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O caso Demjanjuk: a Europa no banco dos réus


O caso Demjanjuk: a Europa no banco dos réus

A Alemanha e a Europa preparam-se para o que pode ser o último julgamento de um criminoso de guerra do segundo conflito mundial: John (antes Ivan) Demjanjuk, formalmente um cidadão norte-americano, recentemente deportado dos EUA. Ele é acusado de ser "Ivan, o Terrível", apelido de um dos carrascos do campo de concentração de Treblinka.
Flávio Aguiar
No fim de semana passado (23-24/5) a Alemanha comemorou os 60 anos de sua última fundação, depois da Segunda Guerra Mundial e quase 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, o que correspondeu a uma re-fundação do país com a unificação Oeste – Leste (para muitos uma anexação do último pelo primeiro). Houve cerimônia e concerto oficiais junto ao portão de Brandemburgo. No mesmo dia (sábado) o atual presidente Horst Köhler foi reeleito para o cargo, no quadro tradicional de uma centro-direita unida e de uma centro-esquerda dividida. Antes de ser eleito pela primeira vez Köhler era membro da CDU (União Democrata Cristã),  mas suspendeu sua filiação para exercer a presidência, um cargo mais de representação do que de administração e política, o que cabe à função de Chanceler, como se chama na Alemanha o Primeiro Ministro. Na eleição indireta, entre os 1224 representantes e delegados da Assembléia Nacional (formada pelos membros do Parlamento mais personalidades especialmente nomeadas ou eleitas para esse fim), Köhler obteve 613 votos, contra 503 dados à Gesina Schwan, do Partido Social-Democrata (SPD) e 91 a Peter Sodann, do Partido A Esquerda (Die Linke), mais 4 inexpressivos mas significativos votos dados a um candidato de extrema-direita.

Köhler foi apoiado pelo seu partido, CDU, pelo CSU, que é o co-irmão bávaro da CDU e pelo FDP. Schwan, uma conhecida professora universitária, pertence à linha esquerda do SPD, e nutria a esperança de atrair votos da Linke, além de contar com os votos do Partido Verde. Entretanto a Linke recusou-se a recomendar um "voto útil" em Schwan, o que valeu-lhe críticas mais ou menos veladas. Entretanto tal atitude por parte da Linke nada tem de surpreendente, uma vez que esse novo partido no cenário alemão e europeu está firmando sua identidade e abrindo caminho para as eleições nacionais de 2010, além de que em outros espaços vastas frações do SPD e do Partido Verde têm-se mostrado muito reticentes em fazer alianças com ela.

Enquanto isso, a Alemanha e a Europa preparam-se para o que pode ser o último julgamento de um criminoso de guerra do segundo conflito mundial: John (antes Ivan) Demjanjuk, formalmente um cidadão norte-americano, recentemente deportado dos Estados Unidos e levado para Munique. Atualmente com 89 anos de idade (algumas fontes lhe dão 88, outras até 82), Demjanjuk já foi julgado uma vez em Israel, acusado de ser "Ivan, o Terrível", apelido de um dos carrascos do campo de concentração de Treblinka encarregados de jogar o gás que matava os prisioneiros.

Condenado à morte em primeira instância, Demjanjuk teve sua sentença anulada e foi solto pela Suprema Corte de Israel em 1993, com base em dúvidas consistentes sobre ser ele de fato aquele personagem. Retornou então aos Estados Unidos, onde vivia desde 1951, com seu novo nome "John".

Entretanto seu caso foi reaberto, agora com base em novas acusações e indícios (para a promotoria, provas irrefutáveis) de ter ele na realidade trabalhado como auxiliar dos nazistas no campo de Sobibor, e de ser co-responsável pela morte de 29 mil judeus.

O caso mobilizou argumentos de parte a parte, que vão desde o estado de saúde do acusado até o caráter imprescritível de um crime definido como genocídio. Um argumento foi muito curioso: o de que tirar o acusado de seu lar, na sua idade e com um suposto estado de saúde precário, consistiria na prática de "tortura" contra ele. O argumento não foi aceito, mas faz pensar no que os nazistas e tantos outros criminosos de guerra e de ditaduras praticaram em relação a pais e mães de família e crianças cujos filhos, pais ou responsáveis foram diretamente seqüestrados, torturados ou mortos.

Ao mesmo tempo, o caso levantou mais abertamente do que antes uma discussão sobre os colaboradores dos nazistas alemães, cuja responsabilidade seguidamente é deixada na sombra da história.

Demjanjuk é um ucraniano de língua russa, que durante a guerra foi "incorporado" ao Exército Vermelho da União Soviética. Como tal foi feito prisioneiro pelos alemães, por volta de 1942/1943. Aqui começam as controvérsias. Teria sido ele ameaçado de morte caso não colaborasse com os nazistas nos campos de extermínio, ou teria ele se apresentado como voluntário para faze-lo? De todo modo, ele se transformou num "Trawniki", nome derivado do campo onde esses "prisioneiros colaboradores" eram treinados para lidar com os candidatos ao extermínio nas câmaras gás.

Num ou noutro caso, ele é passível de julgamento, é claro, e o trabalho, aparentemente, dos juízes, vai ser discernir entre a culpa dolosa e a culposa, isto é, entre o voluntariado e o constrangimento, porque, ao que parece, os indícios contra ele são muitos e inegáveis. Porém, e como se diz, ai, porém... o caso trouxe à baila o argumento de que o extermínio em massa dos judeus e de outros prisioneiros de guerra – ciganos, russos em geral, comunistas, e várias outras vítimas – não teria sido possível no leste europeu sem a colaboração estreita das populações da região. A sombra dessa acusação pesa, sobretudo, sobre romenos, croatas, lituanos e também ucranianos. Quais as causas desse contencioso? Várias são apontadas por historiadores e analistas. Elas vão desde as vantagens financeiras, pois delatar um judeu valia dinheiro, até as mais diretamente políticas, pois nessas regiões predominavam nacionalismos exaltados de estilo europeu, isto é, xenófobos, excludentes e exaltados. Eliminar os judeus e outras minorias era o caminho para construir uma pátria "pura" (uma coisa tão diferente do nosso nacionalismo latino-americano). Isso levou, inclusive, durante a Segunda Guerra, como chama a atenção matéria publicada sobre o tema no site internacional da revista Der Spiegel, a um extermínio mútuo entre essas nacionalidades, onde romenos atacavam moldavos, croatas investiam contra ucranianos e vice-versa, todos investiam contra russos e judeus, etc.

No ocidente europeu também houve atrocidades e resistências (como também houve resistências heróicas coletivas e individuais no leste), pois na Holanda, por exemplo, a colaboração com os nazistas foi estatisticamente maior do que na Dinamarca. Mas no leste da Europa a prática dessa colaboração foi mais intensa porque os nazistas já invadiram a região com a idéia de que essas populações como um todo, inclusive os russos, eram "inferiores", só lhes restando a "missão" do extermínio.

Esse caso também trouxe à luz uma contraposição efetiva à idéia, propagada por teorias controversas nos últimos anos, de que o anti-semitismo ou o racismo, era algo "intrìnsicamente" germânico. É verdade que uma das sombras que paira sobre o passado alemão e germânico é a de que houve um apoio maciço de levas e levas da população ao nazismo emergente e depois vitorioso; mas nem isso foi exclusivo dos alemães, nem se dirigiu, como já se sabia, mas nos últimos anos não se ressaltava, apenas aos judeus. O que predominou, em pequena ou grande ou ainda monstruosa escala (caso dos nazistas alemães) foi o conceito de que se poderia definir um "povo melhor", "eleito" ou "escolhido", ou "predestinado" ou seja lá o que for, que teria o "direito" de decidir sobre as possibilidades e condições de vida – ou de morte – de outros povos.

Isso continua a existir, em diferentes versões, algumas mais amenas, outras mais dramáticas, nos dias de hoje. O que prova que, se o nazismo "morreu", seus princípios conceituais precisam de combate cotidiano aqui, agora e sempre. E que a Europa, como um todo, continua no banco dos réus do humanismo. Fico espantado quando estudantes nas universidades se erguem furibundos e dizem, apontando o dedo contra nós, que "o Brasil manteve a escravidão até 1888". É verdade, e não nos ocultemos desse julgamento da história. Mas não nos neguemos à pergunta: "sim, mas o que aconteceu na Europa, e ainda continuou acontecendo"? E nos Estados Unidos? Sob o ângulo da produção e do patrocínio da iniqüidade, somos todas as culturas, nações e regiões mais ou menos iguais.
 
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.
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Magal

A única coisa maior do que aquilo que nos divide, é o sonho que compartilhamos.

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