o senhor fez aqui?
Eu não falava português. Vendia roupas de porta em porta
lendo um texto. Me naturalizei brasileiro em 1963. Tive uma loja de
modas em Ipanema, depois um salão de cabeleireiro e uma butique na
Gávea. Nessa época, arranjei uma úlcera. O doutor Gazzola, um médico que
alugava um quarto na minha casa quando era estudante, me operou. Nessa
operação, ele tirou aquela bala do abdômen! Depois, a butique não andava
bem. Comecei a trabalhar como motorista de táxi nos anos 1960 e foi
assim até dois anos atrás. Uma vez, fui sequestrado. Me deram uma
injeção de gasolina, me roubaram, mas não levaram o táxi. Isso foi há
uns 30 anos. Outra vez, escapei de um assalto no Flamengo me jogando
debaixo do carro. Hoje, tem uma pessoa que dirige meu táxi. Recebo uma
indenização dos alemães, uma mixaria, e outra mixaria de aposentadoria.
Mas me casei de novo aqui (com a católica Lenice, 60 anos), tive dois
filhos: o Anderson (engenheiro, 30) e a Alexandra (designer, 25).
O senhor tem algum contato com suas filhas em Israel?
Eu não tinha nenhum contato. Ela (aponta para Alexandra) é
que achou minhas filhas e foi à casa delas lá. Quando elas saíram
daqui, tentei me comunicar, mas não consegui. Fui ao consulado, pedia
ajuda a quem ia para Israel e nada. Falei com minhas filhas (Hedva, 55
anos, e Yocheved, 53) por telefone. Fico feliz de saber que estão bem.
Um dos meus netos já veio me visitar (Alexandra explica que, na verdade,
foram elas que os encontraram com a ajuda do Museu do Holocausto de
Washington).
Por que o senhor demorou tanto para contar sua história?
No táxi, jornalistas viam esse número no meu braço e
queriam que eu contasse a minha vida. Mas o meu advogado, na época,
achava melhor não para não atrapalhar as coisas com a indenização dos
alemães. E antes eu não conseguia nem contar porque me revoltava. Agora
conto porque já estou no final... Lógico que me emociono lembrando, já
tive muito pesadelo com isso. Mas não tenho mais. O que tinha que
passar, passei. Perdi tanta coisa na minha vida... Agora estou
tranquilo.
Publicado em "Aventuras na História"