
Levi Goldenberg (à esquerda) e o rabino Nuchem Rosenberg, que fizeram campanha em nome das vítimas de abuso sexual na comunidade judaica ortodoxa, durante uma reunião no Brooklyn
Por décadas, os promotores no Brooklyn perseguiam rotineiramente os molestadores de menores de todos os grandes segmentos étnicos e religiosos da população diversa do distrito. Exceto um.
Dos cerca de 700 casos de abuso sexual de menores por ano, poucos envolviam membros da comunidade ultraortodoxa judaica - cerca de 180 mil seguidores do judaísmo hassídico e outras seitas que formam a maior dessas comunidades fora de Israel. Alguns anos havia uma ou duas prisões, ou nenhuma.
Mas no ano passado, ocorreram 26. O promotor Charles J. Hynes impetrou acusações contra uma série de homens - professores de yeshivá, rabinos, conselheiros, comerciantes e parentes das crianças. Oito foram condenados; 18 aguardam julgamento.
Levi Goldenberg (à esquerda) e o rabino Nuchem Rosenberg, que fizeram campanha em nome das vítimas de abuso sexual na comunidade judaica ortodoxa, durante uma reunião no Brooklyn
Se o pico repentino nos processos criminais é impressionante, ainda mais surpreendente é o motivo aparente: os judeus ultraortodoxos, há muito proibidos de denunciar outros membros da comunidade sem a permissão dos rabinos que os lideram, estão procurando a polícia e os promotores por conta própria.
Os membros desta comunidade fechada, que referem-se a si mesmos como "haredim", que significa "tementes a Deus", rejeitam a cultura secular moderna e mantêm um controle rígido sobre o que consideram assuntos internos.
Por séculos, as alegações e disputas envolvendo crianças, casamentos e negócios eram decididas por tribunais rabínicos chamados beth din, que conduziam suas próprias investigações e não informavam seus resultados para as autoridades seculares, mesmo quando julgavam alguém culpado de um crime. Tabus codificados há muito tempo, durante as épocas de perseguição, desencorajavam os membros da comunidade a denunciarem outros judeus; violações podem resultar em ostracismo.
Agora, um crescente número de judeus haredim no Brooklyn dizem não acreditar que obterão justiça nos tribunais rabínicos, que em vários casos de peso inocentaram pessoas que posteriormente foram condenadas criminalmente por abuso sexual de menores. E apesar de alguns advogados das vítimas argumentarem que o promotor público tem sido condescendente demais à hierarquia rabínica -uma acusação que Hynes nega- mais famílias estão recorrendo ao seu gabinete.
Os promotores dizem que desde o ano passado, 40 menores concordaram em testemunhar sobre o abuso no tribunal, se necessário. E o gabinete de Hynes tem procurado o conselho de promotores com jurisdições que incluem outros grandes enclaves ortodoxos no Nordeste.
"O que testemunhamos no ano passado é completamente sem precedente", disse Rhonnie Jaus, chefe do birô de crimes sexuais da promotoria do Brooklyn. "Isto seria inconcebível poucos anos atrás."
As crianças nas famílias haredim apresentam probabilidade igual de sofrerem abuso sexual que em outras, segundo vários estudos recentes. Mas Ben Hirsch, fundador da Sobreviventes pela Justiça, um grupo de Nova York cujos membros incluem judeus ortodoxos molestados na infância em comunidades de todo o país, disse que o modo clandestino como os casos de molestamento são tratados impedia os líderes de lidar com o problema e facilitavam a ação dos predadores.
Hirsch dá crédito à imprensa judaica, terapeutas e rabinos na própria população haredi, e organizações como a dele, por trazer o assunto à tona. Blogs judeus como FailedMessiah.com e theunorthodoxjew.blogspot.com, ele disse, também foram "grandes catalizadores", dando às vítimas de abuso sua primeira oportunidade de desabafarem e se conectarem sem o temor de serem identificadas. "As pessoas estão reagindo", ele disse.
O pai de um menino de 10 anos do Brooklyn, disse em uma entrevista que a má condução, no seu entender, dos casos de abuso sexual pelos tribunais rabínicos o persuadiu a contatar a polícia, assim que seu filho lhe contou no ano passado que tinha sofrido abuso por um vizinho. "Eu não acredito que rabinos são capazes de lidar com isso", disse o pai.
Os rabinos expressam um amplo espectro de reações. Muitos dizem que a mudança é necessária. Um número maior defende seus tribunais internos. Mas quase todos concordam com o que um rabino ortodoxo, Yosef Blau, da Universidade Yeshivá, chamou recentemente de revelação a respeito do abuso infantil, que antes era considerado pela hierarquia como inconcebível entre pessoas que abraçam uma devoção religiosa plena. "Agora é visto como possível", ele disse.
Em abril, após impetrar a maioria dos casos criminais recentes, Hynes lançou uma iniciativa chamada Projeto Kol Tzedek, ou Voz da Justiça, que alistou assistentes sociais ortodoxos para encorajar mais vítimas a se manifestarem, e enviou pessoal treinado para as escolas e centros comunitários para conservar a respeito de abuso sexual.
Saudado por muitos como uma abordagem inovadora, o programa é criticado por alguns advogados das vítimas por seus elos com uma agência de serviço social haredi, a Ohel Children's Home and Family Services, para a qual os beth din encaminhavam os homens acusados de abuso sexual no passado. Os críticos dizem que o tratamento fornecido pela Ohel é inadequado é mal supervisionado, uma acusação que a entidade nega vigorosamente.
Hynes caminha por uma linha tênue. Ele cultivou laços com os líderes ortodoxos desde que foi eleito pela primeira vez em 1989. Em uma entrevista, ele disse que o fez em parte porque eles representam um grande eleitorado, em parte para tratar das tensões de jurisdição entre sua autoridade e a deles. Em um editorial no ano passado, "The Jewish Week" disse que esses relacionamentos têm atrapalhado os processos de abuso, descrevendo a abordagem do promotor público até recentemente como "variando de passiva a sem empenho".
Nenhum promotor no país conta com tantas investigações e casos pendentes de abuso sexual contra suspeitos haredim. "Nós conseguimos um avanço porque trabalhamos para estabelecer a credibilidade junto à comunidade", disse Hynes.
Alguns líderes haredim disseram não ter queixa contra o projeto de Hynes. Mas um rabino do Brooklyn, mencionado com frequência nos blogs, cita uma doutrina antiga que justifica matar alguém que denuncia outro judeu.
David Zwiebel, vice-presidente executivo da Agudath Israel of America, um grupo que representa muitas facções haredim no Brooklyn e em todo o país, ofereceu uma posição moderada. "Surgiu um amplo consenso nos últimos anos", ele disse, "de que muitas dessas questões estão além da capacidade da comunidade de lidar internamente".
Mas ele acrescentou que os promotores devem reconhecer "as sensibilidades religiosas da comunidade" ao buscar alternativas para a prisão, para evitar privar uma família de seu ganha-pão, ou ao encontrar lares ortodoxos apropriados para as crianças removidas de famílias abusivas.
"O promotor público deve ter cuidado para não ser visto como alguém disputando poder com a autoridade rabínica", disse Zwiebel.
O rabino Meir Fund, que lidera uma sinagoga conhecida como Flatbush Minyan, disse que aqueles que molestam crianças devem ser processados, mas as vítimas devem consultar um rabino antes de procurarem a polícia. As ligações entre os haredim são emaranhadas demais para desconsiderar os efeitos danosos das acusações sobre a família do acusado, disse Fund.
Os advogados das vítimas dizem que posições semelhantes levaram a alguns dos piores julgamentos da liderança rabínica do Brooklyn, permitindo que rabinos proeminentes que eram repetidamente acusados de abuso mantivessem seus cargos e reputações.
Em 2000, o rabino Baruch Lanner, um líder jovem carismático e diretor de yeshivá que esteve no centro de acusações de abusos contra os estudantes por mais de 20 anos -e foi inocentado por um beth din- se tornou o tema de um artigo na "The Jewish Week", que encontrou mais de 60 acusadores. A história levou a uma investigação criminal e a uma pena de sete anos de prisão para Lanner.
Outro rabino, Yehuda Kolko, um professor em uma yeshivá de Flatbush, foi acusado de comportamento sexualmente abusivo por pais e ex-alunos numerosas vezes ao longo de 30 anos. As queixas foram rejeitadas pelas autoridades rabínicas, até que a revista "New York" escreveu sobre elas em 2006.
Logo depois, o gabinete do promotor apresentou acusações de abuso sexual contra Kolko. A decisão de Hynes, no ano passado, de recomendar a suspensão condicional da pena em troca da declaração de culpado de Kolko irritou muitos judeus ortodoxos.
Em parte devido a essa decepção, alguns líderes ortodoxos começaram a adotar medidas que reconhecem que não tomariam antes.
O vereador Dov Hikind, que representa uma seção predominantemente ortodoxa do Brooklyn, começou a dedicar seus programas de rádio, nas noites de sábado, ao que chamou de "epidemia" de casos não relatados de abuso sexual. Por seis meses, a partir de julho de 2008, ele convidou as vítimas a ligarem para ele. Centenas o fizeram, ele disse, acrescentando que 10 dos casos criminais nasceram dessas chamadas.
Tradução: George El Khouri Andolfato
Dos cerca de 700 casos de abuso sexual de menores por ano, poucos envolviam membros da comunidade ultraortodoxa judaica - cerca de 180 mil seguidores do judaísmo hassídico e outras seitas que formam a maior dessas comunidades fora de Israel. Alguns anos havia uma ou duas prisões, ou nenhuma.
Mas no ano passado, ocorreram 26. O promotor Charles J. Hynes impetrou acusações contra uma série de homens - professores de yeshivá, rabinos, conselheiros, comerciantes e parentes das crianças. Oito foram condenados; 18 aguardam julgamento.
Levi Goldenberg (à esquerda) e o rabino Nuchem Rosenberg, que fizeram campanha em nome das vítimas de abuso sexual na comunidade judaica ortodoxa, durante uma reunião no Brooklyn
Se o pico repentino nos processos criminais é impressionante, ainda mais surpreendente é o motivo aparente: os judeus ultraortodoxos, há muito proibidos de denunciar outros membros da comunidade sem a permissão dos rabinos que os lideram, estão procurando a polícia e os promotores por conta própria.
Os membros desta comunidade fechada, que referem-se a si mesmos como "haredim", que significa "tementes a Deus", rejeitam a cultura secular moderna e mantêm um controle rígido sobre o que consideram assuntos internos.
Por séculos, as alegações e disputas envolvendo crianças, casamentos e negócios eram decididas por tribunais rabínicos chamados beth din, que conduziam suas próprias investigações e não informavam seus resultados para as autoridades seculares, mesmo quando julgavam alguém culpado de um crime. Tabus codificados há muito tempo, durante as épocas de perseguição, desencorajavam os membros da comunidade a denunciarem outros judeus; violações podem resultar em ostracismo.
Agora, um crescente número de judeus haredim no Brooklyn dizem não acreditar que obterão justiça nos tribunais rabínicos, que em vários casos de peso inocentaram pessoas que posteriormente foram condenadas criminalmente por abuso sexual de menores. E apesar de alguns advogados das vítimas argumentarem que o promotor público tem sido condescendente demais à hierarquia rabínica -uma acusação que Hynes nega- mais famílias estão recorrendo ao seu gabinete.
Os promotores dizem que desde o ano passado, 40 menores concordaram em testemunhar sobre o abuso no tribunal, se necessário. E o gabinete de Hynes tem procurado o conselho de promotores com jurisdições que incluem outros grandes enclaves ortodoxos no Nordeste.
"O que testemunhamos no ano passado é completamente sem precedente", disse Rhonnie Jaus, chefe do birô de crimes sexuais da promotoria do Brooklyn. "Isto seria inconcebível poucos anos atrás."
As crianças nas famílias haredim apresentam probabilidade igual de sofrerem abuso sexual que em outras, segundo vários estudos recentes. Mas Ben Hirsch, fundador da Sobreviventes pela Justiça, um grupo de Nova York cujos membros incluem judeus ortodoxos molestados na infância em comunidades de todo o país, disse que o modo clandestino como os casos de molestamento são tratados impedia os líderes de lidar com o problema e facilitavam a ação dos predadores.
Hirsch dá crédito à imprensa judaica, terapeutas e rabinos na própria população haredi, e organizações como a dele, por trazer o assunto à tona. Blogs judeus como FailedMessiah.com e theunorthodoxjew.blogspot.com, ele disse, também foram "grandes catalizadores", dando às vítimas de abuso sua primeira oportunidade de desabafarem e se conectarem sem o temor de serem identificadas. "As pessoas estão reagindo", ele disse.
O pai de um menino de 10 anos do Brooklyn, disse em uma entrevista que a má condução, no seu entender, dos casos de abuso sexual pelos tribunais rabínicos o persuadiu a contatar a polícia, assim que seu filho lhe contou no ano passado que tinha sofrido abuso por um vizinho. "Eu não acredito que rabinos são capazes de lidar com isso", disse o pai.
Os rabinos expressam um amplo espectro de reações. Muitos dizem que a mudança é necessária. Um número maior defende seus tribunais internos. Mas quase todos concordam com o que um rabino ortodoxo, Yosef Blau, da Universidade Yeshivá, chamou recentemente de revelação a respeito do abuso infantil, que antes era considerado pela hierarquia como inconcebível entre pessoas que abraçam uma devoção religiosa plena. "Agora é visto como possível", ele disse.
Em abril, após impetrar a maioria dos casos criminais recentes, Hynes lançou uma iniciativa chamada Projeto Kol Tzedek, ou Voz da Justiça, que alistou assistentes sociais ortodoxos para encorajar mais vítimas a se manifestarem, e enviou pessoal treinado para as escolas e centros comunitários para conservar a respeito de abuso sexual.
Saudado por muitos como uma abordagem inovadora, o programa é criticado por alguns advogados das vítimas por seus elos com uma agência de serviço social haredi, a Ohel Children's Home and Family Services, para a qual os beth din encaminhavam os homens acusados de abuso sexual no passado. Os críticos dizem que o tratamento fornecido pela Ohel é inadequado é mal supervisionado, uma acusação que a entidade nega vigorosamente.
Hynes caminha por uma linha tênue. Ele cultivou laços com os líderes ortodoxos desde que foi eleito pela primeira vez em 1989. Em uma entrevista, ele disse que o fez em parte porque eles representam um grande eleitorado, em parte para tratar das tensões de jurisdição entre sua autoridade e a deles. Em um editorial no ano passado, "The Jewish Week" disse que esses relacionamentos têm atrapalhado os processos de abuso, descrevendo a abordagem do promotor público até recentemente como "variando de passiva a sem empenho".
Nenhum promotor no país conta com tantas investigações e casos pendentes de abuso sexual contra suspeitos haredim. "Nós conseguimos um avanço porque trabalhamos para estabelecer a credibilidade junto à comunidade", disse Hynes.
Alguns líderes haredim disseram não ter queixa contra o projeto de Hynes. Mas um rabino do Brooklyn, mencionado com frequência nos blogs, cita uma doutrina antiga que justifica matar alguém que denuncia outro judeu.
David Zwiebel, vice-presidente executivo da Agudath Israel of America, um grupo que representa muitas facções haredim no Brooklyn e em todo o país, ofereceu uma posição moderada. "Surgiu um amplo consenso nos últimos anos", ele disse, "de que muitas dessas questões estão além da capacidade da comunidade de lidar internamente".
Mas ele acrescentou que os promotores devem reconhecer "as sensibilidades religiosas da comunidade" ao buscar alternativas para a prisão, para evitar privar uma família de seu ganha-pão, ou ao encontrar lares ortodoxos apropriados para as crianças removidas de famílias abusivas.
"O promotor público deve ter cuidado para não ser visto como alguém disputando poder com a autoridade rabínica", disse Zwiebel.
O rabino Meir Fund, que lidera uma sinagoga conhecida como Flatbush Minyan, disse que aqueles que molestam crianças devem ser processados, mas as vítimas devem consultar um rabino antes de procurarem a polícia. As ligações entre os haredim são emaranhadas demais para desconsiderar os efeitos danosos das acusações sobre a família do acusado, disse Fund.
Os advogados das vítimas dizem que posições semelhantes levaram a alguns dos piores julgamentos da liderança rabínica do Brooklyn, permitindo que rabinos proeminentes que eram repetidamente acusados de abuso mantivessem seus cargos e reputações.
Em 2000, o rabino Baruch Lanner, um líder jovem carismático e diretor de yeshivá que esteve no centro de acusações de abusos contra os estudantes por mais de 20 anos -e foi inocentado por um beth din- se tornou o tema de um artigo na "The Jewish Week", que encontrou mais de 60 acusadores. A história levou a uma investigação criminal e a uma pena de sete anos de prisão para Lanner.
Outro rabino, Yehuda Kolko, um professor em uma yeshivá de Flatbush, foi acusado de comportamento sexualmente abusivo por pais e ex-alunos numerosas vezes ao longo de 30 anos. As queixas foram rejeitadas pelas autoridades rabínicas, até que a revista "New York" escreveu sobre elas em 2006.
Logo depois, o gabinete do promotor apresentou acusações de abuso sexual contra Kolko. A decisão de Hynes, no ano passado, de recomendar a suspensão condicional da pena em troca da declaração de culpado de Kolko irritou muitos judeus ortodoxos.
Em parte devido a essa decepção, alguns líderes ortodoxos começaram a adotar medidas que reconhecem que não tomariam antes.
O vereador Dov Hikind, que representa uma seção predominantemente ortodoxa do Brooklyn, começou a dedicar seus programas de rádio, nas noites de sábado, ao que chamou de "epidemia" de casos não relatados de abuso sexual. Por seis meses, a partir de julho de 2008, ele convidou as vítimas a ligarem para ele. Centenas o fizeram, ele disse, acrescentando que 10 dos casos criminais nasceram dessas chamadas.
Tradução: George El Khouri Andolfato