Joselaine Brondani Medeiros (PUCRS)
As discussões a respeito das conexões entre Literatura e História
norteiam muitas pesquisas na área das Letras. Ambas se complementam e
possibilitam um maior entendimento das mudanças sociais e políticas
ocorridas na sociedade. Porém não se pode esquecer que tanto a História,
como a Literatura não são neutras, pois o historiador e o escritor
apresentam a sua versão dos fatos, estando embutido um caráter
ideológico. Há autores que apresentam um posicionamento conservador, e
há outros que mostram um pensamento inovador. Cabe ao leitor discernir
esses posicionamentos apresentados e questioná-los para, assim,
construir o seu conhecimento.
Com a acepção de que a História não é linear, mas marcada por
ruínas, pretende-se entender o contexto da década de 30 e 40 européia.
Para isso, é necessário se reportar para o início do século XX, no qual
as disputas por territórios, por mercados consumidores e, sobretudo, por
poder trouxeram como conseqüência a Primeira Guerra Mundial. A Europa
viveu um período de turbulência não só política, como também social e
econômica. Muitas cidades ficaram destruídas, mas dos escombros se
reergueram com forte sentimento nacionalista. Desse nacionalismo
exacerbado, nasceu a vontade de dominar e de vencer a qualquer custo. O
poder e a ganância novamente levaram a mais outra guerra. Essa ainda
mais sangrenta e violenta.
No período que antecede a Segunda Guerra Mundial, vários ditadores
despontaram e conseguiram um grande número de adeptos, dentre eles,
Adolf Hitler, que adotava posturas autoritárias, pregando a supremacia
da raça ariana e condenando milhares de judeus ao exílio e aos campos de
concentração. O combate contra os judeus era justificado pelos nazistas
como uma necessidade biológica. Para os alemães nazistas, a raça
superior ariana venceria os parasitas judeus e impediria qualquer forma
de miscigenação, que era um sinônimo de decadência da civilização. A
concepção alemã primava, então, pela purificação e hegemonia da raça
ariana. Essas idéias podem ser observadas, através da fala de Himmler,
membro da cúpula de Hitler: "a luta anti-semita é só uma luta contra
parasitas. Livrar-se dos piolhos não é uma questão ideológica. É
simplesmente uma questão de limpeza" (apud: Cytrynowicz, 1990 p. 25).
A política anti-semita do nazismo visou especialmente os judeus,
mas não poupou também ciganos, negros, homossexuais, comunistas e
doentes mentais. Os doentes mentais, por exemplo, eram condenados à
morte por serem uma raça inferior e extirpá-los, como se faz a um câncer
maligno, só elevaria a saúde do povo alemão. Dentre as práticas, usadas
pelos doutores nazistas, estavam a esterilização e a eutanásia.
O nacionalismo nazista estava ligado umbilicalmente a um exacerbado
racismo e, mesmo em um país visto como o berço da intelectualidade,
Hitler conseguiu exercer um fascínio muito grande e dominar a nação.
Isso aconteceu porque, na Alemanha, houve cooptação de intelectuais e
uso intensivo da mídia, corroborando para a formação dessa figura
endeusada. O ponto chave foi, então, ideologia pregada por Hitler para
conseguir o domínio e a subordinação de uma nação inteira.
Houve três fases na política anti-semita nazista. A primeira, entre
1933 a 1939, caracterizada pela discriminação jurídica, espoliação
econômica e ameaça física ao povo judeu. A segunda, entre o início da
guerra e a Batalha de Stalingrado, marcada pela solução final
territorial dos judeus. A terceira, de Stalingrado até o final da
guerra, que é a fase do extermínio mais acentuado, com as execuções nas
câmaras de gás.
Em todas as fases, nota-se que os judeus foram alvos das mais
variadas violências: os seus bens foram confiscados, perderam as suas
casas, não podiam andar nas ruas, ir trabalhar, ir à escola ou à
universidade, pegar ônibus, freqüentar teatros e cinemas, tinham que
usar uma braçadeira branca com a estrela de David, o que possibilitava o
reconhecimento de um judeu a qualquer hora. Depois começaram os
trabalhos forçados e, por último, as deportações para os campos de
concentração a partir de 1940.
No transporte para os campos, muitos já foram mortos, pois os
caminhões estavam adaptados para lançar o monóxido de carbono,
asfixiando os ocupantes. "A asfixia demorava aproximadamente quinze
minutos. Ao abrir as portas do caminhão, os mortos tinham a face
desfigurada e os corpos cobertos de fezes" (Cytrynowicz, 1990 p. 65).
Nos vagões, não havia recipientes que serviam de latrina, provocando
aflição muito pior do que a sede e o frio. Assim, nas palavras de Primo
Levi: "evacuar em público era angustioso ou impossível: um trauma para
qual nossa civilização não nos prepara, uma ferida profunda infligida à
dignidade humana" (Levi, 2004 p. 96).
Todos os campos de extermínio possuíam linhas ferroviárias, e a
viagem começou a ser feita de trem. Nos trens, os vagões iam sempre
superlotados. Muitos prisioneiros morriam por falta de água e de
ventilação. O destino da maioria deles era Auschwitz, que foi construído
em 1940. Chegando lá, uma parte era selecionada para a morte, e outra,
para os trabalhos forçados. Assim, apontar para a direita era trabalho e
apontar para a esquerda era morte. Esse clima de destruição, em
Auschwitz, é vivenciado pelo escritor italiano Primo Levi.
Primo Levi era judeu, pertencente a uma família com boas condições
financeiras. Nasceu em Turim, em 1919, formou-se em Química pela
Universidade de Turim, um ano depois da Itália ter entrado na guerra ao
lado de Hitler. Em 1943, Levi juntou-se a um grupo de resistentes à
invasão alemã do norte da Itália. Foi preso em 1943 e, no início de
1944, estava em um comboio que o conduziria para Auschwitz. Lá
permaneceu 11 meses e sobreviveu ao campo de extermínio, devido aos seus
conhecimentos de química, à necessidade de mão-de-obra e à generosidade
de um trabalhador italiano, que lhe conseguia um suplemento de sopa.
Na obra É isto um Homem? há a representação da fase
histórica que se estende da Segunda Guerra Mundial até o seu término em
1945. Primo Levi sofreu as conseqüências do nazismo, foi perseguido e
levado aos campos de concentração por ser judeu. Ele permaneceu no campo
de Monowitz, no complexo de Auschwitz, durante o ano de 1944,
conseguindo sobreviver porque os alemães precisavam de mão de obra
especializada.
No complexo de Auschwitz, no sul da Polônia, foram exterminadas
cerca de 1,5 milhão de pessoas nas câmaras de gás. Este foi o maior
entre os dois mil campos de concentração e trabalhos forçados
construídos pelos nazistas. Em vista disso, tornou-se o símbolo da
barbárie nazista. Poucos são os sobreviventes de Auschwitz, e Primo Levi
foi um deles. Testemunhou a barbárie, que dizimou muitas famílias e
sentiu necessidade de narrar essa experiência - sabendo não ser esta
somente sua, mas de todo o povo judeu.
A partir da entrada no campo, os prisioneiros encontraram somente
hostilidade, eram separados dos seus familiares: as mulheres, as
crianças e os velhos partiam rumo à incerteza e à escuridão. Os homens
mais fortes e saudáveis do comboio de Levi juntavam-se a outros no campo
de trabalho, cujo objetivo era a instalação de uma fábrica de borracha
de nome Buna. Assim, a vida no campo se resumia a trabalhar, passar fome
(a comida era escassa; a sopa, aguada, e o pão, minguado), sede (a água
não era potável e fermentava no estômago, deixando-os inchados e
doentes) e frio (a neve cobria os campos, e eles, muitas vezes, tinham
que ficar nus para inspeções. As cobertas também eram escassas, muito
sujas e esfarrapadas).
Aqui estou no fundo do poço (...). Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarela, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos" (Levi, 1988 p. 35).
A única imagem refletida no espelho era a de fantasmas tosquiados e
disformes. No momento em que chegavam ao campo, eram enviados para uma
grande sala, onde tiravam as roupas, raspavam a cabeça e deixavam os
seus sapatos. Ganhavam outros, às vezes grandes, às vezes pequenos, que
não podiam ser trocados, tornando-se um forte instrumento de tortura. A
aniquilação do homem é total, realmente não há como se imaginar a
tamanha degradação e o quanto foram demolidos.
O regime extremamente desumano desgastava o físico e o psicológico.
As vítimas eram aniquiladas, devido à crueldade. As mulheres que
conseguiam sobreviver eram mandadas para Birkenau e tinham somente uma
gamela que servia tanto para tomar a sopa cotidiana, como para evacuar
durante a noite e se lavar quando havia água nos lavabos. Além disso,
todos constantemente tinham que ficar nus, devido ao controle dos
piolhos e sarnas, a buscas nas roupas, à lavação matinal, às seleções
periódicas, que serviam para enfraquecer mais o ser humano, que se
sentia como um verme: "nu, lento, ignóbil, vergado ao chão" (Levi, 2004
p. 98).
Em Turim, Levi começou a contar a sua experiência de sobrevivente
do massacre nazista. Em meio à dor, precisou enfrentá-la para fazer
justiça às vítimas, contando o processo de desumanização e degradação
que sofreram e todas as injustiças cometidas nos campos de aniquilamento
nazistas. Em uma entrevista para Ferdinando Camon (1997), Levi comentou
a sua necessidade de falar:
Depois do retorno de Auschwitz, eu tinha uma necessidade enorme de falar, encontrava aqui os meus velhos amigos e os enchia de histórias (...). Acredito ter sofrido um amadurecimento, tendo tido a sorte de sobreviver. Porque não se trata de força, mas de sorte: não se pode vencer com as próprias forças um campo de concentração. Fui afortunado: por ter sido químico, por ter encontrado um pedreiro que me dava de comer, por haver superado a dificuldade da língua; nunca adoeci, caí doente somente uma vez, já no final, e também isto foi uma grande sorte, porque evitei a evacuação do campo de concentração: os outros, os que estavam saudáveis, foram todos mortos, porque foram deportados para Buchenwald e Mauthausen, em pleno inverno.
Levi tinha a necessidade de falar porque teve a sorte de
sobreviver, mas, muitas vezes, o seu relato era pontuado de silêncios,
decorrentes da impossibilidade de verbalizar o ocorrido. O silêncio, o
vazio e a solidão estavam entranhados no seu corpo e na sua memória.
Pensa-se em como o sobrevivente poderia retomar a vida, sabendo que
passou por uma experiência tão intensa e dolorosa, ou seja, depois do
genocídio, os seus vínculos e os seus laços com o mundo real estavam
dilacerados.
A solidão do sobrevivente é a dor de descobrir-se em um mundo em que tudo tem a mesma aparência, homens, carros, médicos, caminhões, chuveiros, e não poder entender como tudo isso transfigurou-se em uma gigantesca máquina de morte. É dor pela sensação de absoluto isolamento em um mundo no qual seres humanos - máxima semelhança - tornaram-se assassinos de um povo (Cytrynowicz, 1999 p. 54).
Diante disso, a correlação narrar versus a impossibilidade de
narrar aflora, pois como articular a necessidade de narrar uma
experiência marcada pela barbárie, tendo consciência da percepção da
insuficiência de linguagem para expressá-la?
Adorno questionava se havia possibilidade de se fazer poesia depois
de Auschwitz. E o próprio Levi em depoimentos afirmava que a poesia era
resultado de duas mãos esquerdas. Com relação à imagem "duas mãos
esquerdas", pode-se pensar na impossibilidade de verbalizar a
catástrofe. A escrita é quase morta. Só há mãos esquerdas, porque
reflete a situação-limite em que se encontrava o escritor ao produzir
poesia.
O que resta de um homem quando todas as condições da existência
humana lhe são subtraídas? Será que há um discurso capaz de expressar
essa realidade, sem distorcê-la ou banalizá-la? Seligmann-Silva (2000 p.
75) argumenta que "com a nova definição da realidade como catástrofe, a
representação, vista na sua forma tradicional, passou, ela mesma, a ser
tratada como impossível; o elemento universal da linguagem é posto em
questão tanto quanto a possibilidade de uma intuição imediata da
realidade". Então, como expressar algo que vai além da nossa capacidade
de imaginar e representar?
A Shoah escapa à representação justamente devido à sua
grandiosidade: não foram dezenas de pessoas que perderam a vida no campo
de concentração; foram, sim, milhares. A visão de um campo de
concentração não corresponde a nada na nossa experiência, tornando quase
impossível de se crer. Daí a existência e, até mesmo, aceitação de
teorias de que o extermínio dos judeus não tivesse acontecido.
Nesse ponto, vale pensar em o porquê do livro É isto um homem?
ter caído no silêncio e no esquecimento quando foi publicado em 1947.
Parece que houve, por parte da sociedade em geral e, sobretudo, dos
Governos, uma vontade de negar a ocorrência da catástrofe. Isso mostra
que a construção da memória do passado e do conhecimento histórico está
intrinsecamente ligada aos interesses ideológicos e às lutas políticas
que pertencem ao presente. A construção da memória coletiva deveria
manter um elo com a envergadura ética, que se inscreve numa luta
política e histórica precisa.
Para os sobreviventes, a rememoração foi pontuada de tensões. Nos
seus depoimentos e mesmo nos seus escritos, há fragmentações,
descontinuidades, lapsos, silêncios. Mas esse silêncio era necessário,
ele talvez pudesse traduzir a dimensão do mal. O silêncio se tornava uma
espécie de prece aos mortos e uma demonstração de que os sobreviventes
passaram por uma situação-limite. Em suma, não havia palavras a "a
altura" desse evento.
Além do silêncio, na escrita deles, há a alegoria e a presença
constante devaneios. Os sonhos e as alucinações atormentavam as noites
cinzentas de Levi: realidade e sonho se misturavam:
O meu sono é leve, leve como um véu; posso rasgá-lo quando quero. Quero, sim, sair de cima dos trilhos. Pronto: estou acordado. Não bem acordado; só um pouco, entre a insensibilidade e a consciência. Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que o sono não fuja de mim, mas ouço ruídos: este apito ao longe sei que é verdade, não é da locomotiva do sonho (Levi, 1988 p. 59)
A locomotiva sempre trazia más noticias: mais companheiros
chegando, mais famílias a caminho da destruição, mais corpos
apodrecendo, após serem retirados da câmara de gás. Os próprios judeus
tinham a difícil tarefa de retirar os corpos dos mortos da câmara de
gás, porém não venciam transportá-los e enterrá-los nas valas, devido à
grande quantidade de mortes por dia. Os corpos chagavam a ficar até
semanas decompondo-se, cobertos de sangue, vermes e excrementos. Enfim,
no campo, os dias, as vidas, a fábrica, as esperanças eram cinzentas.
Era o inferno e, diante disso, "como é possível pensar? Não é mais
possível; é como se estivéssemos mortos" (Levi, 1988 p. 20).
Mesmo após a chegada em Turim, depois de trinta e cinco dias de
viagem, os sonhos não cessaram de atormentar Levi, angustiando-o:
Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho (...), mas, mesmo assim, sinto uma angustia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas às vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou no centro de um nada turvo e cinzento (..). Estou de novo no Lager (...) ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, um apalavra estrangeira, temida e esperada: levantem, "Wstavach" (Levi, 1997 p. 359).
Os pesadelos e os fantasmas da morte sempre rodeariam Levi. A luta
para se tentar vencer a morte e a dor não tinha trégua. A imagem do
transporte nos trens imundos, da seleção na descida do trem, da tatuagem
no braço e da câmara de gás ficaria para sempre calcada na memória.
Daí a necessidade da rememoração, enquanto gesto que destrói e
rompe com essas fantasmagorias, esbofeteando a sociedade a fim de que a
desperte. A sociedade precisa acordar e rever o passado, cavar em meio
aos escombros para descobrir os mortos e daí sepultá-los. Nesse gesto de
voltar para o passado, os cidadãos terão contato com uma História
esquecida, mas que precisa ser resgatada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAMON, F. Conversazione con Primo Levi. Parma: Ugo Guanda Editore, 1997.
CYTRYNOWICZ, R. Memória da barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. 2. ed. São Paulo: Nova Stella, 1991.
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