
Por: Aryeh Kaplan z'l - Fonte: Encontro entre o Céu e a Terra" - Editora Maayanot
Na antiguidade, o shofar era utilizado para reunir o povo. Hoje em dia, ele é empregado em Rosh Hashaná, o dia em que os judeus do mundo inteiro se reunem nas suas sinagogas. É provável que muitos dos que comparecem não tenham pisado a sinagoga o ano inteiro, mas quando Rosh Hashaná se aproxima, é como se houvesse um shofar nos seus corações, chamando-os para reunir-se, exclamando: "Venham, filhos Meus, voltem, ó Israel, para o vosso Senhor, vosso D-us". O apelo é tão sonoro e claro como a explosão de uma trombeta, e nenhum judeu vivo pode ignorá-lo.
Assopramos o corno de um carneiro para recordar o grande sacrifício que Abraham se dispôs a fazer, e o carneiro que ele sacrificou no lugar do seu filho Isaac. A estória aparece no segundo capítulo do Livro Gênesis. A sua lição é universal.
Vamos imaginar-nos transportados de volta no tempo, quase 4000 anos. Vemos o patriarca Abraham, avançando penosamente através de um campo inculto maninho, lutando contra o vento, na terra de Canaã. De repente, um enlevo, um êxtase inimaginável tomam conta dele. Ele ouve uma voz à qual já aprendeu a obedecer e que lhe inspira confiança, a voz de D-us. É a mesma voz que lhe prometeu um filho, na velhice: a mesma voz que lhe prometeu que os seus filhos iriam ser tão numerosos quanto as estrelas do céu. É a voz que, há muitos anos, lhe ordenou deixar a sua terra natal, partir da casa do seu pai. É uma voz que prometeu muitas coisas, e nunca decepcionou a sua confiança.
Nesta tarde ventosa, esta voz vem a Abraham mais uma vez com clareza, de dentro da profundeza da sua alma. A voz chama o seu nome: "Abraham! Abraham!"
O velho homem fica imóvel, no campo árido varrido pela ventania. Ele olha em volta. Nenhuma alma à vista, mas ele reconhece a voz de D-us. Sem hesitar, ele grita: "Olhe, aqui estou eu!"
Em seguida, ouve a voz novamente, mais forte e constrangedora. "Abraham! Pega o teu filho, o teu único filho, o que tanto amas. Pega Isaac e vai à terra de Moriá. Leva-o à montanha que haverei de mostrar-te, e ali, oferece-o em sacrifício ardente".
Então, a voz cala-se. Somente o assobio do vento ao cair da noite, como que brincando com um homem idoso, parado no crepúsculo. Abraham olha diretamente para a frente, com a mente num redemoinho de confusão. "Ó Voz de D-us Todo-Poderoso, Tu não podes estar querendo dizer o que acabei de ouvir! O meu filho?! Meu Isaac?! Meu querido e adorado filho, a alegria da minha velhice, a promessa do meu futuro? O filho querido do riso, Isaac, ser abatido como um animal sobre o altar, a sua carne que adoro, queimada em sacrifício! Será que estou tendo um pesadelo?"
Está escurecendo, e os pensamentos de Abraham começam a clarear. Ele ficou parado durante horas, exatamente no mesmo ponto onde ouviu a voz. Agora, começa a andar na escuridão. A ordem não foi ilusão. O Todo-Poderoso, o Criador, o D-us Um, o Verdadeiro D-us, O D-us Único falou com seu servo mais obediente, Abraham. A voz fora inconfundível. A ordem fora clara. Abraham aprendeu a amar o seu filho com um amor mais profundo que as nascentes do deserto. Contudo, enquanto vai caminhando através dos seus campos, com a luz prateada da lua lançando seu brilho sobrenatural sobre o trigo e a cevada, Abraham se pergunta: "Eu amo a D-us mais do que tudo nesse mundo, ou eu amo Isaac mais do que amo a D-us?" O velho Abraham está sendo testado, como nunca nenhum mortal tinha sido testado.
Durante a noite toda, Abraham se vira em sua barraca, um velho solitário a quem foi pedido que renuncie a um filho, mais querido que a própria vida. Após uma noite agitadíssima, Abraham já sabe que não pode negar nada ao seu D-us. Na primeira claridade do amanhecer, ele levanta do leito, e em silêncio, coloca a montaria sobre o seu velho burro branco. Sem uma palavra, ele pede a dois dos seus criados, e ao seu filho, seu querido filho Isaac, que o ajudem a carregar uma pilha de madeira sobre o burro. Depois, eles partem, em silêncio.
Durante três dias, eles viajam através do vale dourado e maduro de Mamre, sempre adiante, através das colinas cobertas de bosques. O tempo todo, Abraham caminha em silêncio, ele não consegue falar nem sequer uma palavra ao seu filho. O seu rosto bronzeado é como uma máscara de pedra, e o brilho profundo dos seus olhos é como um fogo ardendo na profundeza de uma caverna. Finalmente, Abraham avista o Monte Moriá, ao longe.
Ele pede aos seus dois criados que fiquem atrás, com o burro. Carrega a madeira sobre as costas fortes do jovem Isaac. No cinto, ele carrega pedras afiadas para acender o fogo, e oculto nas suas vestes, um punhal.
Os dois caminham juntos, pai e filho, sozinhos pelas encostas do monte. Nenhuma palavra é pronunciada entre eles. Isaac, de repente, ousa quebrar o silêncio, e diz: "Pai, parece que vamos rezar e oferecer um sacrifício. Temos a madeira e as pedras, mas não vejo o cordeiro para a oferenda".
Abraham fecha os olhos e contém as lágrimas. O que pode dizer ao seu filho único querido, Isaac? Ele murmura: "D-us fornecerá o sacrifício, meu filho".
Isaac não diz mais nada, e marcha calado, ao lado do pai. O jovem rapaz nunca poderia imaginar que a madeira que carrega está sendo levada para queimar o seu próprio corpo, e que há uma faca especial no cinto do seu pai, destinada a cortar-lhe a garganta. Eles sobem mais e mais, até que por fim chegam num pequeno planalto, no topo da montanha. Isaac observa seu pai, juntando pedras, cuidadosamente, e empilhando-as, para construir um altar. Ele ajuda o pai a dispor a madeira sobre o altar, e após isso, o seu pai lhe indica que deve estender as mãos.
Antes mesmo de perceber o que está acontecendo, os seus pulsos já estão firmemente amarrados com tiras de couro. Após isso, os seus calcanhares são rapidamente amarrados, tudo sem que o velho tenha proferido nenhuma palavra. Será que o seu pai está fazendo algum tipo de brincadeira? Ele procura o olhar do pai, por uma resposta, e vê somente lágrimas. O seu pai está tremendo. Algo de muito errado está acontecendo.
A pergunta que formulara antes volta-lhe à memória. Onde está o carneiro para o sacrifício? Abruptamente, já percebe. Ele próprio é o carneiro! A sua face fica muito pálida, os seus olhos viram rapidamente. É prisioneiro, não há a mínima chance de escapar. Suavemente, o velho o levanta e o coloca sobre a pilha de madeira, no altar. Como em câmara lenta, ele vê o seu próprio pai sacar uma faca de debaixo das suas vestes, e dirigi-la para a sua garganta. Isaac fecha os olhos. Ele sente o metal gelado na pele, e tudo fica confuso.
Abraham segura a lâmina contra a garganta do seu filho, vacilando, tentando reunir coragem para terminar o ato. De repente, ele ouve a voz outra vez, ressoando como o trovão numa tempestade de verão, imperativa e urgente: "Abraham! Abraham!"
Ele treme, deixa a faca no chão, e responde: "Olhe, aqui estou!"
Mais forte que nunca, a voz responde: "Não ponhas a tua mão sobre o rapaz. Não faças nada a ele, pois agora Eu sei que temes a D-us, porque não retiveste o teu filho único de Mim".
Abraham não ouve mais nada. Através dos olhos cegados pelas lágrimas, ele vê um carneiro detrás de um monte de pedras, preso pelos cornos, nos arbustos. O animal para o sacrifício ardente estava esperando ali mesmo. O teste terminou.
Nosso pais aprenderam com o exemplo de Abraham. Nenhum sacrifício era grande demais para ele. Fosse qual fosse o pedido, ir até a sinagoga antes de um dia de trabalho esgotante, ou ficar em jejum para não ingerir um alimento proibido, ou renunciar à própria comida quando se está com muita fome, para doá-la a algum necessitado, eles responderam ao chamado, como o fez nosso primeiro pai, Abraham...
...Os nossos avôs e bisavôs tinham uma máxima: "É difícil ser judeu". Mas as coisas boas da vida nunca são fáceis de conseguir, e o muito fácil de ser conseguido, muitas vezes, é suspeito de ter pouco valor. É verdade, é difícil ser judeu, mas precisamos recordar a lição de Abraham, internalizar o chamado do shofar, e estarmos preparados para o sacrifício, dando todo o nosso tempo, esforço, caridade e amor.
Extraido da revista Raizes Número 024 ,Shavei.org