Shabetai Tzvi converteu-se ao Islamismo. Mas seus descendentes mantiveram tradições
judaicas, fundando uma estranha seita messiânica híbrida: os “Doenmeh”.
Prof. Reuven Faingold*
Eles eram fervorosos muçulmanos, e privadamente observavam um judaísmo messiânico
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a) Os “izmirlis” ou “izmirim”: constituída por membros da primeira comunidade (o grupo original). Estes aristocratas da seita eram chamados “Cavalleros” em ladino ou “Kapanjilar” em turco. Incluíam os grandes comerciantes e a classe média, bem como a maioria da intelectualidade Doenmeh. Foram também os primeiros a mostrar, a partir do século XIX, uma marcada tendência para assimilação com os turcos.
b) os “jacobitas” ou “jakoblar” (em turco) constituída pelos rabinos e seguidores de Jacob Querido. Esta sub-seita de aproximadamente 43 famílias, incluía um grande número de funcionários turcos de classe média e baixa.
Depois de 1700, um novo líder de nome Baruchiah Russo, apareceu entre os adeptos de Querido, e foi proclamado por seus discípulos como sendo a reencarnação do messias Shabetai Tzvi. Russo era filho de um velho seguidor do “Messias de Smirna”. Depois de sua conversão, Baruchiah Russo foi chamado em turco “Osman Baba”. Então, uma terceira seita organizou-se em torno dele.
c) os “konyosos” ou “karakashlar” foram considerados o núcleo mais afastado dos Doenmeh. Composto por um proletariado e classes de artesãos, proclamavam uma espécie de niilismo religioso. Além disso, os konyosos conservavam os nomes de família sefaraditas originais, que são freqüentemente mencionados em poemas dedicados aos mortos.
Alguns dos membros “konyosos” foram enviados como representantes da seita à Polônia, Alemanha, e Áustria, onde despertaram uma efervescência messiânica entre 1720 e 1726. Ramificações desta seita missionária, da qual mais tarde surgiram os “frankistas” (a seita de Jacob Frank), estabeleceram-se em vários lugares da Diáspora.
Ainda muito jovem, Baruchiah Russo morreu em 1720, e seu túmulo foi alvo de peregrinação de discípulos e admiradores. Seu filho também foi líder espiritual dessa seita, e morreu em 1781.
Durante o período da Revolução Francesa, um poderoso líder da seita ganhou destaque. Ele era conhecido como “Dervixe Efendi”, e talvez possa ser identificado como o poeta Doenmeh Juda Levi Tovah, um cabalista que escrevia belíssimos sermões em ladino.
Doenmeh — Judeus ou não?
Sem dúvida, ficou evidente para os governantes e autoridades turcas que
estes apóstatas, de quem se esperava que incentivassem judeus a se converterem ao Islamismo, não tinham a mínima intenção de se assimilar. Ao contrário, eles estavam clandestinamente determinados a observar uma vida sectária, semi-clandestina; guardando externamente as práticas islâmicas e sendo politicamente cidadãos fiéis às leis do país.
O termo Doenmeh, surgido no século XVIII, é complexo. É difícil saber se ele faz referencia à conversão de judeus shabetaístas ao Islamismo, ou ao fato destes não serem muçulmanos autênticos. Por sua parte, os judeus chamavam os Doenmeh de “minim”, que em hebraico significa “sectários”; levando uma
forte conotação pejorativa de “apóstatas hereges”. Entre os diversos textos dos rabinos de Salônica, há numerosos escritos que abordam a questão de como deviam ser tratados os Doenmeh, se deveriam ser considerados judeus ou não.
Os Doenmeh moravam em bairros separados em Salônica, e seus líderes conviviam amistosamente com vários grupos sufistas, e com as ordens de “Dervixes” turcos, mais conhecidos como “Baktashi”. Da mesma forma, os Doenmeh mantinham contatos com shabetaístas que não se haviam convertido ao Islamismo, e com vários rabinos de Salônica que, quando necessário, dirimiam questões da lei mosaica para a seita. Estas relações foram rompidas somente em meados do século XIX.
O comportamento dos Doenmeh perante o Judaísmo era ambivalente. Em um primeiro momento, eles demonstravam uma atitude ambígua em relação ao Judaísmo tradicional, encarando-o como nulo, sendo seu lugar tomado por uma Torah mais elevada, mais espiritual, chamada “Torah da Emanação” ou “Torat Ha-Atzilut”. Entretanto, num segundo momento, procuraram conduzir-se segundo a Torah da tradição talmúdica, denominada “Torah da Criação” ou “Torat Ha-Beriah”.
Costumes e ritos Doenmeh
Os livros de liturgia dos Doenmeh eram escritos em formato muito pequeno, para que pudessem ser facilmente ocultados.
Todas as sub-seitas ocultavam seus assuntos tanto dos judeus como dos turcos, e durante muito tempo o que se conhecia dos “Doenmeh” baseava-se apenas em relatos e comentários de viajantes estrangeiros.
No início, o conhecimento do hebraico era comum entre os Doenmeh, e sua liturgia era produzida nesta língua. Isto pode ser visto nos seus livros de orações. No entanto, com o correr do tempo, o uso do ladino foi aumentando, e tanto a literatura poética como os sermões eram escritos nesta língua.
Os manuscritos dos Doenmeh revelavam informações sobre suas idéias shabetaístas, e foram traduzidos e examinados depois que várias famílias decidiram assimilar-se por completo à sociedade turca.
Até 1870, os Doenmeh falavam ladino entre si, e somente depois desta data, o
turco tornou-se a língua de uso cotidiano.
Os cemitérios Doenmeh eram usados pelas três seitas. Em compensação, como sempre aconteceu nas diferentes épocas históricas, cada sub-seita tinha sua própria sinagoga chamada “kahal” ou “congregação”. Ela estava localizada no centro do bairro, escondida dos estranhos.
4 • GERAÇÕES / BRASIL, Junho 1998, vol. 4, nº 2 m a t é r i a d e c a p a
Seus livros de liturgia eram escritos em formato pequeno, para que pudessem ser ocultados _
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Os Doenmeh na atualidade
A força numérica dos Doenmeh é conhecida parcialmente.
Segundo o viajante dinamarquês Karsten Niebuhr (1733-1815), umas 600 famílias viviam em Salônica em 1774, e os casamentos realizados por estes eram endogâmicos, ou seja, consagrados no seio das famílias da congregação.
Durante o longo período em que os Doenmeh ficaram em Salônica1, a estrutura da seita permaneceu intacta, embora vários membros chegaram a atuar nos movimentos dos “Jovens Turcos”.
Três deles chegaram a ministros no gabinete turco2. Um deles — o ministro
das finanças Mehmet Cavit Bey (1875-1926) — descendia da família do próprio Baruchiah Russo,um dos mais importantes líderes da seita.
Contrariamente ao que pensavam os turcos, os judeus de Salônica afirmavam que Kemal Ataturk, o fundador da República Turca moderna, seria também de origem Doenmeh.
Antes da I Guerra Mundial, o número de Doenmeh era estimado em 10.000 a 15.000 pessoas, divididos nas três seitas mencionadas.
A troca de populações ocasionada pela guerra greco-turca, fez com que os Doenmeh tivessem que abandonar Salônica. A maioria deles se estabeleceu em Istambul, e apenas uns poucos estariam em outras cidades turcas como Smirna e Ancara.
Na imprensa otomana da época, houve um polêmico debate sobre o caráter judaico dos Doenmeh e sua assimilação. Quando saíram de Salônica, ainda no século passado, a assimilação começou a expandir-se. Há evidências de que as seitas dos “konyosos” tenha sobrevivido até 1970, pois algumas famílias continuavam pertencendo a esta organização.
Entre intelectuais turcos3, havia descendentes dos Doenmeh, e inclusive houve tentativas de persuadi-los para retornar ao Judaísmo e imigrar para Israel. Tudo isto foi em vão, pois poucas foram as famílias Doenmeh que imigraram para o novo Estado judeu.
Palavras Finais
Parece que não existiu uma diferença religiosa muito grande entre os Doenmeh e outras seitas que também acreditavam em Shabetai Tzvi. Em sua literatura, dificilmente se faz menção ao fato de pertencerem ao Islamismo. Os membros das três subseitas Doenmeh afirmavam ser a verdadeira comunidade judaica, mesmo preservando a sua fé em Shabetai Tzvi, que havia
ab-rogado os mandamentos práticos da Torah, admitin-do uma “Torah de Emanação” superior, como sua substituta.
O princípio de divindade de Shabetai Tzvi desenvolveu-se firmemente e foi aceito sem restrições pela seita. Além de sua ab-rogação dos mandamentos práticos e sua crença trinitária mística, um fator despertava grande oposição entre seus contemporâneos: a inclinação em permitir casamentos proibidos pela “Halachá” e realizar bacanais que envolviam a troca de mulheres, atos que certamente degradavam a meta final da lei judaica.
Desde o século XVIII, começaram a sentir-se acusações de licenciosidade, o
que teria dado origem a uma certa promiscuidade sexual durante algumas gerações. De fato, ocorreram cerimônias orgiásticas, principalmente na festa Doenmeh de “Chag Ha-Keves” (Festa do Cordeiro) celebrada em 22 de Adar, perto da festa de Purim.
Entre os Doenmeh era costume comemorar outras datas sagradas relacionadas à vida de Shabetai Tzvi e acontecimentos particulares ligados a sua apostasia. A célebre liturgia Doenmeh para o 9 de Av, aniversário dele, chamada “Chag
Ha-Semachot” (Festa do Júbilo), ainda existe nas festividades dos Doenmeh.
Kemal Ataturk, o fundador da República Turca moderna, seria também de origem Doenmeh 1 Hamdi Bey, um Dönme Vali, foi um dos principais reconstrutores de Salônica após o incêndio de 1890.
2 Estes três ministros seriam, o já citado Mehmet Cavit Bey, também conhecido como Djawid Bey; Enver Pachá (1879-1922) e talvez Kiamil Pachá.
3 Adil Bey, editor do jornal turco Yeni Asir (Nova Época) de Salônica.
* Prof. Reuven Faingold é doutor em História pela Universidade Hebraica
de Jerusalém