Uma crise sem precedentes na história de Israel está abalando o país. Trata-se de uma crise socioeconômica que, pela primeira vez, tirou a classe média da sua confortável indiferença com o que se passa fora da sua própria casa.
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Livni no protesto dos médicos |
Tudo começou há uns 4 meses com a greve dos médicos. Uma greve mansa, cada dia num hospital diferente, em cidades diferentes. Um dia paralisavam as salas de cirurgia, no outro dia os ambulatórios de modo que não pertubou demais o atendimento médico nos hospitais públicos, que representam mais de 90% dos serviços médicos de Israel. A greve foi declarada depois de alguns anos de negociação com os Ministérios da Saúde e da Fazenda.
As exigências da classe médica incluem vários aspectos básicos para uma melhoria dos serviços médicos prestados à população, que paga um seguro através das Kupot Cholim, ou seja uma Caixa de Assistência, como aumento do número de médicos nas unidades hospitalares, do número de leitos, principalmente nos departamentos de clínica médica, diminuição da carga horária dos médicos em fase de especialização, que dura entre 4 a 5 anos e que tem que cumprir oito a nove plantões mensais acumulando em dias de plantão, 30 horas de trabalho ininterruptas! E a relação das reivindicações é longa.
O governo entrou com uma ação judicial no Tribunal de Trabalho, exigindo a volta imediata ao trabalho e, paralelamente, continuar com as negociações. O Tribunal deu ganho de causa aos médicos e greve continua até hoje, porém mais agressiva.
Como se isso não bastasse, na 5ª. feira, 14/07, o dia da Bastilha, uma jovem estudante foi despejada do apartamento onde morava em Tel Aviv, por falta de pagamento. Como não tinha para onde ir, armou uma cabana numa das mais bonitas e importantes avenidas de Tel Aviv: a Sdera Rotchild, em frente ao Teatro Nacional Habima e ao Auditório Mann, o maior de Israel, sede da Filarmônica.
Tudo isto direto no facebook. Foi o estopim para queimar a pólvora acumulada há alguns anos, não só por culpa do atual governo, como também dos anteriores nas duas últimas décadas. Em poucas horas, dezenas de tendas iguais estavam alinhadas na avenida e no sábado seguinte, 48 horas depois, centenas de cabanas, em ordem simétrica decoravam um dos locais mais aristocráticos de Tel Aviv!
Não era um protesto da classe pobre, dos desempregados ou dos sem casa. Pela primeira vez, a classe média, que, como se diz aqui, carrega o país nas costas, entendeu que sem lutar, nada vai mudar.Os acampados sao profissionais liberais que trabalham, estudantes universitários que também trabalham para pagar os estudos que aqui são pagos, gente que prestou 3 anos de serviço militar obrigatório e que continua, na reserva, a servir entre 30 a 60 dias por ano (miluim), e que no fim do mês não consegue pagar as contas. Protesto contra o preço absurdo dos imóveis, dos aluguéis, do custo de vida que aumentou de forma dramática nos últimos 2 anos. Protesto contra o governo que esqueceu que não basta fortalecer a economia do país se o povo não tem acesso a este crescimento. Protesto contra a injustiça social, contra o desnivel entre ricos e pobres que se aprofundou demais, contra o esmagamento da classe média, que paga todos os impostos, que são muitos neste país, e não consegue se manter de pé.
O movimento iniciado em Tel Aviv se alastrou por todo o país e as cabanas cresceram como cogumelos depois das chuvas, do norte ao sul, pois os problemas sociais são os mesmos, as necessidades são idênticas como também as reivindicações, onde quer que a classe média viva.
Outros grupos se solidarizaram e atualmente o movimento abrange também famílias de meia idade que ainda não conseguiram chegar à independência econômica e não conseguem ajudar aos filhos jovens que estão dormindo nas barracas, gente de todas correntes politicas, pois o movimento é apolitico, enfim o apoio e incentivo chegam praticamente de todas as camadas da população.
O governo custou a se recuperar do impacto e da surpresa e só alguns dias depois começou o blablablá demagógico que ninguém mais compra, pois se tornou uma norma.O que os jovens querem são soluções, não imediatas, é claro, mas que sejam tomadas as decisões certas que darão seus frutos num prazo de tempo limitado e não num futuro longínquo.
Abrindo um parênteses, um fato interessante aconteceu no mês passado: um jovem, irritado com o aumento de preços dos alimentos básicos, principalmente dos laticínios que são muito apreciados pelos israelenses em geral, lançou no facebook uma campanha de boicote contra o queijo Cottage, que está no cardápio de quase 100% das familias do país.
O preço do dito Cottage aumentou tanto, que na Europa, que importa este produto de Israel, se vende o mesmo queijo mais barato do que aqui .Foi como um toque de despertar da inércia diante de tal absurdo. Ninguém mais comprou Cottage! Os fabricantes, a Tnuva, Strauss e Tara, que funcionam como um monopólio, sem concorrência, aumentando os preços em comum acordo, sem nenhuma interferência das autoridades relevantes, entraram em estado de choque e os preços baixaram imediatamente.
Este foi o início da mentalização do povo. Se há um problema, mesmo pequeno, que afeta a muitos, todas as diferenças se apagam, diferenças políticas, religiosas, sociais, regionais, classe média e pobres, não importa, todos se unem em torno de uma meta e se tranformam em força que consegue mudar uma realidade. A meta não é o governo. Num país democrático, quem muda o governo são os eleitores, no dia das eleições. O que este movimento social pleiteia é mudar o sistema econômico tão capitalista que chega a ser cruel.
Sábado, 30/07, 150 mil pessoas saíram às ruas clamando por JUSTIÇA SOCIAL. Todas as grandes manifestações públicas em Israel sempre giraram em torno de problemas de segurança nacional: guerra ou paz. A famosa manifestação em prol da Paz, em novembro de 1995, quando Itzchak Rabin z"l foi assassinado, reuniu na praça que hoje tem o seu nome, mais de 400 mil pessoas.
Ontem o cenário mudou e a "palavra de guerra" era JUSTIÇA SOCIAL, os jovens querem ver que o futuro existe para eles também.
A participação foi holística, jovens e idosos, famílias com crianças e bebês em carrinhos, olim chadashim e veteranos no país, todas as camadas da população estavam representadas nesta demonstração de solidariedade social e as passeatas e comícios se realizaram simultaneamente em mais de 10 cidades: Tel Aviv, mais de 50 mil participantes, Jerusalém e Haifa, 10 mil, Beer Sheva, Raanana, Kfar Saba, Ashdod,Ashkelon, Kriat Shmona, Modiin, Nazaré, e outras, num total de mais de 150 mil pessoas.
Os politicos estão de fora. É uma campanha popular, sem patrocinadores, sem partidos e sem agenda politica. O povo aponta os problemas, diz onde dói e o governo precisa encontrar as soluções, para isto foi eleito. Um articulista famoso escreveu ontem, que a classe média obreira representa 42% da população e até agora ela era transparente, invisivel para o governo. As minorias têm entidades ( como as Ong dai ) que lutam pelos seus direitos, porém a maioria, não. Ninguém representa a maioria.
Agora o jogo mudou, e os 150 mil que estiveram nas praças e nas ruas prometeram que no próximo sábado, as ruas vão ferver outra vez, e o povo de Israel vai continuar protestando até que o governo escute a sua voz, e entenda que não basta construir uma economia forte, se o povo não se fortalecer também. Aliás, diga-se de passagem, que a ordem foi mantida em todas as manifestações e a polícia não teve que interferir nenhuma vez para fazer cumprir a lei. Educação, disciplina, respeito à lei foram as palavras de ordem. Nenhum ato de vandalismo nem de provocação. Nota dez.
P.S - A greve dos médicos continua firme, completando quase 150 dias, contando com o apoio da população. O Secretário Geral do Conselho de Medicina de Israel, Dr. Idelman, está em greve de fome há 5 dias, dos quais 4, liderando uma passeata de T.Aviv a Jerusalém, onde está acampado numa tenda em frente ao gabinete do Primeiro-Ministro, Benjamin Netaniahu. Bebe somente água.