
Antes, extremistas usavam o país como escala de viagem. Passaram a adotar filhos de prostitutas para ficar no país. Em seguida, seduziram brasileiros com ‘cantilena radical’. Agora, preparam daqui ações contra alvos no estrangeiro.
As revelações acima foram feitas pelo delegado Daniel Lorenz. Até o início de julho, ele era diretor de Inteligência da PF. Uma semana depois de deixar o posto, falou numa audiência na Comissão de Segurança Pública da Câmara. A sessão fora convocada por Raul Jungmann (PPS-PE), presidente da comissão, com o propósito de esmiuçar a “atuação de membros de grupos terroristas” no Brasil. O repórter obteve, na semana passada, cópia da transcrição da audiência.
Neste domingo (23), Jungmann levou a íntegra do texto ao seu blog. Lorenz mediu as palavras –“Como a sessão é aberta, não vou detalhar esses assuntos”. Ainda assim, delineou um quadro revelador. Disse que a PF só passou a se preocupar com o terrorismo em 1995. Desde então, o problema se agrava. Lorenz dividiu a encrenca em quatro ciclos. No início, o Brasil era usado por terroristas como escala de viagem. Hoje, disse o delegado, o país já serve de base para a preparação de ataques a alvos no exterior. Vai abaixo um resumo das quatro fases descritas pelo delegado:
1. Primeiro estágio: Foi nessa fase que a PF se deu conta de que “extremistas” estrangeiros utilizavam o Brasil como escala de viagem. Passavam sobretudo pela região da tríplice fronteira (Brasil-Argentina-Paraguai). Lorenz confirmou algo que já fora noticiado. Em 1995, “entrou pelo Rio de Janeiro e saiu por São Paulo” Khalid Shaikh Mohammed, que viria a se converter no terceiro homem na hierarquia da Al Qaeda. O terrorista passou por Foz do Iguaçu. O delegado desculpou-se por não poder “tecer detalhes”. Mas deixou claro que Shaikh Mohammed não viera a passeio. “Ele esteve lá, evidentemente, não para tomar uma geladinha e nem para participar do Carnaval, muito menos das festas do final do ano”. Preso no Paquistão em 2003, Shaikh Mohammed foi levado à prisão norte-americana de Guantânamo, acusado de participar dos ataques do 11 de setembro.
2. Segundo estágio: Extremistas passaram a se servir das facilidades da legislação brasileira para “legalizar” sua permanência no país. “Não vou me deter nos detalhes, não posso conversar sobre isso”, desculpou-se, de novo, Lorenz. Porém, detalhou: “Eles buscam uma legalização no país por meio da [...] adoção à brasileira. Ou seja, tomar como seu o filho de outrem. Então, eles se aproximavam de mulheres de vida fácil, assumiam aqueles filhos e ganhavam a condição de permanência no Brasil. Isso aconteceu, isso é acompanhado, está sendo acompanhado e foi muito acompanhado por nós. Esse seria o segundo momento”.
3. Terceiro estágio: A PF descobriu que cidadãos brasileiros começaram a ser cooptados pelos “extremistas”. Encantaram-se, no dizer de Lorenz, com a “cantilena radical de que tudo é possível, de que se poderia, ao praticar um ato insano, terrorista, ter 72 virgens” no céu. Lorenz foi enfático: “Isso aconteceu, isso acontece”. A certa altura, Jungmann perguntou se era verdade que brasileiros foram ao Irã para treinar táticas de terror. E o delegado: “[...] Posso lhe dizer que não somente ao Irã. Não somente. O senhor me desculpe, mas eu não poderia me estender [...]”.
4. Quarto estágio: É, por ora, “o último grau” da ação de “extremistas” em solo brasileiro. Envolve, segundo Lorenz, “a preparação” de ataques terroristas a alvos localizados no exterior. O delegado mencionou o caso do “Senhor K.” Trata-se de um cidadão libanês residente em São Paulo. É casado com uma brasileira, com quem teve uma filha. Em maio, o repórter Jânio de Freitas revelara que K. fora preso, acusado de envolvimento com a Al Qaeda. O ministro Tarso Genro (Justiça) apressara-se em dizer: "Não há nenhum foco terrorista organizado" no Brasil. O libanês K., disse ele, fora à garra pela prática de “racismo”. Lorota. A PF enquadrara-o como racista porque a legislação brasileira não contempla o crime de terrorismo, explicou Lorenz na Câmara. Por isso teve a prisão relaxada depois de 21 dias de cana. A julgar pelo que disse o delegado, o caso do libanês K. nem seria o único. Lorenz expressou-se no plural: “Temos a percepção desses estrangeiros que agora estão no Brasil e estão a executar não, evidentemente, ações extremistas no país, mas, a exemplo do que foi o Sr. K, iniciando ações de recrutamento, apoio, treinamento, logística e reconhecimento para ações terroristas ainda fora do país”. Acrescentou: “Utilizam nosso país como um local tranquilo. A partir dele, saem e vão ajudar essas organizações extremistas, notadamente, nesse caso [do Sr. K.], a Al-Qaeda”. Segundo Lorenz, o libanês K. agia na internet. Seus arquivos eram criptografados. Mas a PF logrou acessá-los, remotamente, nos instantes em que, manuseados pelo autor, estavam abertos. Ouça-se Lorenz: “Esse Sr. K. tinha duas lan houses em São Paulo e coordenava o que chamamos de batalhão de mídia da Jihad. Inicialmente, aquilo que era somente um proselitismo da causa defendida pela Al Qaeda transformou-se num espaço para recrutamento, apoio, treinamento em comunicações e segurança operacional, um local de apoio e também um local de onde emanavam o que eles chamavam de ordens de batalha para ações fora do país”.
A exposição de Lorenz contrastou com declarações feitas pelo ministro Jorge Félix (Segurança Institucional da Presidência). Também convidado para a audiência na Câmara, o general minimizou a ação de extremistas em solo brasileiro. O próprio Félix, porém, reconheceu: “[...] Mesmo que apareça algum problema [relacionado ao terrorismo], vamos resolvê-lo — essa é uma atribuição e uma competência nossa — e não vamos admitir que o problema existiu”. Ou seja, nessa matéria, o que general afirma não dever ser tomado a sério.
A Comissão de Segurança Pública da Câmara realizou, 47 dias atrás, uma audiência pública sobre terrorismo. Deu-se numa tarde de terça-feira, 7 de julho. Durou pouco mais de três horas. Começou às 14h39. E se arrastou até 17h53. Hipnotizados pela crise do Senado, os repórteres deram de ombros para a reunião. Entre os deputados, de 513 apenas cinco deram as caras. Na primeira hora e meia, só Raul Jungmann (PPS-PE), presidente da comissão e autor do pedido de audiência, emprestou os ouvidos aos convidados. O blog obteve a íntegra das notas taquigráficas da sessão.
Ocupa 63 folhas. Quem lê dá de cara com informações surpreendentes. Parte delas foi relatada por Raphael Mandarino Jr., diretor de Segurança da Informação do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência). Levado à comissão pelo ministro Jorge Félix, chefe do GSI, Mandarino contou que as redes de computadores do governo sofrem 2 mil ataques por hora. “Nós temos 320 grandes redes”, disse Mandarino. “E quando digo grande rede, refiro-me às redes do Banco do Brasil, do Serpro, da Justiça, etc...” “...Em uma das maiores dessas redes, tivemos, somente no ano passado, 3,8 milhões de incidentes”.
Que tipo de incidentes? “Vírus, tentativa de invasão, spam, tudo aquilo que atrapalha o funcionamento normal da rede...” “...E 1% de todos esses 3,8 milhões de incidentes diz respeito àquilo que nos preocupa muito: tentativa de invasão”. Levando-se em conta as 2 mil incursões criminosas que, segundo Mandarino, assediam as redes do governo a cada hora, os ataques diários somam 48 mil. O assessor de Jorge Félix contou que seu departamento é obrigado a analisar cerca de 200 novos “malwares” todos os meses. “Malware" é um neologismo que resulta da fusão de dois vocábulos da língua inglesa: “Malicious software”. São programas criados com o propósito de se infiltrar clandestina e ilegalmente em computadores alheios. Mandarino esmiuçou os alvos dos invasores. Disse que 70% buscam nas redes oficiais “informações bancárias”; 15% tentam capturar “informações pessoais”.
Outros 10% dos ataques são feitos com o propósito de extrair informações da rede INFOSEG, gerida pelo Ministério da Justiça.Trata-se de uma base que armazena dados das secretarias estaduais de Segurança Pública e da Justiça. Coisas assim: informações sobre inquéritos, processos, armas de fogo, veículos e mandados de prisão. “Todos os outros tipos” de ataques, Mandarino informou, somam 5%. Ele relatou na comissão da Câmara quatro casos.Como a audiência era pública e os dados são sigilosos, Mandarino discorreu sobre os milagres sem mencionar os nomes dos santos:
1. O caso “mais sério” envolveu um servidor de computadores de um “órgão público”. Ouça-se o que disse Mandarino: “Uma quadrilha do Leste Europeu entrou no servidor, trocou a senha e pediu um resgate de US$ 350 mil para devolver a senha” antiga. Com a ajuda de técnicos da Abin e de especialistas de fora do governo, conseguiu-se “quebrar a senha” da quadrilha. E o servidor foi recuperado. Segundo Mandarino, “o caso está sob investigação” da Polícia Federal. Ele se eximiu de revelar detalhes do inquérito.
2. O segundo ataque revelado por Mandarino na Câmara “ocorreu no site de um órgão brasileiro no exterior”. “De repente, houve um grande aumento no número de acessos a esse site. O órgão ficou muito feliz, mas...” “...Mas descobrimos que, dentro do site havia ferramentas de ataques bancários internacionais, vindas de países com muito conflito com seus vizinhos”.
3. O terceiro episódio transpôs para dentro dos computadores do governo brasileiro o embate travado, no Oriente Médio, entre judeus e palestinos. “[...] O servidor de um grande órgão público foi usado como difusor de propaganda, tanto para um lado como para o outro...” “...Como era um servidor muito grande, com imensa capacidade, ele foi invadido por um dos lados para difundir propaganda...” “...O outro lado descobriu, pelo IP, o endereço, invadiu também e fez uma contrapropaganda. [...] Esse servidor serviu aos dois lados”.
4. Por último, Mandarino revelou “uma coisa novíssima”, detectada pelo GSI na semana anterior. Disse que portais de prefeituras vêm sendo sistematicamente invadidos entre 11 da noite e quatro da madrugada. São, “em média, seis invasões por noite”. Vindos do exterior, esses ataques injetam nos computadores das prefeituras “filmes piratas, fitas pornográficas e de pedofilia”, além de propaganda política.