por Sheila Sacks
O jornalista
Clóvis Rossi, colunista da Folha de São Paulo, conta que quando foi
escalado pelo jornal para cobrir as eleições em Israel, nos idos de 1996, ele
primeiro resolveu ter contato com as pessoas comuns, antes de procurar
autoridades e políticos, para sentir o clima eleitoral no país. Na época já
existia o que ele chamou de salas de conversações eletrônicas, no caso um
desses chats frequentados somente por israelenses.
Ao explicar que
queria conversar com gente comum sobre as eleições, não demorou muito para
receber uma resposta curta e grossa que deixou o jornalista pasmo: “Em Israel,
não há pessoas comuns”. Rossi confessa
que na hora chegou a ficar com raiva da arrogância de seu interlocutor virtual,
mas depois entendeu que talvez aquela inusitada afirmação tivesse a sua razão
de ser. Na visão do jornalista, Israel é realmente um país com características
inéditas no planeta porque reúne a maior concentração de história e
religiosidade do mundo cercada por uma das maiores concentrações de força
militar. Segundo Rossi, uma das coisas que mais o fascina em Israel é
justamente a presença de todas as religiões monoteístas que pregam a paz terem
alguns de seus maiores símbolos sempre cercados pelos símbolos da guerra.
Essa historinha
está no prefácio de “Israel, Terra em Transe: Democracia ou Teocracia”, da
jornalista Guila Flint, correspondente da BBC Brasil em Israel, em
parceria com a socióloga Bila Grin Sorj, professora da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro). O livro é um apanhado de 16 entrevistas realizadas
com intelectuais, religiosos, laicos, judeus e árabes que vivem em Israel e
aborda aspectos do fundamentalismo judaico que turbinam a vida política
israelense. Publicado em 2000, os depoimentos contidos no livro, muitos deles
surpreendentes e polêmicos, não perderam a sua contemporaneidade.
Sem uma Constituição escrita
Conforme explicam
as autoras, Israel é um país sem uma Constituição escrita, porque à época do
primeiro Parlamento,em 1949, os partidos religiosos se opuseram à adoção de uma
Constituição, argumentando que o povo judeu tem apenas uma lei suprema, a Torá
(o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia). Dessa forma, o
Parlamento (Knesset) tem poderes quase ilimitados e funciona, de fato, como uma
assembleia constituinte permanente que edita leis que podem ser, contudo,
facilmente modificadas. A bancada dos religiosos no Parlamento aumentou
consideravelmente desde a fundação de Israel, passando de 16 para 30 representantes,
25% da totalidade dos parlamentares.
A importância e a
força da religião no estado judeu tem gerado situações de conflitos e impasses
entre grupos ultraortodoxos e seculares, geralmente encaminhados à decisão da
Suprema Corte, órgão que funciona como uma espécie de guardião dos valores
democráticos, com ênfase na proteção dos direitos humanos. Conciliar os
diversos interesses, posições e pensamentos da complexa sociedade israelense -
moderna, participativa e tradicionalista – é sempre um grande desafio que, ao
longo dos anos, tem sido enfrentado a contento face aos sólidos princípios de
justiça e liberdade que norteiam as decisões judiciais. A complexidade das
respostas dos entrevistados e a diversidade de seus pontos de vista expressos
de maneira incisiva demonstram essa heterogeneidade de pensamentos que é,
afinal, a marca da nação judaica: a controvérsia levada ao extremo.
Afinidades com a população árabe
Assim ficamos
sabendo que Uri Avnery, 88 anos, jornalista que trabalhou nos jornais mais
importantes do país, como o Haaretz e Maariv, ex-parlamentar,
membro do mítico Irgun (resistência armada judaica que combateu os ingleses
durante o Mandato Britânico na Palestina, de 1931 a 1948) e fundador do
movimento “Gush Shalom” (Bloco da Paz), se declara muito mais próximo de um
cidadão árabe de Israel (em seus ideais e nacionalismo, ainda que em campos
diferentes) do que de um cidadão ultraortodoxo judeu (haredi), de Jerusalém.
Ele é autor do livro Meu amigo, o inimigo que narra seus encontros com
Yasser Arafat e outros líderes da Organização para a Libertação da Palestina
(OLP).
Em agosto de
2002, em entrevista à revista inglesa New Internationalist (action for
global justice), Avnery lembrou de seu passado de luta armada para a instalação
do estado de Israel. Quando questionado sobre a sua posição em relação aos
ataques suicidas e os atentados à bomba praticados por grupos palestinos
radicais contra civis israelenses, ele retrucou: “Você não precisa me dizer o
que é terrorismo. Eu fui terrorista”, respondeu ao repórter. “Quando se está
envolvido com movimentos de libertação se lida com a intransigência, a
brutalidade e um diferente conjunto de valores.”
Ainda atuando na
vida pública israelense, o combativo jornalista, que já sofreu várias ameaças
de morte e foi vítima de um atentado em 1975 que o deixou gravemente ferido,
tem seus artigos traduzidos para o português e republicados pelo site Vermelho,
do Partido Comunista do Brasil (PcdoB).
Outro
entrevistado é Haim Hanegbi, hoje com 76 anos, antigo jornalista e ativista
político (um dos líderes do extinto movimento comunista e antissionista
Matzpen), oriundo de família ortodoxa, neto de rabino e cuja família emigrou da
Espanha para Hebron, a Cidade dos Patriarcas, à época da Inquisição. Desde 1996
sob a administração da Autoridade Palestina, Hebron fica a 10 quilômetros de
Jerusalém e abriga os túmulos de Abraão, Isaac e Jacó. Há três mil anos, David
foi ungido rei de Israel nessa cidade e lá reinou por sete anos até estabelecer
Jerusalém como capital do reino.
Muito
identificado com os costumes e o modo de viver dos árabes, Hanegbi culpa o
sionismo pela extinção das antigas comunidades judaicas do mundo árabe, como as
de Damasco, Cairo, Alexandria, Bagdá, Marrocos e Casablanca. A criação do
estado de Israel e as guerras advindas deste fato histórico desencadearam uma
onda de perseguições aos judeus nascidos e estabelecidos, há várias décadas, no
mundo muçulmano, ocasionando o esfacelamento desses núcleos que viviam
integrados e adaptados aos costumes e as culturais locais.
Estado
democrático e judaico
Para Avraham
Burg, do Partido Trabalhista, por três vezes eleito parlamentar e presidente da
Agência Judaica Mundial (1995-1999), é preciso separar a religião e o estado.
“Pessoalmente, creio que seria necessário acabar com a participação que a
religião tem na estrutura do governo de Israel e reposicionar a religião e o
judaísmo, que passariam a fazer parte da cultura, parte da responsabilidade
individual, em vez de estarem sujeitos a elementos coercitivos do estado.”
Por sua vez, o
professor de pensamento e filosofia judaica da Universidade Hebraica de
Jerusalém, Moshe Halbertal, 54 anos, acredita que qualquer tentativa de definir
o judaísmo através de uma legislação fará com que os judeus de várias partes do
mundo sintam que esta não é sua casa. Isso porque, na sua concepção, existem
diferenças profundas entre os judeus sobre o judaísmo. Para ele “Israel precisa
decidir basicamente se deseja ser a casa dos judeus ou se pretende ser um
estado judeu”.
Defendendo a
integração estado-religião, a jornalista Bambi Sheleg, 43 anos, de uma família
de judeus religiosos e sionistas, acredita que a comunidade não-religiosa em
Israel perdeu muitos de seus ideais. “O sionismo religioso considera o retorno
a Sion a verdade histórica mais importante. Mas em função disso também será
necessário aceitar os valores da modernidade? É essa a grande questão.”
Participando de grupos que se reúnem para ler a Torá, Sheleg vê o estado de
Israel democrático e judaico ao mesmo tempo. “O estado de Israel é uma anomalia
histórica, deve incluir esses dois valores, caso contrário deixará de existir.”
Indo mais longe,
ela insiste que os israelenses devem ter consciência de onde vieram e para onde
estão se dirigindo “pois o estado de Israel não foi criado para fornecer
empresas para desenvolver alta tecnologia para os EUA. Não foi esse o sonho de
retorno a Sion”. E conclui: - Em minha opinião, é muito importante que Israel
seja um país que tenha compaixão, que tenha um comportamento digno em relação
aos trabalhadores estrangeiros, aos árabes, e a todos aqueles que chegam de
outras regiões.
Esse aliás é o
cerne da questão, segundo Clovis Rossi: “Na batalha entre religiosos e laicos,
as armas são os argumentos e argumentos não se medem em calibres, não atingem o
corpo, visam a alma – e aí tudo fica muito mais complexo.” Daí que ao término
das 357 páginas do livro e diante do monumental “desfile” de personagens e
argumentos, Rossi dá a mão à palmatória e se rende à afirmação julgada pretensiosa,
em um primeiro momento: - Em Israel, não há pessoas comuns.
Observação:
Atualmente vivem
em Israel mais de 120 mil judeus negros da Etiópia. Também existem outras
comunidades de judeus negros, como os Black Hebrews, que vieram dos
Estados Unidos. Judeus asiáticos, principalmente chineses, têm emigrado para
Israel.